Pode um antigo esteta da música indie sobreviver à faca da cultura do cancelamento? O regresso de John Maus às edições parece responder afirmativamente. É isso, pelo menos, que sugere a receção do seu novo álbum, Later Than You Think, o primeiro do músico norte-americano em sete anos e que tem servido de mote para uma extensa digressão europeia (a 9 de novembro, atua no Cineteatro Capitólio, em Lisboa).
Maus não é alheio a controvérsias. Em 2021, foi avistado junto ao Capitólio dos Estados Unidos, momentos antes da escalada que culminaria no motim de 6 de janeiro. Com ele estava o compatriota Ariel Pink. Embora tenha afirmado não ter participado na invasão ao prédio que serve de sede do poder legislativo federal americano, a sua presença no local resultou em duras críticas por parte de fãs descontentes, que exigiram, com sucesso, a sua exclusão do cartaz do festival ElectroniCON, em 2023. Espanta, por isso, o apoio prestado à promoção do seu novo álbum.
Lançado nos metros finais de setembro, Later Than You Think conta com o carimbo de uma editora badalada (a Young, que abriga trabalhos de FKA twigs, Kamasi Washington e Jamie xx), um técnico de som de topo (Heba Kadry, responsável pela masterização de obras de Jenny Hval, Lingua Ignota, entre outras cantoras vinculadas por um forte ideal feminista), além de uma campanha de telediscos e vídeos promocionais filmados com a colaboração de alguns dos talentos mais promissores do momento. Sete anos depois de Addendum, tudo parece jogar novamente a seu favor, com o músico a dispor agora de meios e recursos que há 15 anos apenas sonhava ter. Um apoio em tudo distinto daquele que tem sido concedido ao cúmplice Pink, que continua a operar à margem da crítica (este ano editou With You Every Night, sem qualquer atenção por parte da imprensa).
O que distingue, então, estas duas figuras que ajudaram a definir o tecido indie do último quarto de século? E será Later Than You Think suficiente para recuperar o respeito junto da crítica? Em parte, essa diferença explica-se pelas justificações (arrancadas a ferros) que Maus se viu forçado a dar nos últimos anos, tentando enquadrar as suas ações passadas, ainda que nunca se tenha desculpado por completo. “Pensei que o meu legado falaria por si”, disse recentemente à Stereogum.
Num momento em que as guerras culturais tendem a perder fôlego, Maus parece ter encontrado finalmente o caminho para o seu reaparecimento. E é precisamente isso que nos traz até Later Than You Think. O seu primeiro avanço, “I Hate Antichrist”, foi apresentado como sequela espiritual de “Cop Killer”, ponto alto do álbum We Must Become the Pitiless Censors of Ourselves, de 2011. Com ele partilha uma tensão política evidente: Maus terá dito que a canção nasceu com base em relatos que amigos partilhavam em chats de grupo, após se depararem com as contas aviltantes dos seguros de saúde. O refrão, “I Hate Antichrist”, surge assim como interjeição, uma inquietação em torno de um sistema onde a saúde é transformada em mercadoria. A denúncia não é panfletária, mas emerge do choque entre quotidiano e estrutura social. Formalmente, o tema aproxima-se mais de “Quantum Leap”, também desse disco de 2011, partilhando a mesma linha de baixo pulsante em torno do qual tudo o resto gravita. Da mesma forma, temas como “Reconstruct Your Life” (balada synthpop reconfortante) e “Came & Got” (polifonia renascentista de arpejos e tensão pós-punk), não se afastam muito da repetição de fórmulas testadas no passado (a música do norte-americano é, afinal, fundamentalmente retrofuturista).
A segunda metade é menos uniforme, pecando por alguma inconsistência. É o segmento mais experimental do disco, reunindo nessa secção cantos gregorianos (“Adorabo”), a introdução de uma nova língua (“Tous les gens qui sont ici sont d’ici”, cantada em francês) e fragmentos que saltam como memórias ou apontamento inacabados, raramente ultrapassando os dois minutos de duração. Em “Losing Your Mind”, um ruído tonitruante irrompe de forma abrupta, como se as vozes que assombram o autor nos invadissem de repente (Maus foi diagnosticado com bipolaridade, embora questione a precisão dos rótulos clínicos). Os refrões tendem a ser elípticos e resumem-se muitas vezes à condição de verso (como em “Let Me Through”) ou de uma só palavra (é o caso de “Tonight”). Pode não acrescentar muito ao cânone hipnagógico do músico, mas também não o mancha.
Maus não passou totalmente impune ao olhar implacável do cancelamento. À data de publicação, Later Than You Think permanece ausente do agregador de críticas Metacritic. Ainda assim, com o cunho ambíguo que sempre o distinguiu, foi conseguindo passar pelos pingos da chuva. Saiu de lá com algumas cicatrizes, é certo, mas sobreviveu — e resiste. Later Than You Think é, por isso, um convite a pensar sobre o apagamento e as formas de censura que se instalaram na música depois do #MeToo; sobre como o tempo e as circunstâncias podem reabilitar reputações, ou ajudar a suavizar memórias. Se não for por mais nada, faz-nos refletir sobre um assunto que foi durante muito tempo negligenciado, acrescentando corpo e valor ao debate. E isso, por si só, é um feito do qual John Maus se pode gabar.