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Publicado a: 16/07/2018

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[TEXTO] Miguel Alexandre 

O caminho para o estrelato de Jorja Smith foi moroso, mas frutífero. A uma certa altura, a cantora experienciava as luzes da ribalta pelas mãos de outras pessoas, sempre de acordo com uma perspectiva secundária. A longo prazo, porém, cada decisão parecia uma aposta num futuro que ainda era distante, mas que Smith o previa desde então. Afinal, o que é realmente demoroso para uma jovem de apenas 20 anos? Num curto espaço de tempo, a carreira tomou um rumo inesperado que a levou a parecerias com Drake, uma presença na banda sonora do filme Black Panther, uma oportunidade de actuar com Bruno Mars e o topo da British Critics’ Choice Awards. Jorja ainda é jovem, mas a sua alma é versada e tal facto transparece no seu álbum de estreia, Lost & Found, um trabalho emocionalmente despido de pretensões, reduzido estruturalmente ao essencial: a voz pura e límpida de Smith.

Lost & Found é tímido no seu começo, mas ganha stamina consoante o desenrolar das faixas. A abordagem da artista em busca de auto-conhecimento é compassiva e paciente, o que demonstra de partida uma sabedoria prematura entre os seus contemporâneos. Enquanto também se perde em rituais triviais de amores não-correspondidos, relações quebradiças e inseguranças superficiais, Jorja parece estar sempre a um passo à frente da sua audiência – tal se verifica na canção da qual retira o título do álbum, a primeira no alinhamento, onde canta: “Why do we fall down with innocene still on the ground?”.

Ao longo das doze músicas, Smith vai fazendo várias perguntas, mas em nenhuma parte ela exige respostas. Em “Teenage Fantasy”, o terceiro single que brinca já com tenuidades mais pop e vibrantes, é imposta a questão “do I really see this boy, that I think I’ve fallen for?” – é uma interrogação retórica, tal que a própria sabe, mas de que se esquece por momentos. Os temas circundantes de Lost & Found colocam-na no centro do seu próprio novelo existencial. Aliás, este é um trabalho onde a melancolia dos conflitos interiores advém de experiências só dela, todas elas feitas na primeira pessoa, à espera de uma resolução.

A fragilidade e a solidão são aqui ferramentas de empoderamento e afirmação. A produção, por sua vez, acompanha cada pedaço do seu coração desfeito. Ao seu lado, estão nomes como Jeff Kleinman (Frank Ocean, Anderson Paak), Michael Uzowuru (Vince Staples, Frank Ocean, Kevin Abstract) e Charlie Perry, que parecem ter tido um papel relevante, contribuindo para que as canções, estruturas e melodias nunca sejam derivativas, assentes em instrumentações frívolas ou aproximações mais presumíveis, mas antes marcadas por climas serenos, ritmos em câmara lenta e arranjos deleitosos.

Tal se verifica em “Where Did I Go?”, publicada pela primeira vez em Maio de 2016. A sua execução é suave, destacando-se pelos hooks insinuantes e sedutores, que podiam-se facilmente encaixar nos vocais quentes e sussurrantes de Skye Edwards, a vocalista dos Morcheeba. Mas Jorja Smith não sussurra, ela prende. A sua capacidade vocal mostra-se como uma faca de dois gumes: um talento inato, mas que a impede de entrar em terrenos musicais mais arrojados.

 



Há comparações evidentes a Amy Winehouse, Erykah Badu ou até mesmo Alicia Keys – o que até é compreensível: os falsetes em algumas baladas, como “February 3rd”, relembram os momentos mais doces de Baduizm, enquanto “Wandering Romance” penetra subtilmente no catálogo de Frank, precisamente em instantes tão exuberantes como no refrão “After breaking down my heart/Take it how you want it/Take all my love”.

No entanto, a referência mais óbvia é irrefutavelmente a Lauryn Hill. Em “Lifeboats (Freestyle)”, Smith fala sobre privilégio social, disparidade salarial e o fracasso do Estado de providência e de bem-estar, tal como uma jovem Hill o fez no final dos anos 90, apontando o dedo ao governo e ao seu tratamento de cidadãos marginalizados. Quando o tema se foca em assuntos socialmente tétricos, o trabalho lírico camufla-se suavemente.

Lost & Found prospera num ambiente minimalista e emocional, tendo como instrumento central a voz de Smith. Tal responsabilidade faz com que a produção seja por vezes negligenciada e reduzida a platitudes – é o que acontece com “Goodbyes” e “Don’t Watch Me Cry”: introduzidas por uma guitarra ou um piano isolados, não se igualam à força que recai nos vocais principais e ficam em segundo plano. Não é um pecado agravante, até porque só reforça o talento inigualável da cantora. A maior parte deste trabalho revela-se de forma enxuta e fá-lo sempre de maneira elegante e emocionalmente íntegra. Jorja Smith tem em si a capacidade de comunicar com o ouvinte de um modo universal e consegue-o de uma forma intensamente pessoal.

 


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