Ao terceiro dia de Julho é de Jazz chegaram momentos com que ninguém contava. Um quarteto a trazer um elemento extra a palco e a alteração da ordem do programa por força de uma viagem convertida em prova de obstáculos. É da natureza humana: a resistência, a flexibilidade para que algo aconteça ou até uma certa teimosia. O factor surpresa marcou o último dia do primeiro fim-de-semana de concertos de jazz em Braga.
Para o majestoso Theatro Circo estava programado um quarteto que trazia no nome de David Murray uma boa parte da história do jazz — uma referência. Aquilo que habitualmente se chama de lenda viva. Na edição anterior tinham sido outros — o concerto da dupla Scofield e Holland no ano passado, por exemplo, trouxe esse legado ao palco do Circo. Há uma atenção neste festival para que se alinhem nomes com uma carreira de enorme peso, mas que estejam a trazer mais música a este presente. É o caso do saxofonista Murray, membro fundador, em 1977, do The World Saxophone Quartet, que se manteve activo até 2016. Gravou bem perto da centena de registos como líder em diversas formações. Noutros mais o seu sopro foi vital, tantas vezes circular, e nisso trouxe a sua música a outros com quem colaborou. Bem mais recente é a reformulação do seu quarteto, onde constam músicos de uma nova geração para a qual o seu nome sempre será uma incontornável referência. Contando comos músico de excepção — como, aliás, fez menção em palco — a pianista Marta Sanchez, o contrabaixista Luke Stewart e o baterista Russell Carter. O primeiro disco da nova formação, editado pela helvética Intakt Records em 2024, revelava um elemento de importância no título — Francesca. O disco que lhe sucede, lançado pela Impulse!, traz a confirmação dessa fonte na nova música de Murray. Em lançamento está Birdly Serenade, nele alude-se, em notas de apresentação, que a inspiração na composição veio da observação das aves no retiro de Murray, nas paragens de “Adirondacks, no meio de lagos, florestas e do céu infinito”.
Em palco, apresentam-se inicialmente como quarteto — nada de surpresa. Alinham temas dos dois álbuns gravados pelo quarteto. Murray parece nem se recordar do nome do tema que abre o concerto — “Ninno”, como relembra Stewart. Ouve-se então a melodia sobre um cão de Montmartre, da qual Francesca Cinelli é ilustradora no vídeo em técnica de stop motion. Murray retira-se amiúde de cena — sempre que não tem papel na música, deixa transparecer que o trio que o acompanha tem muito para revelar por si só. Em modo surpresa, passam a quarteto aditivado. Surge Cinelli como convidada especial para cantar “Birdly Serenade”, onde demonstra muita vontade e contentamento em estar junto ao quarteto, mas isso por si só é insuficiente para o conjunto e a música fica refém da sua voz, longe do registo do álbum onde canta Ekep Nkwelle.
Com “Bird’s The Word”, Marta Sanchez mostra o seu lirismo ao piano, leva o tema por diante até os seus companheiros instrumentistas se juntarem. Devolvem destacados solos, primeiro vindo do contrabaixo e depois do próprio saxofone tenor. É o melhor momento do concerto, que assim se manteve com “Black Bird’s Gonna Lite Up The Night”, onde numa parte sem tenor em palco se demonstra um trio de uma musicalidade introspectiva e que se recebe como contraponto apaziguador. A surpresa maior viria em seguida com “Bahia”, do qual melhor se pode descrever como sofrível. Música tornada vulgar com uma roupagem que se ajustaria a um programa de variedades, como se fosse um sarau. Cinelli uma vez mais a querer encantar, mas o seu canto bailado, dirigido mais a Murray, parece permanecer por aí. Mas o que isso traz à sua música? É essa a pergunta que fica sem resposta. Haverá algum interesse, mas fica-se pelo tipo de registo escutado em “Oiseau de paradis”, que tal como em disco, conta em palco com Francesca Cinelli em modo spoken word. Essa palavra dita, ainda que de melhor resultado, deu asas a uma intromissão desajustada aos demais temas cantados, fazendo perigar a imagem conjunta do concerto. Fica-se sem entender o porquê e a inconsciência do sucedido. Em Outubro, no Angrajazz estará Ekep Knwelle Quartet em palco um dia antes do quarteto de David Murray — quem sabe se a cantora não se junta ao saxofonista para interpretar as partes que registou em Birdly Serenade.
Fosse o programa como previsto e a noite de concertos estaria encerrada. Mas o concerto do final de tarde ficou reagendado para o final da noite, devido à viagem da guitarrista Ava Mendoza ter sofrido sucessivos atrasos. Com isso a estreia mundial de Mendoza com Brad Jones no baixo eléctrico e Hamid Drake na bateria passava a fechar este terceiro dia na blackbox do gnration. De Mendoza esperam-se invariavelmente riffs em catadupa e energia destemida, mesmo para uma guitarrista em modo “zombie”, como a própria melhor se assumiu em palco face à muito perdurada viagem. Mesmo perante essa surpresa, a música soou enérgica vinda da sua guitarra e pedais. Drake por sua vez apresentava-se numa bateria em tudo convencional, depois de muitas das últimas vezes em palco se ter visto com alguns elementos de percussão tradicional, de diferentes culturas do mundo. Ele que transporta consigo esse ritmo ancestral, na maior parte das vezes junto ao mestre William Parker no contrabaixo — assim há de voltar para a abertura do Jazz em Agosto. Mas nesta blackbox, e num trio de caudal poderoso, o tempo é servido pelo baixo eléctrico em muito tocado nos agudos. Um power trio para um enquadramento surpresa e desafiante nos domínios do jazz.
Sentia-se a enorme vontade de Mendoza para fazer acontecer a estreia. Começo absoluto de poder e descarga sónica e muito por conta dessa indomável guitarra. Não será de todo descabido pensar-se que está impregnada de onde tem andado metida — no seio do Marc Ribot Quartet em “Hurry Red Telephone”. Aliás, importa trazer as palavras de Ribot sobre a escolha da guitarrista para tal: “Ava Mendoza é a pessoa perfeita para completar este quarteto — grande solista, sensível tocadora de conjunto: uma guitarrista/improvisadora destemida que sabe como agitar a casa.” E esta casa estava agitadíssima, adormecer seria impensável, e para quem vinha do concerto anterior era como um bálsamo sonoro e em muito revigorante. Prosseguiram com a guitarra sempre na frente a abrir caminho e a dizer que é por aqui que vamos. Até que Mendoza deu a primazia de abertura — surpreendendo Drake — para haver só bateria. Foi o momento para andar mais perto dessa espiritualidade de tambor indígena, mesmo partindo Drake de uma bateria estandardizada.
O final reservou uma Ava Mendonza como que apontando para novas possibilidades. O efeito surpresa estava de novo na voz. Desta feita em modo agradável. Mendoza, dispondo a sua guitarra em processos sónicos automáticos, libertou-se para o microfone e fez surgir uma voz num alcance de tonalidades narrativas que iam assumindo falsetes. Fez recordar domínios que outrora pareceram exclusivos de uma PJ Harvey. Mendoza tem demonstrado a sua grande versatilidade e flexibilidade entre muitos nomes da música independente, indo além do seu grupo de vanguarda Unnatural Ways, trio que mantém activo com Tim Dahl e Sam Ospovat. Aqui e pela mão curatorial do gnration fica inscrito à nascença mais uma franca possibilidade. Mendoza, Jones e Drake tiveram um segundo palco no dia seguinte na ZDB e o futuro irá revelar quantos mais se sucederão — razões para isso ficaram demonstradas.