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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/12/2020

Vibrações particulares.

JP Coimbra: “Tenho uma tendência para subverter os sons no Vibra

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/12/2020

A carreira de João Pedro Coimbra anda de mãos dadas com os últimos capítulos da história da música portuguesa: é um dos mentores dos Mesa, antigo membro dos Bandemónio (de Pedro Abrunhosa) e Três Tristes Tigres, e compôs para Pedro Gonçalves e para PAIÃO.

Passados quase 30 anos de actividade, assina o seu primeiro registo em nome próprio, enquanto JP Coimbra. Vibra é um álbum de música instrumental em que a experimentação sonora reina num discurso aprazível. As diferentes linguagens do músico, partindo da electrónica e do formalismo musical, foram conjugadas em palcos emblemáticos do Porto: a Casa da Música, a estação de metro do Marquês, a Fundação de Serralves, o Rio da Vila, todos eles estão impregnados no disco. Em Vibra ouvimos as inúmeras vivências de Coimbra, maturadas em som a partir da sua cidade natal, e em diálogo com os espaços onde ela se manifesta.

O extenso processo de gravação foi captado pelo realizador Vasco Mendes e será disponibilizado em formato documentário no início de 2021. Amanhã, dia 17, Vibra será apresentado ao vivo na Sala 2 da Casa da Música, no Porto.



“A ideia do disco assentou em usar a plasticidade de determinados espaços públicos do Porto e as suas inerentes características acústicas como se fossem instrumentos”, podemos ler no teu press release. Como é que esta ideia se conseguiu desenvolver ao ponto de se materializar num LP?

Desenvolveu-se por vários motivos. O primeiro é que, desde que produzo, possivelmente desde o primeiro disco dos Mesa, sempre trabalhei com ferramentas que simulam espaços acústicos. Reverbs, delays, etc., que situam a sala, os músicos e os instrumentos. Como trabalhava a partir de casa, esses espaços acústicos tinham que ser simulados. Isso despertou em mim a vontade de trabalhar com espaços reais.

Enquanto espectador, sempre achei curioso o facto de certas salas exercerem a sua influência no que eu ouvia. Os músicos tocavam o material do disco mas não soavam iguais ao disco, porque a sala interagia com eles. Esta interacção existe desde a Antiga Grécia, através dos auditórios ao ar livre. Os próprios instrumentos eram feitos de acordo com o sítio onde iam ser executados. Por estes motivos, achei que seria interessante levar os músicos para certos locais e trabalhar com as idiossincrasias locais. Pô-los a tocar, aproveitar a resposta dos espaços e ser sugestionado por eles, da mesma forma que sou sugestionado pelo som de um piano ou de uma guitarra e tenho que me adaptar ao que me permitem fazer.

Esse conceito é um dos pilares da identidade do projeto, assim como os locais escolhidos, muito emblemáticos do Porto: a Casa da Música, a Fundação de Serralves, entre outros. Estes espaços, amplos, apresentam reverberações igualmente extensas, presentes em Vibra. Achas que é a característica acústica predominante destes locais enquanto instrumentos?

É a reverberação e o delay, a resposta das paredes. Portanto, a diferença entre o som que envias e o som que te é devolvido pelas superfícies. Quando emites um som, a sua frequência vai diminuindo com a distância em relação à tua posição, como nos mostra o Efeito Doppler. Nós colocámos os microfones a distâncias diferentes dos instrumentos para obter estas anomalias, e registámo-las.

Conseguiste prever algumas dessas características quando seleccionaste os espaços?

Minimanente, porque fizemos visitas técnicas aos espaços antes das gravações. Por exemplo, na estação de metro do Marquês, só tínhamos uma hora para gravar depois do encerramento da estação, e foi uma excepção. Antes da gravação, tínhamos averiguado os pontos de corrente, as posições dos músicos e da equipa técnica. A minha primeira ideia foi colocar os músicos, um quarteto de cordas, a subir e a descer as escadas rolantes, mas não foi possível porque o mecanismo das escadas é muito barulhento. Acabamos por colocar os violinos no topo da escada do lado esquerdo e os outros dois músicos no lado direito, a uma distância de 300 metros aproximadamente.

Portanto, nós tínhamos uma ideia de como a gravação poderia funcionar, mas só no espaço e quando os músicos começaram a tocar é que percebemos se seria exequível. Há sempre uma margem de erro e de risco implicados.

Essas idiossincrasias são evidentes em músicas como “Waves” ou “Spacing Out”, momentos escuros e emocionalmente tensos do registo em que podemos ouvir ruídos que vêm dos próprios espaços. Nesses momentos, sinto que os ambientes estão a tentar falar connosco.

Percebo essa sensação. Na “Waves”, quase tudo o que ouves foi gravado na sessão que referi, na estação de metro do Marquês, não havendo qualquer manipulação de estúdio. Há sons que vêm da afinação das cordas ou de spiccatos, com os microfones em diferentes distâncias a captar os conflitos resultantes dessa diferença. É o tema mais puro nesse sentido. A “Spacing Out” contém sons oriundos dessa sessão, mas foi composta em pós-gravação, na quarentena.

O isolamento foi uma aventura para quem estava em processo de criação.

Eu estava desde Outubro a trabalhar nos temas, em pré-produção, visitas técnicas e depois nas gravações.

O processo começou em Outubro do ano passado?

A parte da materialização sim, mas comecei a pensar neste projecto no final de 2018. Trabalhei incessantemente de Outubro a Fevereiro de 2020, e depois fui obrigado a parar todo o processo. Íamos estrear o espectáculo no Serralves em Festa e de repente foi tudo cancelado. Por exemplo, só tivemos acesso ao Rio da Vila depois da primeira quarentena, em Maio. As obras no local atrasaram e só conseguíamos aceder ao rio através de uma tampa de saneamento. Não dava parar entrar com instrumentos, músicos e material técnico. Foi o único sítio onde não consegui gravar o espaço sonoro, só captei som ambiente, o que foi uma pena. É um espaço maravilhoso.

É o local mais insólito onde gravaste, o Rio da Vila, por baixo da Rua Mouzinho da Silveira. Ia-te perguntar como se grava num espaço assim, mas ao que parece foi uma meia gravação.

Deu para captar o som do rio. Pareceu-me uma oportunidade desperdiçada na altura. Contudo, quando estava a criar a “Maybe Next Time”, ouvi a água a correr na composição. Lembrei-me que a tinha registado nos vídeos que gravei, para mostrar as condições às equipas técnicas, e o áudio estava fixe. Acabei por incorporá-lo na música. Talvez no próximo disco o espaço esteja pronto para receber uma gravação.

Vibra resulta da ligação de duas linguagens, a clássica e a eletrónica. Geralmente, estão associadas a mindsets e processos de criação distintos. Como comprometes as duas?

São de facto duas formas de pensar música muito diferentes. Eu sou um músico espontâneo. Sempre fiz música de forma prática, tocando. Este projecto foi interessante para mim porque me obrigou a trabalhar ao contrário, primeiro a compor as partes e depois a tentar ligá-las. Há muita gente a fazer isto agora, o Max Richter, a Hildur Guðnadóttir, o Daniel Lupatin… Eu achava inevitável que essa fusão dos mundos musicais fosse acontecer. A ideia de se compor somente música pop, rock, electrónica ou clássica parece-me cada vez mais antiguada. Eu sempre gostei de cruzamentos, e ouço-os cada vez mais.

Nasci numa época onde esses cruzamentos começaram a acontecer. No anos 80, em canal aberto, podias ouvir música clássica, Orchestral Manoeuvres in the Dark, Jean Michel Jarre… E tudo confluía. A certa altura não sabia se estava a ouvir Ligeti, Strauss ou outra coisa. Para mim, a Introdução do Assim falou Zaratustra, do Richard Strauss, nunca me pareceu algo composto em meados do século XIX. A minha cabeça não vai para aí, vai para os anos 60 ou 70. Há um certo anacronismo temporal que essa época criou nos ouvintes.

Acho que é relevante teres tido esse contacto quando estavas a crescer, porque  quando estás a experimentar música de uma forma inocente e descontextualizada é natural acabares a não valorizar tanto o que significa gostar de um certo estilo. E o Ligeti é um óptimo exemplo desses cruzamentos. A música dele é uma outra coisa qualquer, não cabe numa gaveta.

É música por timbre, que é algo de que gosto muito. Essa ideia é o mais importante naquilo que faço. O que me interessa são os sons em si. São eles que me inspiram a fazer as melodias e as harmonias, a criar, no fundo.

É interessante dizeres isso, porque faz todo o sentido para mim abordar o Vibra como um projecto de timbre.

A composição por timbre não é algo novo, começou a ser feita no final do romantismo /início do século XX, com o movimento futurista, o Marinetti, o Varèse, etc. Estes compositores começaram a utilizar sons que normalmente não eram reconhecidos enquanto elementos musicais, como sirenes, buzinas de alarme e apitos. O léxico sonoro é como o léxico gramatical, não são línguas fechadas, vão evoluindo como uma entidade viva.

Nós estamos constantemente a aprender palavras novas. Algumas pessoas têm reticência em incorporá-las, mas essas palavras são naturalmente absorvidas ao fim de algum tempo. Eu faço o mesmo paralelismo com a música. Há certos sons que há 100, 200, 300 anos nós odiávamos. Inclusivamente, na Idade Média, existiam diversos intervalos proibidos, como o trítono. Passou-se algo de semelhante com o jazz, porque tinha muitos acordes “estranhos”.

Acho que jamais conseguiria ser somente um músico clássico, de jazz ou de rock. Está para lá das minhas forças [risos].

Sentes a responsabilidade, enquanto criador, de expandir o vocabulário sonoro, de descobrir novos sons ou novas formas de interagir com o som?

Identifico-me com isso, mas com o meu humilde contributo. Acho que esse contributo é de todos os músicos que se identificam com esta causa e não pertence a alguém em específico. Mas acho essa noção importante, e faço esse exercício várias vezes. No Vibra, tenho uma tendência para subverter os sons.

Senti isso. Há bocado, enquanto falávamos da gravação no Rio da Vila, tentava-me recordar desse timbre, e ocorreram-me dois momentos do Vibra. Contudo, não consigo garantir se vêm de um rio ou se são sons sintetizados e se assemelham a um rio. Esta exploração sonora tem muitas camadas.

A composição do disco foi distinta para mim, ando a reflectir sobre isso. O processo de composição do Vibra acalmou-me, orientou-me para um sítio mentalmente relaxante. Acho que este tipo de música pode ser um novo silêncio. Hoje em dia nunca estás em silêncio. Ainda agora estamos aqui acompanhados por uma cover de Al Green [risos]. E acho que o Vibra tem a capacidade de fazer o ouvinte abstrair-se para um lugar de reflexão. Não é música ambiente mas faz-te viajar.

Esta música tem um lado contemplativo. Há momentos mais tensos, mas o disco nunca se afasta permanentemente dessa sensação.

Sim, não é um disco homogéneo. Também nunca vou conseguir fazer um.

A tua música tem coros, um quarteto de cordas, piano e uma armada de equipamento e instrumentos electrónicos. O que podemos esperar da transição do registo gravado para o concerto de amanhã?

O concerto vai ser ser realizado por mim no piano, sintetizadores e percussão electrónica, e pelo quarteto de cordas. Não vou usar o coro ao vivo porque, para além de ser logisticamente complicado levar um coro para o palco com a pandemia, eu utilizo-o mais como instrumento. Tenho formas de o fazer tocar durante o espectáculo. Por exemplo, na “Impermanence”, consegui cortar a voz da solista, isolei-a por notas e vou tocá-la num sampler.

A ideia do concerto é mostrar às pessoas como é feito e executado aquilo que elas ouviram no disco. Serve como referência visual, que acho importante partilhar. Não consigo representar o disco todo no palco, seriam precisas muitas mais pessoas. Mas retirei as componentes essenciais de cada música e vou tocá-las. Tenho também algumas backing tracks, mas vou tocar com elas e com os músicos, há uma interacção entre as duas partes.


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