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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/12/2023

Música da raiz.

Jovens do Hungo e Bonga no TBA: tradição e identidade

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/12/2023

Vestes tradicionais, instrumentos sem idade, vozes e corpos em sintonia, canções que contam a história de um povo antigo. Ouvir uma prestação dos angolanos Jovens do Hungo é ter a rara possibilidade de ligação a uma muito antiga cultura que a história moderna quase obliterou por via de circunstâncias de ordem diversa: culturais, claro, mas também políticas, sociais e até económicas. Ontem, num Teatro do Bairro Alto com lotação esgotada, entrou-se na sala às escuras ao som de percussões atmosféricas e foi ainda sem luz que se começou a ouvir uma voz, acapella, entregue a “Humbi Humbi”, tema tradicional de raízes fundas e que em tempos, n’Outro Universo…, se ouviu na voz de Melo D e até na de Kalaf. Prova clara de que não há fruto sem raiz.

De acordo com o programa da noite, em palco estiveram, nesta encarnação de um colectivo que tem história longa — nasceu em Luanda em 1989, estabeleceu-se em Lisboa em 1993 — e se vai, por isso mesmo e naturalmente, renovando, Manuel Tavares (hungo, puita, kissange, marimba), Victor Pedro (dikanza, matacu, magina), Manuel dos Santos (cão negro) (ngoma solo), Luís Pimentel (ngoma baixo), Francisco Marrasta (mukindo), Simon Eva (percussão), Alberto Feijó (guitarra), e ainda, nas vozes, Mamaro Kapasso e Silva Paixão, e finalmente, na dança, Manuela dos Santos e Catarina Panguana. Juntos e juntas, estes corpos e vozes e espíritos animados por uma noção de identidade ancestral assinam um espectáculo de uma beleza pura, com harmonias vocais de belíssimo efeito, estruturas de chamada e resposta que sublinham o aspecto comunitário desta música e polirritmias de apelo irresistível que ilustram bem de onde vêm outras músicas que os fluxos da história criaram, como o samba. De notar que hungo é um instrumento tradicional bantu que também conhecemos como berimbau e a puita é a tão tradicional cuíca, sinais vivos de uma cultura que há centenas de anos foi forçada a viajar, talvez até condenada a desaparecer, mas que soube encontrar uma forma de se manter presente e vibrante.

O programa da noite sublinhava que uma aparição dos Jovens do Hungo é coisa rara e isso ajuda a explicar alguns momentos de comunicação menos oleados, com alguma circulação em palco desnecessária, mas esse foi, de facto, pormenor de pouca importância numa apresentação que denota uma real paixão e um cuidado extremo com a preservação de uma cultura sem idade. Socorrendo-se de ritmos como a rebita, o quilapanga ou o semba e histórias cantadas em kimbundu, os Jovens do Hungo entregam-nos, sem quaisquer filtros de assomo modernista, sem qualquer cedência a algum tipo de facilitismo, música que alterna entre ritmos de cadência mais pronunciada ou dolente, mas sempre com execução imaculada. E, sinceramente, fica-se com a sensação de que é um privilégio poder escutá-los assim.

Para o final ficou a subida ao palco de Bonga, identificado como “padrinho” destes Jovens do Hungo. O veterano artista angolano falou muito, enalteceu esta expressão tradicional dos musseques, puxou da sua “mini-dikanza” e de uma harmónica e cantou um pouco numa voz que é tesouro universal e que, como fez questão de nos informar, ainda agora mereceu distinção por parte do estado francês. Mas Bonga é figura de outro tempo, que carrega um discurso desadequado com um presente que se quer inclusivo e seguro e que também por isso traz até este mesmo espaço do Teatro do Bairro Alto propostas como Fertilizar/Nutrir ou A Missão da Missão pelo colectivo feminino Aurora Negra, para dar apenas um par de exemplos. Significativo que tenha sido uma voz feminina no meio do público a pedir a Bonga para cantar em vez de falar, na parte final da apresentação.

Entre a preservação de identidades e culturas e a necessidade de transformação e evolução não pode haver barreiras, não se devem admitir desvios. Os Jovens do Hungo bastam-se nessa missão e carregam consigo música que nos ensina bem os efeitos da diáspora, a importância da memória e o quão cruciais são as noções de respeito e comunidade. E isso merecerá sempre aplauso.


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