No final da tarde do último sábado, dia 12, chegou ao fim a 11ª edição do ciclo Julho é de Jazz. Esta é uma iniciativa que une o Theatro Circo e o gnration no propósito de oferecer à cidade de Braga uma requintada programação em torno de um dos géneros mais inventivos e mutantes da história da música. Sempre com grandes nomes desse circuito jazzístico presentes no seu cartaz, em combinação com outros menos conhecidos, mas que exibem dotes suficientes para se fazerem notar e, quem sabe, vingar no futuro. Depois de lançados os nossos olhares sobre os concertos de Vijay Iyer (dia 3), Ricardo Toscano e Gabriel Ferrandini (dia 4), David Murray Quartet e Ava Mendoza com Brad Jones & Hamid Drake (dia 5) e Mary Halvorson Amaryllis Sextet (dia 11), findamos a nossa aventura azul pela cidade que é Capital Portuguesa da Cultura em 2025 com a derradeira reportagem aos espectáculos protagonizados por Fourward e Orquestra Jazz de Matosinhos & Peter Evans.
Este findar das festividades acaba por ser um excelente retrato daquele que tem sido o espírito do Julho é de Jazz, onde as sonoridades clássicas convivem em perfeita harmonia com o som da novidade no alinhamento. Pelas 18 horas, no gnration, começámos por escutar (e igualmente descobrir) uma música feita no hoje mas com os ouvidos postos no amanhã. No pátio daquele espaço apresentavam-se os Fourward, naquele que era o dia mais importante do seu trajecto até então. O grupo formado por José João Viana (guitarra eléctrica), Gonçalo Cravinho Lopes (nesta data substituido pelo espanhol Álvaro Orcajo no contrabaixo), Simão Duque (trompete) e Tomás Alvarenga (bateria) tinha lançado nesse mesmo dia o álbum de estreia Freedom, composto por sete malhas, todas elas tocadas pela respectiva ordem no concerto. Alvarenga, o porta-voz do quarteto, diz-nos que o disco resulta de um convite para uma residência artística naquele mesmo edifício lançada por Ilídio Marques, um dos coordenadores do Theatro Circo e do gnration, numa altura em que o projecto atravessava uma fase de incerteza devido à dificuldade de reunir as suas tropas regularmente, dada a distância geográfica que separa a actual zona de residência de cada um dos seus membros. No final da sua actuação, só podemos estar gratos à instituição bracarense por ter proporcionado um futuro a um dos conjuntos mais interessantes que vimos florescer no jazz nacional nos últimos tempos.
Da exploração cósmica da “Intro”, os músicos passam ao que soa a uma reflexão dos tempos conturbados que atravessamos com “Deicida”, uma composição que os aproxima de um certo rock doomer em que a falta de confiança num amanhã risonho se transforma num belo e contemplativo momento de poesia musical, no qual o trompete de Duque carrega a password da melodia-base que desbloqueia todas as outras camadas, sempre no balanço de uma triste marcha em downtempo rumo ao abismo que, ainda assim, parece verter algumas gotas de esperança. Não falaram nos acontecimentos que têm assolado o globo, como os ataques aos povo palestiniano e ucraniano, mas certamente que esses temas, que nos invadem de cada vez que ligamos a TV ou acedemos a uma rede social, está na base dessa tal mensagem de “liberdade” que proclamam no título da primeira obra discográfica — imagens dessas mesmas guerras vinham à tona sempre que fechávamos os olhos para melhor absorver essa segunda pista do álbum.
O tom melancólico prossegue em “Colmeia” e perdura até ao início de “Assobio”, que a meio inverte os pesos da balança e nos leva por caminhos mais alegres e solares. “Gruta” será, talvez, o tema mais “clássico” dos Fourward, a fazer lembrar uma taciturna balada jazz de outras eras. Mas voltam ao presente com toda a força em “Freedom”, a canção que herda o título do trabalho de estreia e aquela que mais emoções desperta, novamente com Duque a soprar ventos de uma bonança que pode estar por vir e com o particular detalhe de ter a palavra “freedom” cantada repetidamente por Tomás Alvarenga na parte final, como um mantra espiritual que eleva a música para um patamar ainda mais alto. Além do recurso à voz por parte do baterista, houve mais um par de surpresas no derradeiro “Outro”, novamente com Alvarenga em destaque, ao trocar os ritmos pelas teclas, e com Álvaro Orcajo a fazer descansar o contrabaixo para se agarrar a um sampler Roland de onde disparou vários sons, evocando aquela ideia de que, no presente século, qualquer músico de jazz digno de se chamar “moderno” tem também de ser um discípulo de J Dilla.
O dia podia ter acabado ali, que já estávamos mais do que satisfeitos, mas o pós-jantar promovia uma breve peregrinação até ao Theatro Circo para, às 21h30, dar a edição deste ano por completa com um grande concerto que juntou a Orquestra Jazz de Matosinhos e Peter Evans, aclamado trompetista norte-americano que tem sido presença constante no mapa cultural do nosso país. Com a direcção do maestro Pedro Guedes e ainda com um par de convidados especiais na secção rítmica — Demian Cabaud no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria —, recuperou-se em palco o som das big bands de jazz norte-americanas revisitando-se um par de discos clássicos de Miles Davis: Miles Ahead (1957) e Porgy and Bess (1959), duas ousadas criações a surgir da icónica parceria formada entre Davis e Gil Evans.
Na apresentação da performance, Pedro Guedes dirigiu-se ao público, afirmando que estas foram as composições mais complexas algumas vez tocadas pela Orquestra Jazz de Matosinhos. Nos rostos dos músicos pertencentes ao conjunto, era visível o entusiasmo pela tamanha tarefa que lhes tinha sido entregue nas mãos. Por um lado, há apreço pela oportunidade de poderem levar a palco duas obras tão importantes da história do jazz, por outro, existe certamente um gosto especial em poderem escalar mais alguns degraus na escada da técnica pela exigência que este repertório representa. E há ainda um terceiro factor, que é o estarem a tocar lado a lado com um dos melhores trompetistas internacionais da actualidade. Peter Evans fez-se socorrer de um par de trompetes diferentes para emular a energia do eterno Miles Davis, e o seu arcabouço levou-o a cumprir a tarefa na perfeição, diante do maravilhamento de alguns dos músicos da orquestra, que aproveitavam cada momento de silêncio nos seus respectivos instrumentos para admirar a maneira de tocar do norte-americano — enquanto o olhavam, uns batiam o pé, outros abanavam a cabeça.
De um total de 14 composições, “Summertime”, do álbum Porgy and Bess, será facilmente a mais famosa de todas elas. Mas este concerto de mais de hora e meia de duração atravessou vários dos temas que são considerados obrigatórios na aprendizagem do jazz, alguns deles imortalizados no popular compendio Real Book, o mais essencial dos manuais para este tipo de cancioneiro, como “I Love You, Porgy”, “It Ain’t Necessarily So” ou “My Ship”. Foi neste regresso ao passado que terminou o Julho é de Jazz de 2025, que certamente continuará neste saudável balanço entre “ontem” e “amanhã” nas suas próximas edições.