Mika Vainio. Experimentador sonoro incansável. Nome de referência para várias gerações de pesquisadores, divulgadores, músicos e promotores. Em antevisão a “Across Ø Around | Mika Vainio: a Tribute“, no Museu e no Auditório de Serralves entre 17 – 26 de Novembro, falámos com José António Moura (também conhecido como Novo Major).
Como ponto de partida o concerto de Pan Sonic (do qual Vainio fez parte), na 3ª edição do Festival Atlântico (1999), em que foi um dos coorganizadores. As impressões desse concerto, ainda hoje a preencher grande parte do imaginário de vários melómanos, os antecedentes, o contexto musical à época. Inevitável, igualmente, dar o mais que merecido destaque aos Cadernos de Divulgação [Marte Instantânea], cujo o Volume 1.1 teve recente edição. Obra de um outro experimentador sonoro, o próprio José António Moura. Partindo do seu arquivo pessoal conduz-nos por um percurso, o seu. Memórias de curiosidade e paixão, muita pela música.
[PAN SONIC E O FESTIVAL ATLÂNTICO]
“Eu e o Pedro Santos, tínhamos na altura [1999], um projecto chamado Major Eléctrico, que nasceu da nossa necessidade, que já era clássica, em fazer algo em prol da música de que gostávamos. Já fazíamos outras coisas — vendíamos a música e escrevíamos sobre ela. Tinha até gravado umas experiências sonoras, que na altura a Ananana editou em CD. Tínhamos a mão em quase todos os processos relacionados com a música. Penso que só nos faltava essa vertente de promover e organizar espectáculos ao vivo. Começámos o projecto logo a seguir a ter regressado de um festival em Viena, o Phonotaktik. Para nós foi o momento zero. Fomos como melómanos. Um festival de música electrónica que tomava conta da cidade e que acontecia em vários espaços — planetário, crematório, o topo de um edifício em construção, um autocarro. Sítios inusitados. Nós tomámos contacto ao vivo e, pela primeira vez, naquela concentração, com todos os nomes que eram consequentes na altura na electrónica mais ou menos experimental. Quando regressámos a Lisboa, vínhamos completamente inflamados e com vontade de finalmente fazer algo. Começámos esse projecto, Major Eléctrico, um prolongamento do nosso trabalho de divulgação individual. Cada um a fazer o seu caminho. A vertente principal era o que nós chamávamos acção digital. No fundo, DJ com uma vertente de improvisação. Nós nunca combinávamos nada. Cada um levava os seus discos, cada um tinha as suas fontes independentes, que depois se concentravam numa mesa de mistura. Paralelamente, estávamos cheios de vontade em organizar concertos com a música que na altura achávamos que era, vou dizer, vanguardista no campo da electrónica.
Como já estávamos activos enquanto DJs e já tínhamos feito qualquer coisa na ZDB, não sei se no aniversário da “Flirt”, que era um guia de Lisboa publicado pela ZDB. Colaborávamos, na “Flirt” escrevendo sobre música. Houve um evento na ZDB, que não me recordo agora, que, penso eu, levou a convidarem-nos para fazer a programação da terceira e última edição do Festival Atlântico. Uma programação independente de música, chamada Reset. O nome para nós era óbvio. O aproximar do ano 2000. Reset — o contador volta a 0. Havia toda aquela história do bug do milénio, dos computadores. A programação foi feita muito influenciada pelo que tínhamos visto em Viena. Penso que Pan Sonic tocaram em Viena. Não estou certo. O Felix Kubin tocou lá e foi programado cá no mesmo dia de Pan Sonic.”
[AS MEMÓRIAS DO CONCERTO]
“Para além de toda a excitação de estarmos ligados, à promoção e apresentação pública de música que nós acreditávamos, que é um buzz logo em si mesmo, houve o buzz do concerto, que teve a ver não só com o impacto do som físico, como com o impacto de ver as máquinas específicas que os Pan Sonic usavam. Máquinas essas que eram construídas por um amigo. Ou seja, eles não usavam equipamento electrónico habitual. Digamos que eram máquinas de fazer som. O terceiro elemento, o impacto visual, o modo como o vídeo estava coordenado com o som. Penso que se vi algo do género até então, foi no Sónar [Barcelona]. Os Coldcut com a Hexstatic, que era digamos, a equipa vídeo da Ninja Tune. Tinham feito um vídeo, “Timber“, em que as imagens correspondiam ao som. Nos Coldcut o som vinha das próprias imagens, que eles cortavam e manipulavam. Com Pan Sonic foi diferente. As imagens estavam ligadas às frequências sonoras e reagiam a essas frequências. A linha no ecrã, no caso vertical, que começava no silêncio. A linha ia-se movimentando de todas as formas e mais algumas de acordo com essa frequência e com o volume sonoro. Lembro-me que estes três elementos tiveram um impacto muito grande. Foi uma experiência sobretudo física, complementada por ver as pessoas a apreciar o que tínhamos programado.”
[AS MEMÓRIAS DO MIKA VAINIO]
“Há uma primeira camada que é o traço do povo. Percebemos que há uma maneira particular dos finlandeses falarem. Uma espécie de câmara lenta e um tom de voz muito grave. Em termos pessoais, quer o Mika quer o Ilpo Väisänen eram de poucas palavras, mas muito simpáticos. Ou seja, diziam aquilo que era necessário, quando era necessário.”
[MIKA VAINIO E O LEGADO PESSOAL]
“Confesso que não prestei especial atenção à carreira a solo do Mika Vainio. Não segui religiosamente a carreira dele. Para mim fazia parte do bolo Pan Sonic, digamos assim. Embora fosse muito fácil distinguir, a solo, o som do Mika do de Ilpo Väisänen, que tendia a ser mais rítmico e mais próximo do dub. Temos de ver, também, o contexto em que Mika Vainio gravava os discos. Como Mika Vainio tendia a ter um percurso mais abstracto, mais experimental, mais próximo do ruído. Como Ø era um som mais laboratorial, mais cristalino, mais minimalista, rítmico, mas muito pontilhista, muito esparso, muito económico em termos de paleta sonora.
Não posso dizer que tenha observado nada à posteriori depois do corpo inicial do trabalho como Pan Sonic e depois dos trabalhos a solo de Mika Vainio, que começaram antes de existirem registos de Pan Sonic, na altura ainda eram Panasonic. O que tenho muito presente com Pan Sonic, de acordo com o percurso que tinham até então, foi que fizeram a transição perfeita entre uma cultura de música electrónica experimental de raiz, vou dizer industrial, mais comum nos anos 80, que era muito a minha dieta musical na altura, e a minha dieta musical posterior que tinha a ver com techno e a música de dança. Os Pan Sonic, após uma reflexão breve da minha parte, foi fácil concluir que fizeram a transição perfeita entre o industrial e a electrónica mais dançável. Quando ouvi Pan Sonic pela primeira vez, o som era reconhecível. Fazia-me lembrar coisas com que convivi na segunda metade da década de 80 e já soava a coisas que eu começava a ouvir então. Quando saiu o primeiro álbum de Panasonic, o Vakio [1995], estava a começar a ouvir techno, trance, house e era ainda uma grande confusão, porque não era aparente de início o que era house, techno, trance. Era música com uma batida 4 por 4. Os Pan Sonic já estavam aí. Posso dizer que me acompanharam na minha própria transição, que é a palavra correcta neste caso.”
“É uma série que não está fechada. Não tenho uma ideia exacta de quantos números vão ser dedicados ao meu arquivo. A ideia surgiu por ter chegado a um ponto em que me apetecia fazer algo com o arquivo que tenho em casa. Sempre guardei muito material ligado ao meu trabalho de divulgação — playlists dos programas de rádio, as folhas de emissão com alguns dos textos que escrevia para ler, críticas a discos que fui escrevendo e tive a sorte de poder publicar em órgãos nacionais como eram o Blitz e o LP, fanzines como o Ibérico e o Die Neues Sonne. Ainda antes, fazia listas pessoais desde os 10 anos de idade. Todo esse acumular até chegar aos discos e aos inserts dos discos e às apresentações gráficas que complementavam, muitas vezes, as capas dos discos. Tudo isto se foi acumulando até que cheguei a um ponto que tinha de fazer algo que fosse, ao mesmo tempo, estético, gráfico e capturasse ali um percurso enquanto divulgador. Não me passa pela cabeça fazer uma biografia. Quem vê de fora e lê, conclui – “Ah, mas isto é uma biografia.” Para mim não é. É uma narrativa que está ao serviço do arquivo. A narrativa vai comentando os artefactos que vão aparecendo nos cadernos. No fundo, satisfazer-me a mim próprio e ver o meu próprio património, que é meu porque comprei os discos ou recebi-os “promocionalmente”. Agora sim, estou a tentar criar alguma coisa com base nesse fetiche pela parte gráfica e às vezes massuda da informação, que tentei filtrar em alguns dos volumes dos cadernos que já estão em progresso. Dar uma forma mais legível, digamos assim.
Há uma ordenação cronológica, mas há certas zonas onde esta é subvertida em prol de uma ordem temática. Por exemplo, estou a seguir a ordem cronológica e chego a uma certa editora ou artistas que depois ligam com outros, dois anos mais à frente, por exemplo. Vou buscar o arquivo a esse outro nome e colo ao que, nesse momento, estou a comentar em relação a determinado artista ou editora. Os temas basicamente têm a ver com o meu percurso pessoal. Primeiro como é que se começa, toda a parte de pré-história, digamos assim. Como é que se começa a ouvir música de forma suficientemente séria ao ponto de se querer divulga-la e mostrá-la a outras pessoas. A fase dos programas de rádio é outro tema. Foram quatro programas, sendo que um deles foi só uma temporada a substituir amigos meus. Outro são os escritos para jornais e fanzines. Depois há o lado gráfico que vai sendo espalhado ao longo dos vários volumes.
Fiz tudo sozinho, excepto a impressão, que foi na Desisto, e na revisão tenho a ajuda do Pedro Santos.”
[A LEITURA DO ARQUIVO E AUTO REFLEXÃO]
“A grande curiosidade que deverá estar na base das intenções de toda a gente que divulga música, mesmo antes de quando se começa a divulga-la. Uma grande identificação com o meio musical a nível pessoal e de personalidade. Acontece ou não acontece. Para mim, sempre esteve na base. Só depois é que se vê o que se vai fazer com a música. A música já lá está, não há uma vontade de divulga-la, sem antes ela já ter entrado de forma séria. O que noto, também, em termos de alterações, para mim, tem a ver com a escrita e com a vontade de divulgar a música e com o contexto e sabedoria, digamos assim, que era quase nula durante vários anos. Comecei com 18 anos a escrever sobre a música desse presente, que para mim já significava um certo futuro. Na altura com uma componente electrónica forte. Essa vontade criava textos muito rapidamente. Esses textos lidos hoje em dia — por amor de Deus! Não são de todo de referência. A minha intenção com os Cadernos em mostrar boa parte desses textos não é dizer às pessoas – “Olhem como se fazia.” Não. É precisamente mostrar como é possível começar a fazer, mesmo sem ter background quase nenhum. Não conhecia nada do que tinha sido feito antes. Entrei para a divulgação de música de chapa. Não me preocupei minimamente em estudar o que veio antes — esta banda era influenciada pela outra, quem foram os pioneiros. Não sabia quase absolutamente nada. Enquanto fui fazendo, fui aprendendo. Para mim foi uma virtude, pode ser um defeito para outros. Demorei muitos anos até ter o background necessário. Muitos anos, mesmo. Só lá para os trintas e tais anos é que parei um pouco e reflecti sobre o que veio antes da música que gostava.
Há transições estéticas muito claras para mim, motivadas pela curiosidade, mas a partir de certa altura, também muito pelas relações que tinha. Tudo isso mexe com a nossa percepção, dirige-nos para outros caminhos que nós não víamos. Alguns gravaram muitas cassetes para mim. Isso foi importante para receber outros estímulos, porque não tinha dinheiro para comprar todos os discos que queria. As cassetes eram um meio barato de ter acesso a muita música. Do lado estético — primeiro a pop electrónica e o post-punk, de raspão, que ouvia quando era mais miúdo. A fase monástica, como chamo no primeiro volume dos Cadernos, dedicada quase exclusivamente ao Mike Oldfield. Música mais orgânica, deixei a electrónica de parte. Depois o industrial, a electrónica mais de quarto — electronic listening music — depois o techno, house, trance e toda família de música de dança que derivava da disco. A seguir o industrial. Um flirt com o metal, que durou pouco tempo. Comecei a perceber que muitos dos nomes que seguia na cena industrial fizeram essa transição para a música de dança, ali no virar da década de 80 para 90.”
[“ACROSS Ø AROUND | MIKA VAINIO: A TRIBUTE” — UMA RECOMENDAÇÃO]
“A curiosidade maior que teria, porque nunca tive esse privilégio, seria observar o trabalho sonoro do Mika Vainio aplicado a um contexto de instalação visual.”