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Fotografia: Svetlana Selezneva
Publicado a: 18/12/2019

Live in Moscow é o mais recente álbum do quarteto liderado pelo saxofonista português.

José Lencastre: “Tem que se gostar muito para se fazer esta música”

Fotografia: Svetlana Selezneva
Publicado a: 18/12/2019

Ao leme do Nau Quartet segue José Lencastre, jovem saxofonista dotado de vontade, energia e skill, capaz de navegar por diferentes águas, de enfrentar diferentes ondas, com a mesma precisão e entrega. O mais recente lançamento do Nau Quartet — projecto que mantém com Hernâni Faustino (contrabaixo), Rodrigo Pinheiro (piano) e o seu irmão João Lencastre (bateria) — documenta uma passagem pela Rússia, intensa e visceral como a música indica. É apenas uma das frentes em que Lencastre se move, tendo igualmente uma outra base de operações, um trio, em Amesterdão, onde se apresenta regularmente e onde editou também este ano o álbum Spirit in Spirit Live at Zaal 100 na FMR Records. Dois idiomas diferentes uma mesma e universal energia de partir a abrir por território improvisado e livre de quaisquer amarras. Afinal de contas, é mesmo quando as amarras se soltam que as naus melhor navegam à descoberta de novos mundos, certo?



Em quantas “frentes de batalha” é que estás activo neste momento nesta “guerra” da música? Que projectos é que tens à tua volta?

Além do Nau Quartet, tenho um trio, que esteve agora recentemente a tocar com uns holandeses, Raoul van der Weid e Onno Govaert, com quem gravei o Spirit in Spirit. Acabámos de fazer quatro concertos em Portugal na semana passada e vamos fazer em Abril alguns lá na Holanda. Por acaso amanhã também vou para Holanda, mas para tocar com outros dois músicos que moram lá, o Miguel Petruccelli e Aleksandar Scoric. Estivemos a tocar na Sérvia há um ou dois meses, isto tudo dentro da música improvisada. O Nau Quartet saiu agora com este disco. Com Felipe Zenícola e o João Valinho temos aí um trio que tem tocado algumas vezes e se calhar vamos gravar agora em Dezembro. Temos feito umas sessões, fizemos o primeiro concerto na semana passada, mas temos feito umas sessões regulares desde há uns meses e vamos gravar agora em Dezembro porque o Felipe vai, em Janeiro, para o Brasil uns tempos e estamos a tentar gravar antes dele ir.

Qual é o teu formato favorito? 

Ultimamente tenho gostado mais de um formato mais reduzido pela simples razão que é mais fácil expressarmo-nos num grupo mais pequeno do que numa big band. Eu participei nos últimos concertos da VGO (Variable Geometruy Orchestra) do Ernesto Rodrigues e pronto aquilo é super interessante mas estamos todos a contribuir para um todo e essa contribuição se calhar não é tão visível ou específica como quando estás num trio. Estamos todos à mesma a contribuir para o todo, mas doutra forma.

Economicamente também é bem mais fácil pôr um trio a trabalhar do que uma big band. 

Claro. Um trio, sem dúvida. E uma formação sem piano ainda mais, que é difícil arranjar piano. Acho que é uma das razões pelas quais o quarteto não toca tanto é porque cá em Portugal não há tantas salas com pianos que sejam bons. Hoje em dia cada vez conta mais.

Lá fora é diferente? É mais fácil encontrar um bom piano em qualquer sítio do que aqui, imagino. 

Sim, pela experiência que eu tenho tido, sim. Por exemplo na Holanda, onde tenho tocado bastante, isso é verdade. Em França, não tanto com música improvisada, mas noutro registo, mas tenho ido a sítios pequeninos que têm um anfiteatro com condições óptimas de som e de piano. Na Alemanha também.

Como é que aconteceu esta aventura na Rússia que rendeu este álbum para a Clean Feed? 

Foi através do Boris Lulinsky, que tem uma produtora lá, a Nobodies Music, a quem eu enviei o primeiro disco, o Fragments of Always. Ele gostou e fomos falando e falando. Depois eu soube que a GDA tinha aberto umprograma de apoio à circulação de espectáculos, concorri e isso ajudou-nos bastante porque tivemos dinheiro para pagar praticamente 100% das viagens. E então com isso depois o Boris pôs-nos em contacto com outros produtores lá e fizemos quatro concertos.

Ainda vai havendo algum dinheiro, apesar de tudo. É preciso saber procurá-lo, não é?

Sim, eu também não estou muito por dentro, mas sei que a GDA, por exemplo, tem apoio fonográfico. Toco numa banda de afrobeat, os Cacique’97, e tivemos há alguns anos esse apoio. E há este apoio à circulação.

Olha, a entrevista ainda agora começou e tu já por várias vezes mencionaste a questão de “neste registo, nesta área da música improvisada”. Tu és alguém que tem interesses em múltiplas áreas de expressão. Além da música livre e improvisada, acabaste de mencionar o afrobeat nos Cacique’97 e já passaste por outros projectos com jazz mais convencional. Como é que se muda o chip de uma coisa para a outra? É sempre o mesmo músico ou nem por isso?

É sempre o mesmo músico, mas mudo com certeza o chip. Tento sempre, ao tocar, dar à música aquilo que a música pede. Claro que eu se estiver num concerto de música improvisada, se calhar também pela maneira como os outros músicos estão a tocar, vou reagir de certa forma. Se eu estiver a tocar semba ou afrobeat até posso ir um bocadinho fora, mas não é isso que a música pede, então eu acho que o que tento fazer é tocar aquilo que a música pede. E tenho todo o gosto em fazer música improvisada, afrobeat, electrónica…

Qual é o projecto que concentra o essencial da tua atenção neste momento? É o Nau Quartet?

O Nau Quartet porque lançámos agora o disco, mas não concentra a 100% todas as minhas energias no sentido em que não tocamos todas as semanas, às vezes nem tocamos todos os meses…

Falo da realização artística, obviamente. 

Ah não, isso sim. É onde eu me sinto muito confortável a tocar. O trio também. Este com Raoul e Onno é incrível. Os concertos que fizemos foram muito bons. Dentro da música improvisada consigo expressar-me mais a fundo, digamos assim.

O que é que os teus companheiros têm que ter para tu lhes propores o desafio de “bora lá fazer uma aventura chamada Nau Quartet”. O que é que tu procuraste em cada um dos músicos que abordaste?

Primeiro que tudo são músicos de que eu gosto e que admiro. O meu irmão, cresci com ele a tocar e tudo assim, e ele também toca mais livre. O mesmo acontece com o Hernâni e com o Rodrigo. São altos músicos que eu admiro imenso, que me desafiam a tocar e que puxam por mim. Mas o que eu procuro acima de tudo são músicos que estejam mais ou menos nesse registo de que eu estava a falar, que estejam a ouvir e a interagir, porque mesmo na música improvisada, talvez mais no jazz mainstream, há muito aquela onda de estar a tocar malhas, tu podes estar em casa a praticar uma frase e chegas lá e queres à força pôr aquilo e se calhar não faz sentido nenhum. Ou seja, é importante ter músicos ao lado que estejam nessa de “bora lá”. E a música tanto pode levar-nos para um caminho muito forte e uma cena bué energética como pode ser uma coisa muita calminha. Mas vamos todos juntos nisso. Faz sentido o que eu estou a dizer?

Faz todo o sentido. Tu estás a falar de trabalhar com um quarteto de conterrâneos, praticamente, mas tens uma particularidade: no mesmo ano editas um disco com portugueses gravado na Rússia e outro disco com holandeses gravado em Amesterdão. Sentes alguma diferença cultural na hora de comunicar com músicos que falam português e com músicos que falam uma outra língua ou estamos sempre no plano da linguagem universal da música?

De forma geral estamos todos a comunicar na linguagem que é a música, mas há diferenças subtis. Quanto mais não seja, por exemplo, no que diz respeito à experiência: na Holanda eles já têm uma tradição de música improvisada para aí de 40 ou 50 anos e nós cá em Portugal não temos tanto essa história. Tocar com o Raoul, que tem 70 anos, ou seja, ele tem tanta história que isso transparece quando ele está a tocar. E ele viveu nos anos 60, quando surgiu o free jazz. Ele passou por isso tudo. O Onnor é mais novo que eu até, mas também tem uma cultura musical muito grande, tanto mainstream, como de música improvisada. Mas acho que lá há mais músicos, há mais espaços, embora no momento em que estejamos a tocar prevaleça essa linguagem e essa comunicação que todos temos, que é a música. De forma geral acho que eles se calhar têm um background diferente do nosso.

Arriscam mais por isso?

Não necessariamente arriscarem mais.

É um mindset diferente.

Talvez. Mas na hora de tocar é para tocar.

Olha, podemos desmontar aqui um bocadinho estas palavras da música livre e improvisada, começando pela ideia do livre. Isto é música livre de quê? O que é que pode aprisionar ali a música de que vocês se querem libertar? As estruturas, as convenções, a organização ocidental métrica? Do que é que vocês querem fugir?

Free pode ser nesse sentido técnico da música; pode ser a música sem estrutura. Num standard de jazz tens uma estrutura A-A-B-A, tens uma melodia que tens de tocar, uma progressão harmónica. No free é completamente livre, fica ao critério de cada músico tocar de forma melódica ou não, de forma mais harmónica ou não, mas o free surgiu como um manifesto social, acho eu. Na altura o free jazz era aquela coisa anti-sistema.

Falemos um bocadinho do processo. Estás no meio de um concerto nessa área. De repente sentes a tua cabeça a divergir para uma melodia clássica qualquer. Tu tens consciência disso e foges para um sítio mais atonal ou algo assim? Isso acontece?

É uma boa pergunta. Já me aconteceu estar num concerto de música improvisada e tocar uma melodia que acho bonita [risos] e foi na boa.

E sentes os olhares dos músicos?

Voltamos à mesma coisa: se eu tocar aquilo com intenção, ok. E eles à volta podem estar a ir completamente contra com aquilo que eu estou a fazer. Podem alinhar ou não. Mas já aconteceu estarmos em momentos muito fortes, alta gritaria e não sei quê, e às tantas vamos para uma coisa… lá está, há quem tenha preconceitos. Há uma polícia do jazz também no free.

E tu acreditas na ideia do improviso total ou improvisar é apenas usar um conjunto de recursos que se preparou, com que tu foste educado, que tu próprio construíste?

O ideal era não irmos com qualquer ideia pré-concebida em relação ao que vamos tocar, mas obviamente quando nós estamos a ter esta conversa, sabemos ambos a gramática portuguesa, e estamos a improvisar, digamos, mas temos que ter bases. Temos que estudar o instrumento.

Falando do Nau Quartet, por exemplo. Costuma haver um jantar antes dos concertos? Como é que é essa dinâmica? 

Sim, costumamos jantar, mas muitas vezes nem sequer se fala sobre o concerto. Às tantas é chegar lá e tocar.

Eu não faço ideia se o alinhamento do CD do Nau Quartet, deste gravado na Rússia, obedece àquilo que foi o concerto ou não, mas o disco começa contigo sozinho. Foi mesmo assim?

Foi, foi mesmo assim.

E isso foi planeado? 

Não.

Chegaste lá e foste tu o primeiro. 

Muitas vezes acontece não ser eu o primeiro a tocar nos concertos, mas lá fui eu que me cheguei à frente. Mas sim, não é uma coisa que nós combinemos. Às vezes, de forma até meio inconsciente, se fui eu que comecei esta, se calhar na próxima não vou ser eu. Se há alguém que está com mais vontade de começar… não há regras.

Falámos um bocadinho do que é que acontece antes do concerto. E depois? “O que é que estavas a pensar naquela malha que tu fizeste…” Há este tipo de conversas? Vocês depois analisam aquilo que aconteceu?

Há músicos com quem eu faço mais isso. No quarteto, por exemplo, quando acabou esse concerto, foi tipo, “fogo, foi brutal, ainda bem que gravámos”. No final costumamos falar de forma geral se correu bem, se houve momentos que correram melhor do que outros. Mas eu pelo menos nunca vou ao ponto de… só se for uma coisa que algum deles tocou que eu achei mesmo incrível, “bem, foi brutal o que tu fizeste aqui ou ali”, mas de resto não vamos ao ponto de “porque é que fizeste isto ou aquilo”. Tem de ser uma relação de confiança. Posso tentar a levar a música para um caminho, mas de repente alguém leva para outro e vamos todos.

Quando ouviste as gravações da Rússia, o que é que sentiste no documento como um todo?

Senti essa energia que sentimos logo a seguir, mas já com uma certa distância porque já não me lembrava de tudo o que nós tínhamos tocado.

A primeira vez que ouviste foi meses depois?

Sim. Na verdade eu gravei com o telefone e ouvi passado um bocado. Depois ouvi com uns ouvidos mais distantes e senti que tinha qualidade. Acho que tinha altos momentos lá e depois é sempre difícil escolher o que entrar no disco. Ou porque pode haver bastantes momentos que nós achamos bons ou porque às vezes é uma questão mesmo estética. Mas neste caso gostei bastante. E houve outras coisas que também achei que não estavam a funcionar tão bem.

Os temas são edits ou o que nós ouvimos é o que aconteceu em palco? Há cortes ou tipo mistura de duas músicas para fazer outra como o Teo Macero fazia com o Miles Davis?

Não, nem por isso. A primeira é praticamente a faixa toda seguida. A outra editei uma parte, mas quer dizer não há colagens de umas músicas com outras.

Foi só aproveitar o melhor sumo daquela parte. 

Sim, a primeira até acho que está mesmo toda completa. Por questão de tempo às vezes tira-se um minuto ou dois aqui. Está praticamente tudo, até porque estas faixas estão com alguma duração.

Vamos falar um bocadinho sobre esta questão da música livre e improvisada em 2019. É possível viver-se disto no Portugal de 2019? Há sítios para tocar?

Isso é difícil. Há sítios para tocar, sítios a pagar bem é que já não há tantos. Pá, e fecharam alguns sítios que eram muito fixes. Fechou o Irreal, o Logradouro da Bempostinha. Hoje em dia há o Desterro, há o Penhasco, há a ZDB, o O’culto da Ajuda, o Smup da Parede, que é muito fixe. Mas se vivesse só da música improvisada em Portugal… acho difícil. A não ser que um gajo tivesse concertos todos os meses no CCB ou na Culturgest.

Tem havido renovação tanto da geração que está em cima do palco a tocar como naquela que está no público a ouvir? Sentes que há novos públicos e novos artistas?

Sim, sim, bastantes. Novos artistas há imensos. Montes de malta nova mais interessada na música improvisada. Há uns anos havia um bocado aquela barreira. Há o pessoal do mainstream, há o pessoal da Trem Azul, havia um bocado isso. Mas hoje em dia não. Há malta que está a tocar na Superior e no Hot e que toca também free.

E até há uma circulação entre os dois universos, não é?

Sim, muito maior. Em termos de público acho que se mantêm algumas das pessoas que já seguem esta música há muito tempo, mas essa malta nova também traz público novo.

E as instituições? As Culturgests são importantes para a manutenção desta vibração?

Sim, sim, claro.

Sob esse aspecto até acaba por haver um apoio institucional para que esta música continue a existir, certo?

Sim. Eu lembro-me de ouvir pessoal mais velho a falar, e acho que nos anos 80 ou 90 todas as câmaras municipais faziam um festival ou promoviam concertos. A questão é que havia mais dinheiro. Hoje em dia não há tanto. Embora haja ainda o Festival de Guimarães, que é muito bom, o da Guarda, o de Portalegre, mesmo assim vai havendo, mas era fixe haver por exemplo se calhar mais a possibilidade levarmos esta música a mais sítios.

Olha, nós lemos notícias das grandes figuras americanas, os Cecils Taylors, por exemplo, a receberem subsídios na ordem do milhão de dólares de fundações americanas de apoio às artes. Sabemos muito bem que a gestão dos apoios às artes em países como os Estados Unidos é completamente diferente daquela que existe em Portugal. Mas em Portugal vão-se apoiando as outras artes, se calhar as artes plásticas, algum cinema, alguma literatura, outras artes performativas. Que lugar é que tu achas que o jazz ocupa nesse panteão? Sentes que é uma música que continua a ser ignorada por quem pode ajudar isto a avançar ou recebe a atenção que lhe era devida?

Pá, isto tem tido cada vez mais atenção nos últimos anos, mas ainda assim… Mas pelo que eu oiço, é isso, as outras artes vivem muito mais do apoio dos subsídios do que o jazz. Também, se calhar é mais fácil juntarmos aqui num canto uma bateria, um saxofone e um contrabaixo e começar a tocar do que fazer um filme, mas poderia haver mais, e até devia ser dado a conhecer a mais pessoas.

Eu no ano passado tive um experiência engraçada na Holanda. Estávamos a tocar num espaço e às tantas estavam lá vários teenagers, para aí uma turma de 20 putos, dos 16 aos 18 anos, isto porque o professor, que era belga, gosta muito deste género de música e disse: “eu quero dar-lhes a possibilidade de eles gostarem ou não gostarem”. Pá, tudo bem, um gajo pode chegar lá, não gosta e nunca mais quer ouvir isto, mas ao menos ouviu.

Mas pode haver um que diga “uau”, não é?

E houve. Se levares isto a algum sítio, há pessoal que se calhar nunca ouviu e há-de existir alguns que vão ser o nosso público. A questão é: se as pessoas não conhecem nem podem dizer se gostam ou se não gostam.

Eu lembro-me de, e não foi assim há tanto tempo, de ver na revista Wire um anúncio Ministério Britânico da Cultura a aceitar candidaturas para grupos de jazz fazerem digressões por escolas públicas. Naquela de captar novos públicos para o jazz. Isso cá é impensável, não é? Alguma vez tocaste numa escola pública para adolescentes? 

Toquei uma vez na Galiza, mas em Portugal não. Era um projecto interessante, mas não há essa iniciativa.

A pergunta derradeira é: tu achas que o jazz em Portugal, e o lugar que ocupa é obviamente por mérito próprio, chegou até onde chegou sem ajudas institucionais?

Acho que os músicos em geral gostam muito do que fazem [risos]. É mesmo só continuar a fazer.

Ser músico em Portugal é uma profissão de fé?

É, tem que se gostar muito, se não, pá, faz-se outra coisa [risos].


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