À noite teima-se em extenuar o calor dos dias. O ar respira-se ainda quente e sair para a rua apresenta-se como fuga plausível e acertada. A ideia de cinema ao ar livre serve como refrescante desejo. Se houvesse uma tela suspensa, imaginada a receber um foco de luz duma película e aquele leve matraquear envolvente do projector em funcionamento… O tempo do cinema ambulante é passado. Mas e entrarmos num pátio exterior, onde já muitas pessoas se colocaram no conforto dispostas a receber o que vier à cena — isso é cinema? Assim foi nesse pátio exterior do gnration na noite de 4 de Julho é de Jazz — mas um jazz em que cabe o cinema. A dupla que Ricardo Toscano e Gabriel Ferrandini formalizam anda por caminhos próximos desse universo. Há um cenário como que duma dessas sessões ao ar livre. O que se presta a acontecer imagina-se projectado, assim diante da plateia sentada no chão e evocando uma película como num desses filmes onde há jazz — noir, que seja.
O jazz contribuiu decisivamente para adensar a trama de mistério numa concreta estética do cinema. Essa vertente cunhada de filme noir contou com vários músicos, como John Coltrane, Miles Davis ou Duke Ellington, para sonorizar a acção. Em muito numa matriz de fraseados dispostos a criar um estado de espirito melancólico conduzindo a narrativa. Foi uma associação extensamente profícua entre o jazz e o cinema, em obras que marcaram uma época entre os finais de 1940 e princípios da década seguinte. E se como num rescrever dessa história na actualidade houvesse quem se dispusesse a fazer uma banda sonora para um filme noir imaginado? Toda uma suposição no que se vê e escuta perante o saxofone alto de Toscano ao lado da bateria de Ferrandini.
A sonoridade transposta no sopro de Toscano, com frases melódicas suspensivas assentam bem nessa estética noir. Contudo, aqui o tempo é um ponto-chave. Esse mesmo tempo que em muito o baterismo de Ferrandini acelera. Aqui o tempo é das polirritmias. Os elementos sonoros de um e de outro emaranham-se no enredo imaginado. Como que uma trama em que o sinistro é substituído pela sedução, onde na vez do crime por desvendar se imaginam personagens errantes em caminhos que se cruzam. Nesse mistério da vida que faz encontros de uns com os outros. Também musicalmente se assiste a isso. Duas linguagens distintas, um cruzamento que torna possível uma co-existência. Como quando se encontraram pela primeira vez, em 2020, e depois gravariam as Unpredictable Sessions. Seguem ainda nesses domínios do imprevisível, mas em que se suspeita melhor o que cada um vai trazer. A surpresa reside no que os une em cada instante tornado possível.
Como de uma reivenção do noir em projecção Toscano vai tocando e apresentando leitmotiv, de personagens. Traz a aprendizagem de outros filmes, improvisa na forma como sequência a matéria estudada e sabida de cor. Ferrandini projecta-se pela cena livre e improvisada, constrói no imediato e sucede em catadupa os ritmos por intuição momentânea. Há uma progressão conjunta e efectiva a dois. Num primeiro tema aberto e amplo — como que a montar o guião de todo o filme. Depois vêem outros, em diálogos, a música por partes. Mais que uma decomposição em solitário tratam de se escutar mutuamente: num vou por aqui e convido-te a vires. Sortilégios em partes, que resulta numa força efectiva de condução. Há uma crueza instrumental na medida em que os todos os efeitos são naturais, vêem do sopro e das destreza de mãos. Mesmo quando há mais textura que melodia isso deve-se ao processamento de cada músico, a electronica está arredada disto. Isto é música de um saxofone e uma bateria.
O imaginado filme ouve-se pelas suas mãos, em que somos apenas espectadores, mas onde na rodagem não se volta para refazer qualquer cena. Isto é aqui, agora e ao ar livre na noite quente. À época, muitos realizadores nem sabiam que o que estavam a rodar seria o que mais tarde se haveria de chamar filme noir. Como em tantas mais, as correntes estéticas acontecem sem ter nome para começar. O tempo encarrega-se disso, se for preciso definir o concreto. O concerto de Toscano e Ferrandini não é uma banda sonora para um filme noir — é uma outra cena, fora dessa era e lugar, mas para lhe dar um nome vai ser preciso tempo.