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Fotografia: Hugo Barros
Publicado a: 04/11/2025

Uma música vulnerável, sem géneros nem fronteiras.

Juno e o Contraste de uma promissora música honesta: “Queria uma catarse com este disco”

Fotografia: Hugo Barros
Publicado a: 04/11/2025

Não é todos os dias — nem todas as semanas, ou meses — que ouvimos um disco de alguém desconhecido que nos prende verdadeiramente a atenção. Contraste, o álbum de estreia de Juno, editado no passado mês de Outubro, pode muito bem ser uma dessas excepções para muitos ouvintes. Pelo carácter próprio das canções, pela multiplicidade de sons e referências, pelo potencial que é facilmente identificável.

Deste lado, mesmo que em circunstâncias e intensidades distintas, lembramo-nos de ter ficado com uma sensação similar quando há 10 anos ouvimos o primeiro disco de Slow J, The Free Food Tape — um trabalho que nos arrebatou e que acima de tudo nos surpreendeu pela identidade singular e a criação de qualidade vinda de um anónimo. 

Embora esta seja a apresentação oficial de outro João — neste caso, com os apelidos Pastor Centeno — e de ter como referência assumida Slow J, a sua receita musical tem outros ingredientes sonoros, os pontos de partida são diferentes, embora também partilhem prioridades artísticas pouco tangíveis — como a vulnerabilidade, a procura por música honesta e, claro, o diverso e aberto espectro sónico.

“Boca de Raia”, o auspicioso avanço de Contraste, apresenta-nos Juno como um cantautor poético que pode ter um registo mais próximo do fado, com destaque para as guitarras, numa canção que desagua numa produção digital de cadência afro. A maior parte das canções são lentas e contemplativas, catárticas, com um tom de voz que parece evocar velhos (e novos) cantautores portugueses. Mas também há a explosão distorcida da derradeira “Johnny’s Escape”, o balanço das palmas aflamencadas de “In_certeza” ou os momentos spoken-word, de inspiração hip hop, de “Todo O Lado” ou da introdutória “Três Pancadas”. Canções de cinco e de dois minutos, guitarras e pianos, um som sobretudo orgânico mas que também tem um cariz digital, música definitivamente sem géneros nem fronteiras.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, Juno explica-nos que antes de chegar a Contraste produziu, com um amigo, um EP de hip hop — e com o mesmo parceiro artístico, unindo-se a uma amiga de ambos, fizeram um disco mais próximo do R&B. Foram esboços que serviram de experiências precoces antes de se apresentar como Juno — sendo que também assina as próprias composições com o seu nome de produtor, Shepherd. “Orgulho-me do que fiz, mas já nenhum de nós se identifica muito com o que fizemos ali. Foi importante por ser a primeira coisa que estávamos a fazer”, conta.

Nascido em 1999 e criado em Algueirão Mem-Martins — mais um filho artístico do último subúrbio da Linha de Sintra antes da serra, a freguesia mais populosa de Portugal — sempre cantou em miúdo e tanto ouvia fado como flamenco ou bossa nova. Na adolescência, o rap ganhou preponderância. Mas outras influências determinantes também se fizeram sentir, de Chico Buarque a C. Tangana, passando pelos Ornatos Violeta. O irmão mais velho, que acabou por se tornar técnico de som, também produzia no Ableton e foi importante nesse sentido. Teve aulas de piano durante alguns meses. Em 2018, entrou na ETIC para fazer o curso de Produção e Criação Musical, inicialmente com o intuito de se formar como produtor e não como um artista à frente do seu próprio projecto.

“Os Ornatos Violeta são uma mega inspiração e claramente fizeram-me querer um estilo de música com mais guitarras com distorção, mais baterias agressivas, até porque sinto que esta estética sonora fica muito bem aliada ao tipo de sentimentos que estava a tentar exprimir — sendo que não sou uma pessoa explosiva, sou sempre muito calmo. Na adolescência, que é uma idade muito formativa, ouvia maioritariamente hip hop — bastante português e americano. Adoro o Kendrick Lamar e o Slow J é um dos meus ídolos. Quando eu estava num conflito gigante na faculdade, a querer desistir porque queria fazer música — fiz um semestre do curso de Ciências da Linguagem — lembro-me de ouvir uma entrevista em que o Slow J dizia que tinha estudado engenharia informática e que, se estivesse a trabalhar em IT, iria fazer música na mesma. Porque música é uma cena que ele tem de fazer. Eu identifiquei-me muito com esse sentimento e percebi que estava num momento da vida em que, se for para tomar essa decisão, mais valia ser já. Se há duas pessoas por quem tenho de agradecer por fazer música hoje, é o meu irmão e o Slow J.”



[O álbum Contraste]

Foi construído ao longo dos últimos quatro anos, embora só se tenha tornado um processo mais intencional a meio do caminho. Apesar de tocar guitarra, baixo e teclas, Juno considera-se um “pato” no que toca aos instrumentos. “Porque os patos voam, mas não voam tão bem como as outras aves. Nadam, mas não tão bem como outras aves. Andam na terra, mas também não correm muito rápido”, brinca.

Ainda assim, ultimamente tem estado muito mais dedicado ao estudo da guitarra e tem sido das suas cordas que têm nascido a grande maioria das canções. Depois, houve todo um processo de transformar e perceber o que é que cada tema pedia — se fosse demasiado exigente, pedia a amigos instrumentistas para executarem as suas ideias e gravarem um segmento ou outro. “Mas, em geral, a grande maioria do álbum sou eu a tocar”, conta-nos, sendo que também misturou e masterizou Contraste

A faixa com mais influências externas, e que dá logo a entender isso com o título, é o interlúdio “Bruno’s”, que inclui até a voz do seu amigo Bruno. “Fizemos aquilo para uma amiga nossa, mas não tinha muito a ver com aquilo que ela queria e acabou sempre por ficar ali a flutuar. E apercebi-me de que estava a puxar um bocado pela guitarra eléctrica, por acordes mais sujos, e acabei por incorporar isso.”

Para si, não há dúvidas de que as faixas mais próximas do spoken-word vêm dessa influência particularmente marcante do hip hop na adolescência. “É do amor e do gosto que tenho pelo rap, tenho um apego à comunidade e a esse mundo. Sinto algum peso ao dizer que faço rap ou que aquilo que está a acontecer naquelas músicas é rap, mas é claramente influenciado por isso.”

Por outro lado, se com a guitarra muitas vezes “demora algum tempo” até encontrar algo de que gosta e perceber que está ali um possível caminho, com a voz sempre sentiu uma fluidez mais natural. “Talvez por cantar desde novo, sempre foi mais natural para mim. E uso bué vezes, quando estou a produzir, só para ter alguma ideia e em muitos momentos descobria que conseguia usar a minha voz com efeitos e basicamente fazer um sintetizador. Também arranjei alguma liberdade nas backing vocals, gosto muito de fazer coros e a harmonia da voz humana é mesmo incrível.”

Este é um disco particularmente introspectivo, que abre espaço para a vulnerabilidade. “Quando ficas mais velho e começas a tornar-te adulto, algumas das relações que tinhas antes quebram-se e há coisas boas que também mudam”, explica. “Eu comecei a perceber que, durante uns bons anos, tinha vivido para agradar às pessoas que estavam à minha volta, que eram meus amigos e de quem eu gostava, mas percebi que, por ter vivido com essa postura, não fui propriamente honesto comigo próprio. E por consequência não fui honesto com estas pessoas que estavam à minha volta. Também tenho défice de atenção, não sou disfuncional mas às vezes não presto muita atenção em muitos cenários e com muitas pessoas. E, passados anos, percebes isso e aquilo quebrou um bocado a minha realidade de eu perceber que não estava a ser a pessoa que devia ser para mim próprio.”

Outras vivências pessoais também foram marcantes e acabaram por se reflectir no disco. “Eventualmente saí de uma relação e percebi que minha maneira de ser assim é negativa para mim próprio, mas também é negativa para as pessoas à minha volta. Lidei com mortes de familiares, e houve bué coisas da minha vida que, por viver sempre para fora e por guardar e não mencionar tudo aquilo que me incomodava, acabei por ser uma pessoa que não queria ser. Não estava bem, demorei um bocado a perceber isso e quando aconteceu aquela quebra de realidade de ‘quem é que fui até agora?’… E agora que sei que quem quer que seja que tenha sido até agora não é quem eu quero ser, pior ainda… Quem é que eu vou ser daqui para a frente? E no álbum falo sobre como eu era antes, na maior parte das letras falo para mim próprio.”

O título, Contraste, espelha em particular as temáticas abordadas no disco. “Foi no decorrer de todas essas coisas que aconteceram na minha vida, percebi que eu era muito mais diferente das pessoas com quem me dava do que achava, e era muito diferente daquilo que eu realmente sou. E que a razão pela qual não estava tão bem como sentia que podia estar não era nenhuma das coisas que eu andava a apontar na minha vida e a tentar resolver. Era só essa falta de honestidade comigo mesmo.”

A capa tem uma fotografia a preto e branco de um prédio em Mem Martins, mais as palavras “luz” e “sombra”, os “contrastes puros” representados num desenho feito pelo próprio Juno. “Gostei muito daquele desenho até porque é uma das formas mais simples de entender o contraste.”

“Perdido” é, por enquanto, a sua música favorita do álbum. Juno escreveu-a na perspectiva do irmão e da irmã, ambos mais velhos — aliás, foi a irmã quem lhe começou a chamar de Juno, nome que acabou por escolher para o seu trajecto artístico. “Noutras músicas estou a falar para uma pessoa em específico, e escrevi a pensar no que diria se tivesse força de vontade para falar. É um disco muito introspectivo e acho que alguns dos problemas do mundo é porque as pessoas não partilham as cenas que sentem, não permitem que mais ninguém se identifique com o que estão a sentir, então ninguém sabe o que os outros estão a sentir, ninguém sabe o que ninguém está a passar… Não há maneira de sentir se aquilo que estou a experienciar é normal, expectável ou sobrevivível”, explica. “E eu queria muito partilhar a minha cena numa de catarse. Eu não tenho o maior à-vontade com a exposição, tenho alguma ansiedade, mas quero forçar-me a mim próprio a combatê-lo.”

Para si, as letras são uma das componentes mais desafiantes até de descrever como acontecem. “Quase todas começam com uma frase, em que estou a andar na rua e penso numa frase qualquer. Mas há sempre um conceito à volta, também uso muitas analogias, e depois vou tentando escrever à volta disso. É estranho descrever o processo porque é mais errático e a inspiração é mais complicada. Mas gosto bastante de escrever. Aliás, apesar de ser um processo difícil, mais do que qualquer outra coisa eu gosto de escrever.”

Com o disco cá fora, lançado discretamente de forma independente e com uma listening party intimista, Juno quer criar as condições para o levar aos palcos. “Já o apresentei uma vez, antes de sair, em Massamá, no Festival Aqui Ao Lado, fui lá abrir para o B Fachada e apresentei-me só com backing tracks. Era eu a cantar com os meus dois amigos que participam no álbum. Mas quero reunir uma banda e fazer uma apresentação mais completa. Os instrumentais merecem-no e eu posso cantar na mesma, porque é o que gosto e sei fazer.”


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