pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/10/2019

O multifacetado artista lisboeta lançou o primeiro acto do seu álbum de estreia no início deste mês.

João Tamura: “Não vivo da música e também não quero, nunca tive esse objectivo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/10/2019
Desde 2 de Outubro que podemos ouvir Singapura, o primeiro acto do primeiro álbum de João Tamura, rapper, poeta e fotógrafo lisboeta, que tem uma identidade bem vincada no complexo e multifacetado mapa do hip hop português. Tem cinco faixas e Miguel Ropio é o único convidado que partilha o microfone com Tamura, além de também tocar guitarra e baixo neste projecto. Ropio é ainda o responsável pela editora independente Discos Distopia, pela qual saiu Singapura — cidade-estado asiática que Tamura visitou durante o processo criativo deste álbum e que o marcou bastante. Este disco conta com beats de Holly, txmmy e Sien, além de sons de guitarra de Vasco Completo, colaborador do Rimas e Batidas, e scratch de DJ Link, ele que gravou, co-produziu, misturou e masterizou a grande maioria deste álbum no seu estúdio. João Tamura descreve-o como o “grande impulsionador” deste projecto. O Rimas e Batidas visitou João Tamura na sua casa em Benfica para uma conversa franca sobre o seu álbum, o processo de construção do disco, a sua visão do hip hop actual, as mudanças em Lisboa e o porquê de nunca ter lançado o EP com Holly e Harold, entre outros assuntos.

De que forma é que este disco se começou a formar e a desenvolver neste teu percurso?  Foi para aí há dois anos, quando comecei a escrever “Os Paraísos”. Até aí não queria lançar um álbum, e eu achava que não tinha tempo para lançar um álbum. E por isso é que demorou quase dois anos a ser feito. Mas foi feito em grande parte pela ligação que comecei a ter com o DJ Link.  Já tinhas antes ou foi durante este processo?  Eu gravei uma participação para o disco dele, que entretanto também irá sair, mas que foi reimaginado e então acho que a minha participação não vai entrar. Mas comecei a trabalhar com ele, e ele é que me puxou para eu fazer um disco com as canções que já tinha em mente. Ele disse que o gravaria, que o misturaria e que me iria ajudar. E se não fosse a ajuda dele eu não conseguia gravar um disco, de todo. Não ia gravá-lo em casa. E porque não tenho tempo também não ia estar a alugar estúdio nem a pedir favores a milhares de pessoas para me estarem a fazer coisas que não consigo fazer. O grande impulsionador do disco foi mesmo o Link.  A partir do momento em que percebeste que tinhas oportunidade para fazer um disco, como é que pensaste neste disco em concreto? Foste buscar letras que já tinhas, criaste tudo de raiz, como foi?  Foi tudo criado de raiz. Quando comecei a gravar com o Link, tinha o “07/Março/93” e mais três instrumentais do txmmy, que é um chavalo de Guimarães que me produziu bastante o disco. Depois coleccionei mais instrumentais e foi pouco a pouco. Inicialmente o álbum não se ia chamar Singapura. Quando imaginei o disco o primeiro título era Cidade Sem Nome. Mas exactamente há um ano fui para Singapura e a maior parte das letras, da imaginação e do universo que criei para o disco foram feitos lá.  A viagem inspirou-te mesmo?  Ya, bué, sem dúvida. É um sítio bué especial. Mas acho que todos os lugares certamente têm alguma coisa de especial. Lisboa, para mim…  Também sempre foi uma grande fonte de inspiração para ti.  Mas deixou de ser. Continuo a ter referências nas músicas, porque obrigatoriamente estou muito ligado à cidade. Mas hoje em dia, e o disco fala bué sobre isso também, já não tem nada a ver com a cidade onde cresci. Tornou-se numa outra cidade, pela qual não tenho grande interesse. Por exemplo, eu vivo em Benfica, trabalho no Figo Maduro, ao pé dos Olivais, e demoro uma hora e meia de transportes a ir todos os dias. Quando estou a uma distância de cinco ou dez minutos de carro. E Lisboa tornou-se confusa e cara demais para mim.  E do que é que gostaste mais em Singapura?  Foi um escape, é uma cidade bué interessante, com culturas diferentes, e é um universo totalmente distinto. Mas acho que podia ser Tóquio ou Hong Kong, não é por ser Singapura em específico, mas sim por ser um universo totalmente diferente daquele onde estou. E foi um choque positivo que me obrigou a criar, digamos assim. Marcou-me ao ponto de eu criar as canções desta maneira.  E qual era a ideia inicial para Cidade Sem Nome?  Eu tenho sempre esta ligação muito geográfica à música. Aliás, o meu primeiro EP chama-se Hokkaido. Este ia ser Cidade Sem Nome porque era um bocado uma facada a Lisboa [risos], como se já estivesse tão descaracterizada em comparação com aquilo que eu conheci, como se agora fosse um lugar distópico.  Como é que funciona o teu processo criativo? Suponho que no teu caso primeiro venha a letra e só depois o instrumental, não?  Sim, pode-se dizer que sim. Eu escrevo bué, estou sempre a escrever, todos os dias escrevo. Com os telemóveis é fácil estar sempre a apontar frases, citações ou ideias. E na maior parte das vezes escrevo sem instrumental. Quando encontro um instrumental de que gosto e onde me encaixo faço o esforço de compilar as coisas que tenho escritas, dou-lhes uma direcção e encaixo-as num instrumental de uma maneira ou de outra. Mas já tive as duas maneiras. Eu faço as coisas como faço porque um dos meus grandes focos é, claro, a letra. Gosto de escrever, e se não tivesse a música como veículo de expressão eu escreveria à mesma. Eu escrevo e depois a música é uma maneira de pôr cá fora as coisas que escrevo.  Como é que conheceste o txmmy, o tal produtor de Guimarães?  Foi pela Internet. Ele mandou-me instrumentais na altura e ele é super talentoso. Eu nunca tinha ouvido nada dele e o primeiro que ele mandou foi o do “Terra”, da primeira canção. E fiquei super apaixonado pelo instrumental. Na altura até seria o single, mas depois caguei e lancei tudo de uma vez. Depois ele enviou-me mais dois beats, o “an24seplissin” e o “Lábios”. E são todos super diferentes daquilo que geralmente me mandam. São instrumentais bué musicais onde tenho liberdade para imaginar o que vou fazer e para escrever as minhas letras à vontade, sem grandes pressões.   Como é que foi pensar na concepção do disco?  Foi tudo com o Link. A base é digital, mas depois fomos percebendo que ficava bem ali um baixo real, uma guitarra real, acrescentos de bateria ou de piano. E é fixe porque dá uma outra roupagem ao beat que por si só já é bastante musical. Em futuras apresentações ao vivo, que espero que aconteçam — não muitas, mas algumas — como vou actuar com banda, é fixe que os beats também tenham esses instrumentos por trás. E o Link é mesmo a mente por trás do disco a nível sónico. Se não fosse ele o disco não existiria. Ou, se existisse, seria bué diferente.  E tu já tinhas tido esta vontade anteriormente, de ter mais instrumentos nos beats?  Sim, tal como já tinha vontade de ter o disco, só que não tinha os meios para concretizar essa vontade.   Foi só por causa disso que não chegou mais cedo? Até tens um EP e muitas faixas soltas.  Tenho, sem dúvida. E hoje em dia há aquele discurso de “será que vale a pena gravar um disco” versus “lançar canções soltas”.  Também te debateste com essa questão?  Não, porque cresci com o disco. E mesmo hoje em dia o meu carro tem leitor de CDs, e eu tenho sempre álbuns comigo. E sempre quis lançar um disco. Se eu pensar no Nas, não vou pensar num single que ele lançou, vou pensar no Illmatic. Se pensar no Jay-Z, a mesma coisa, vou pensar no Reasonable Doubt. Se pensar nos Outkast, vou pensar no ATliens. O formato de disco sempre me marcou bué, então eu, enquanto criador, sempre quis ter um. Esta foi a oportunidade para tal, apesar de ter demorado muito tempo, pelas minhas limitações a nível de tempo livre, por causa do trabalho. Só conseguia gravar às folgas e em todas elas ia ter um pouco com o Link para avançarmos mais um pouco no disco. Queria descansar mas ia pegar no carro para ir ter com o Link. E depois chegar a casa, ouvir a cena e pensar que não ficou fixe e na próxima folga tinha de voltar para fazer a cena. Depois foi a batalha da mistura e masterização. Mas acho que era agora ou nunca.  Porquê?  Porque antes não tinha de todo as condições, e sei que com o desenrolar da vida cada vez mais terei menos tempo para dedicar à música. Porque eu não vivo da música e também não o quero, nunca tive esse objetivo. Faço-a como uma paixão. Mas o que é verdade é que a vida hoje em dia menos tempo me dá para eu me dedicar às paixões que tenho. Com a fotografia é a mesma coisa.  Mas mesmo que não tenhas como objectivo viver da música, é algo que tencionas continuar a fazer?  Sim, claro. Mas se calhar em vez de dedicar todas as folgas num ano a gravar um disco, se calhar vou dedicar duas de mês a mês. E sei que, claramente, com esse ritmo de trabalho não vou conseguir fazer mais nenhum disco. A não ser que demore quatro anos a fazê-lo. E as coisas hoje parece que passam muito rápido, que são quase descartáveis.  Também vês isso na música actual, no hip hop contemporâneo? Não te revês nele?  Não me revejo em tudo, mas nada contra. Não critico os músicos, mas a maneira como as coisas se reflectem e se movimentam à volta das criações. Por exemplo, imagina que eu tenho 60 minutos de vida. É na boa que eu passe dez minutos a ouvir canções sobre carros, jóias e dinheiro. Não tem mal nenhum, porque em dez minutos da minha vida quero estar distraído e não pensar noutras coisas e só estar a curtir. Não é que me reveja na letra, mas não tem problema nenhum. Durante aqueles dez minutos vou gostar. Mas, pessoalmente, não quero passar os 60 minutos a ouvir esses temas. Tem que haver uma variedade de temas, tal como tem de haver de sons. E parece que nós estamos só focados em fazer a mesma coisa. Por exemplo, vou fazer uma viagem de Lisboa a Coimbra, e ligo a rádio e durante uma hora as cenas soam-me todas ao mesmo. É tudo a mesma repetição a nível de letras, de som, de drum kits. É bom que haja de tudo, mas imagina que estou num centro comercial às compras e estou a ouvir boom bap durante duas horas. Ou fado durante duas horas. Não pode ser, mano. Tem que haver cinco minutos para pensar, cinco para relaxar, cinco para ir correr. E a música é muito um reflexo de estados de espírito.  E achas que a vida não está a ser bem reflectida na música em geral?  Sim, é um bocado isso. A vida é uma tela, com várias cores, várias nuances. Tudo tem que estar cá fora, e acho que é bom que esteja em proporções iguais, mas se não estiver tudo bem, pode ser 50% de música para um gajo se distrair. Acho é que não pode ser 99%. A culpa não é do artista, acho muito bem que criemos aquilo que realmente nos dá gozo e que nos dá vontade de criar. Acho é que depois todos os veículos para a divulgação dessa música se focam sempre naquilo que é mais fácil e naquilo que mais facilmente agrada ao ouvido das pessoas e tudo o resto é deixado para trás. Se calhar o público também tem alguma culpa nisto, porque um gajo abre as trends do YouTube e é tudo igual, mano. Se calhar estou a ser injusto, mas é quase [risos].  Como o hip hop é tão ligado à palavra, e como tu és tão ligado aos versos, à poesia, achas que no rap se perdeu o amor à palavra?  Não, acho que não. Acho que há pessoas que escrevem bué bem, se calhar cada vez melhor. E mesmo em Portugal tens exemplos disso: o Virtus, o Sam, o Tilt… Acho é que hoje em dia claramente não tens de ter uma boa letra para ter uma boa canção ou para a tua canção bater e estar na rádio. É a parte sónica que conta. Não me revejo nisso, só quando são os tais 10 minutos. No resto do tempo estou mesmo focado em ouvir letras e quero ouvir palavras que me digam algo e que me toquem. Sinto que de facto poderia haver uma distribuição maior e melhor desse coeficiente de letra versus foco sónico. Porque acho que há pessoas que escrevem bué bem, mas no geral não é essa a música que me dão a ouvir quando estou num espaço público. Há algumas excepções, claro. Mas é muito mais fácil teres uma canção a tocar se tiver um refrão que soe bem, do que se tiver uma boa letra. Se bem que tudo isto do bom e do mau é eternamente subjectivo. Mas eu não tenho nada essa cena de ter de fazer aquilo porque está a bater. Não, estou-me a cagar.  Como é que se deu esta ligação à Discos Distopia?  É do Miguel Ropio, que é meu amigo. Acredito bué na visão dele, tanto na música como nele enquanto pessoa. Eu ia lançar o disco de forma totalmente independente, depois tivemos algumas propostas de editoras, nas quais não tive interesse. E depois liguei-me ao Miguel naquela de nos ajudarmos mutuamente. Ele também não tem uma visão nada mercantilista da música e da arte. E sobretudo é bué fixe trabalhares com alguém que tem uma visão similar à tua e que tu sintas. Ele está a lançar vários projectos interessantes e também temos outras coisas em conjunto. E as labels que me abordaram tinham sempre… contratos de 30 páginas, tipo entidade laboral. Eu trabalho para uma empresa grande e nunca tive um contrato de 30 páginas. Nada contra, mas não me revejo nisso. Mas ainda bem que o pessoal consegue estar a viver da música em Portugal. Mas não é o meu objectivo.  Nunca foi o teu objectivo?  Não, não. Para mim, a partir do momento em que a música se torna uma obrigação para teres jantar na mesa… Eu tentei viver da fotografia e nunca odiei tanto fotografar como nessa altura. Eu agora chego à minha folga, pego na minha câmara e vou dar uma volta só porque sim. Eu passava uma semana com a câmara na mão por obrigação e quando chegava à minha folga eu não tinha vontade nenhuma de fotografar. Imagino que com a música seja a mesma coisa e não quero sequer entrar por aí. E não quero ter a obrigação de escrever, “daqui a dois meses tenho de ter um single ou um disco cá fora”. Ainda bem que há pessoas que gostam de o fazer, que surgiu essa porta, mas não é mesmo para mim.  Porque é que aquele EP com o Harold e o Holly nunca chegou a ser lançado?  Foi uma questão de disponibilidade dos três, com muita pena minha, porque gostava bué que tivesse acontecido. Estava tudo escrito, mas quase nada gravado nem misturado, faltava muito. Continuamos super amigos, mas foi mesmo um problema de disponibilidade.  Mas estavas-me a dizer antes da entrevista que recuperaste algumas dessas letras para algumas participações, não é?  Sim, porque continuam a fazer sentido. São sobretudo frases e ideias que reutilizei.   E essas participações vão sair em breve?  Que eu possa anunciar tenho pelo menos uma participação com o Vasco Completo numa cena dele. E tenho também cenas com o Ropio e o Link. Tenho outras coisas gravadas com outro pessoal que não sei se posso adiantar ou não.  E gostavas de fazer mais participações ou trabalhar com pessoas mais fora do meio do rap?  A minha cena de trabalhar com o Ropio também é isso. Ele é um multi-instrumentista, a música que ele faz é mais rock, lembra-me as músicas de Abril e todas as participações que faço com ele são num universo muito distante do meu, e isso motiva-me bué. Temos aí uma canção a sair, uma colaboração, que não tem nada, nada a ver com rap. É um instrumental super rock mas que a meio tem o BPM exacto para eu encaixar. E isso que disseste é um dos meus maiores objectivos, mas como não depende de mim exclusivamente é daquelas coisas que, se acontecer, acontece.   Porque é que quiseste fazer o disco separado em vários actos?  A principal razão é por ter, assim, vários actos separados temporalmente e por conceito e sonoridade. Se lançasse tudo de uma vez, na minha cabeça não sairia tão bem. Claro que no fim quero lançar a versão física de tudo, num só disco, mas quero este seja partido por actos separados — tanto na data de lançamento, como no seu conceito, sonoridade e ambiente. 

pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos