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Publicado a: 22/02/2017

João Salaviza: “O rap continua a ser, mais do que um escape, uma forma de sair da invisibilidade e do silêncio”

Publicado a: 22/02/2017

[ENTREVISTA] Francisco Noronha [FOTOS] Direitos Reservados

 

Conversar com João Salaviza significa, antes de mais, conversar com um cinéfilo – o cinéfilo por detrás do realizador (e, surpresa, com um apreciador e conhecedor de hip-hop). Não é coisa de somenos, sendo isso que explica que não tenhamos sentido aquilo que tantas vezes acontece quando conversamos com alguém cujo trabalho admiramos: não a “desilusão” pueril com o facto de o entrevistado não ser “simpático” ou “como imaginávamos”, mas porque nem todo o artista é tão interessante a fazer a sua arte como a falar – e a pensar – sobre ela. Um realizador fabuloso pode ser um tipo desinteressantíssimo – e não apenas por presunção ou falta de pachorra – no momento de trocar ideias sobre os seus filmes.

Salaviza, pelo contrário, é alguém cuja visão e diálogo sobre os seus filmes é tão ou mais interessante do que o visionamento dos mesmos (“Mas eu quero que os filmes sejam sempre mais interessantes do que eu falar sobre eles!”, ressalva), alguém genuinamente interessado em ouvir e apreender as leituras que o espectador faz dos seus filmes, em adoptá-las ou refutá-las, enfim, em discuti-las.

No ano em que Portugal conseguiu o feito histórico de arrecadar, pela mão de Diogo Costa Amarante, o terceiro Urso de Ouro de Berlim em cinco anos (!) com o belíssimo Cidade Pequena (do qual tivemos a oportunidade de ver a estreia no Curtas Vila do Conde do ano passado), Salaviza esteve também em competição, juntamente com Salomé Lamas e Gabriel Abrantes, na secção de curtas com Altas Cidades de Ossadas, jornada intensa e imersiva de Karlon, um homem e um rapper (o facto de sublinharmos esta dualidade não é por acaso), numa selva fantástica e convocadora de fantasmas e memórias de uma indivisível psique colectiva (Portugal e a sua relação com as antigas colónias) e individual (Karlon e os seus demónios interiores). A consistência do cinema português, visível também noutros âmbitos que não exclusivamente os dos festivais, faz dele um fenómeno que, se não partilha de um substracto comum (nem na substância nem na forma) que lhe permita assumir-se como um movimento artístico personalizado (como permitiu, por exemplo, à chamada “Nova Vaga” do cinema romeno dos anos 2000), lhe assegura, em todo o caso, um lugar singular e sedutor junto do olhar externo.

Mas este é também o mesmo ano em que a turbulência do cinema português (o “milagre português”, como há dias lhe chamou o Libération) está mais visível do que nunca com a polémica em torno do novo modelo legal proposto, mas ainda não aprovado, para a nomeação dos júris dos concursos de apoio promovidos pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA).

 


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Antes de conheceres o Karlon e pensarem juntos este filme, já eras um ouvinte e apreciador de rap?

Na verdade, das minhas influências musicais, aquilo que eu ouvia em casa quando era pequeno era, maioritariamente, rock dos anos 60 e 70 dos meus pais, e muito, muito jazz. Não sei se foi a influência do jazz que me fez descobrir por mim próprio, na adolescência, o rap. Eu sempre ouvi muito rap, mas parei nas coisas mais oldschool, nos A Tribe Called Quest, nos De La Soul. O primeiro álbum que comprei foi o Rapública (1994), que é considerado o primeiro álbum de rap português, embora já existissem coisas anteriores a essa geração. Ao mesmo tempo, sendo um miúdo branco do centro de Lisboa, não tinha amigos que gostassem de rap. Por isso, o rap, tal como o jazz, era um prazer solitário, mas um elemento sempre muito presente.

Já conhecias o trabalho do Karlon nos Nigga Poison e/ou a solo?

Os Nigga Poison não ouvia regularmente, mas conhecia perfeitamente. O álbum dos Nigga Poison teve algum sucesso, até fora do circuito do hip-hop… Mas não conhecia o trabalho a solo do Karlon antes deste encontro. E, de alguma forma, foi curioso conhecê-lo em paralelo com as músicas e com as letras. Foi uma espécie de encontro, ficámos muitos amigos.

No filme, o Karlon “é” e, ao mesmo tempo, “não é” o Karlon, enquanto indivíduo e enquanto rapper. O que te interessou nele para o filmares de modo tão pessoal, imersivo, intenso?

Por um lado, o Karlon tem uma consciência política, histórica e social muito, muito lúcida, coerente, o que, infelizmente, não é assim tão comum no hip-hop português. Eu acho que há muitos rappers que caiem numa espécie de facilitismo… Ou seja, eu acho que não se pode ser anti-racista e machista ao mesmo tempo, não se pode ser anti-racista e fazer crítica social quando ao mesmo tempo se apregoa uma vida de luxo, carros de luxo, “bling-bling” e tudo o que se compra. Acho que estes dois tipos de discurso são completamente incoerentes e incompatíveis entre si. O Karlon tem letras, por um lado, profundamente pessoais e, ao mesmo tempo, muito assertivas na forma como analisa e pensa não só o momento contemporâneo, mas também a relação histórica entre Portugal e Cabo Verde, a relação do bairro da Pedreira dos Húngaros com a mudança violenta, que o filme também aborda, de sair dessa comunidade com elos fortes para as casas onde eles agora moram há uns anos. Ele vem de uma família com uma consciência política muito forte, uma família politizada que acreditou que o 25 de Abril ia ser um período que efectivamente podia mudar as coisas. O Karlon ainda tem essa consciência e essa luta quotidiana, ele acredita no rap como instrumento de transformação. Isto tocou-me imenso, sobretudo num rapper que decidiu conscientemente, em determinado momento, deixar de participar no mainstream, se isso fosse preciso, para ser fiel aos seus princípios. Mas nunca parou de fazer musica… ele é hiperactivo. Eu fico duas semanas sem ver o Karlon e ele tem três temas novos! Ele é um tipo que leva muito a sério o trabalho que faz. Eu também levo muito a sério o que faço e, então, foi incrível podermos fazer uma coisa juntos. É um filme, mas a música está muito presente… É uma coisa que também me interessava, nunca tinha tido a música como elemento tão importante nos meus filmes. Aliás, normalmente, os meus filmes não têm música! E há outro detalhe muito importante: eu só consigo filmar pessoas por quem tenho alguma espécie de carinho, amor, fascínio… Isto é muito importante: nós ficámos muito amigos. Fechar-me numa noite escura numa barraca rodeada por canaviais a ouvir o Karlon a sussurrar-me as suas histórias em forma de rap parece-me uma forma muito bonita de partilhar ideias, a nossa intimidade.

Historicamente, e generalizando, o rap sempre teve uma costela muito “realista”. Não falo apenas enquanto música de “intervenção” ou de “denúncia”, refiro-me antes à própria escrita em si das letras. O teu filme, pelo contrário – como todos os teus filmes anteriores –, é pouco realista, ou melhor, o realismo, por si só, não lhes interessa. Os teus filmes são demasiado poéticos, metafóricos, ambíguos, para poderem ser realistas. Foi difícil construir esta dimensão pouco ou nada realista para o filme com um rapper como o Karlon?

(pausa) Essa pergunta é muito importante. É uma coisa que me angustiou bastante antes de fazer o filme. Na altura, eu já estava a preparar um filme que estou a fazer no Brasil co-realizado com a Renée Nader, um filme que se passa numa aldeia indígena, e estava, portanto,  num movimento contrário à minha vida e aos meus filmes: sair da cidade, começar a filmar um lado menos material, menos visível, mais metafísico ou onírico, digamos assim. Quando aceitei a proposta da Terratreme e pensei voltar a filmar Lisboa, os prédios… isso angustiou-me bastante. Eu nunca tinha filmado uma árvore na vida antes deste filme no Brasil! Mas quando conheci o Karlon e o rap dele… Além do rap do Karlon ter um poder visual fortíssimo, ele também é um criador de imagens com as suas letras, há nelas um lado também muito interior, subliminar, principalmente no Meskalina (2015), que é um álbum em que o Karlon, a partir de um lugar mais mental, fala muito de algumas experiências que teve relacionadas com problemas psiquiátricos… Ele fala muito sobre a questão da lucidez. Então, na verdade, eu acho que o rap do Karlon, de alguma forma, tem, se calhar, essa coisa em comum com os meus filmes: na aparência, é realista, mas, na essência, encontra – ou procura – recantos, transformações e elaborações que não são realistas. Nesse sentido, eu fui um bocadinho atrás deste lado mais evocativo das letras dele. Também a parte musical nos leva por outros lugares: no Meskalina, há um trabalho muito forte com batidas mais agressivas e sincopadas, o que dá um lado mais físico ao álbum. E agora no Passaporti (2016), ele está permanente a evocar e a citar a música cabo-verdiana de outro tempo. E há outra coisa que eu acho importante: o filme também evoca um espaço, um lugar que é Cabo Verde: as canas-de-açúcar, aquele “retiro” para onde ele vai, a conversa com a mãe em que ele questiona se é mesmo a sua mãe… Há toda esta viagem para o passado e para outro lugar que é Cabo Verde, mas, na verdade, este Cabo Verde que ele evoca no filme, e também no seu novo álbum, é um lugar mais mítico, ou mitológico, do que real. Na verdade, o próprio Karlon e muitos cabo-verdianos da geração dele não conhecem Cabo Verde, ou foram lá, se calhar, uma vez ou duas para visitar alguém. Portanto, há uma construção mitológica e nostálgica dum lugar que eles verdadeiramente não conhecem. E, por isso, o filme também se afasta do realismo através desta evocação mítica de um espaço imaginado que é Cabo Verde.

O Montanha (2015) já era um filme de “altitudes”, um filme a “toda a altura”, com as personagens enquadradas sempre em edifícios elevados. E no Arena (2009) também há isso: essa elevação a sugerir a vertigem, a viagem de descoberta interior das personagens. Neste filme, há uma explícita dualidade entre “cima” e “baixo”, os prédios/bairro em cima e a barraca no descampado em baixo. Sentes que esta relação é consciente ou é fruto do acaso?

(Pausa) Conversar com pessoas que têm ideias sobre os meus filmes é infinitamente mais interessante, porque estás a obrigar-me a pensar em coisas que ainda não tinha pensado, visto que o filme acabou de sair. Nunca tinha pensado sobre essa relação. Foi muito claro que este filme surge num percurso paralelo com a minha vida, um percurso de afastamento ou que põe em causa, de alguma forma, os meus filmes anteriores. Sim, é verdade que é um filme com um lado muito mais telúrico: no chão, na terra, num espaço rural, num espaço que muita gente sente que é um espaço vertical pelo calor que se sente na imagem. Há um livro fundamental do Aimé Césaire, um poeta francês de Martinica. Ele é o fundador do conceito de “negritude”, pelo menos na literatura e na poesia. Tem um livro belíssimo que se chama Caderno de um regresso ao País Natal (1939) e foi inclusivamente desse livro que eu tirei o título do filme. Eu agora estou a tentar relacionar isso com o meu filme, embora nada disto tenha sido pensado… No livro, há uma espécie de fundação poética para a teoria da libertação e da affirmative action dos afro descendentes. Há uma espécie de viagem, quase uma epopeia dos explorados e dos povos colonizados – uma viagem do chão, da terra, da escravatura, para “cima”, uma espécie de ascensão libertadora. Claro que, no livro, esta ascensão é uma coisa muito mais simbólica. Eu tento também que o filme remeta para esta espécie de “arqueologia” e de geografia coloniais, que mostram como o Ocidente esteve séculos e séculos a enriquecer à custa do roubo e esmagamento dos povos autóctones, indígenas, do Brasil, de África. A própria História social do Ocidente fala-nos sobre isto, de como uma cultura se impôs sobre outra. De alguma forma – e é a primeira vez que estou a pensar nisto –, aquele plano final em que vemos os prédios lá em cima e o Karlon cá em baixo recusando-se a voltar é como uma espécie de “direito ao silencio”, uma recusa individual em aceitar esse esmagamento e essa clausura forçada que muitos dos prédios de habitação social também são. São uma forma de destruir elos e comunidades que estavam solidificados pelas suas relações. Com o pretexto de se dar melhores condições de vida a essas pessoas, quebram-se e destroem-se, mais uma vez e depois de 500 anos em África, essas comunidades, agora de uma forma oficial e com o apoio do Estado. Um facto curioso: há uma música, se não estou em erro, dos Jungle Brothers, que se chama “Acknowledge Your Own History” [do álbum Done by the Forces of Nature, 1989], em que eles cantam: “Page one, page two, page three / And still no signs of me”. Ou seja, ele começa a ler o livro de História e não há nenhum sinal da presença de um negro!

A propósito dessa questão da “ascensão” a que te referiste: o Karlon vivia lá em cima, mas, na sua fuga, desce e vai viver para “baixo”. E quando está aí, “em baixo”, um dos amigos que o procura interpela-o: “Pensas que a Verdade está aí em baixo?!”. Isto lembrou-me uma espécie de alegoria platónica invertida, como se fosse na escuridão, na “caverna” (e não na luz lá “de cima”), que estivesse a verdade, o conhecimento, a revelação. Esta ideia diz-te alguma coisa?

Sim! Nunca tinha pensado na questão da alegoria da caverna, mas quando o cinema põe pessoas dentro de casa a relacionar-se com o exterior – e isso é uma coisa que acontece sempre nos meus filmes, através das janelas –, é inevitável não pensar na alegoria da caverna. Nós pensámos muito nesta coisa que é a de fazer um filme onde a escuridão e o silêncio acabam por também poderem ser formas de resistência e consciencialização. O Karlon, além de decidir fugir, de escapar para a natureza – que, de alguma forma, é uma espécie de regresso a esse lugar mítico que é Cabo Verde, ou talvez seja, pelo menos, um regresso à adolescência e à infância na Pedreira dos Húngaros –, tenta, ao mesmo tempo, como uma espécie de budista, refugiar-se no silêncio e na escuridão para encontrar as condições certas para uma viagem interior de auto-consciencialização. E esta viagem tem um carácter profundamente histórico e político. Todas as histórias que são contadas no filme ou são tiradas ou de conversas que tivemos, e que efectivamente aconteceram, ou são histórias transformadas ou partes de letras do Karlon. Por exemplo, quando o Karlon conta ao Xama a conversa que teve com os polícias, trata-se, se não estou em erro, da letra do começo do Meskalina, nós só acrescentámos o número do bilhete de identidade. Quando ele diz que o presidente já está preso, ele está a referir-se ao Isaltino Morais, obviamente. Portanto, no filme, os factos históricos são cruzados com as memórias e com imagens do espaço e do tempo.

Na cena em que o Karlon fala com o Xama, este, no início, tem a lanterna nas mãos enquanto fala; depois, o Karlon tira-lhe a lanterna e começa ele a falar. É um pormenor – ou não –, mas eu reparei nele. Achei-o interessante, porque é um momento, de certa forma, “teatral” e no qual o “dono” da voz é também, nesse momento, o “dono” da luz. Isto aconteceu assim por acaso ou era uma marcação pensada? E se era, o que a motivou?

Essa cena foi muito trabalhada com base nos improvisos em que eles iam contando aquelas histórias, e nós íamos definindo, no fundo, “check points” por onde eles tinham de passar até chegar ao fim da história. Trabalhámos muito a palavra, um bocado como no teatro… Fomos trabalhando as cadências, a história, o percurso (que, às vezes é mais cronológico, outras vezes não) pelo qual eles vão evocando as suas memórias. Nesse momento, eu achei muito forte o Karlon pegar na lanterna e apontar ao Xama. Isso foi uma coisa decidida com eles ao fim de vários ensaios. Por um lado, há uma coisa muito forte que é uma lanterna apontada à cara – quem está dum lado e quem está do outro, isso é um jogo e uma imagem que evoca muito as rusgas, a presença policial. Por outro lado, também há esta espécie de intenção do Karlon em acordar o amigo e  tentar trazê-lo para o seu lado. Ele diz-lhe: “Vocês é que estão todos presos!”.

Aquando do Montanha, disseste que, depois do filme, querias cortar ou desligar-te da adolescência nos teus filmes seguintes. Mas neste filme, curiosamente, o Karlon comporta-se, num certo sentido, como os “adolescentes” nos teus filmes: idealista, rebelde, obstinado, insubmisso. Concordas com esta ideia?

Sim… Se calhar, há uma energia, uma força qualquer nele. Retrospectivamente, o Karlon é como um tipo que não envelheceu, pela sua energia, combatividade. Por outro lado, discordo, porque acho que ele passa por um processo que nenhuma das minhas personagens dos meus filmes anteriores passa: um processo conscientemente político. No Montanha, e podia também referir-me ao Arena ou ao Rafa (2012), os miúdos estão completamente desligados da realidade histórica e política do pais. Essa foi outra das razões pela qual me apeteceu filmar o Montanha: como é que um país está a desabar, como é que a vida de uma família fica completamente desestruturada, e um miúdo de 14 anos vive tudo isto sendo a sua forma de rebelar absolutamente niilista, individualista, solitária? O Karlon é precisamente o contrário: ele também se rebela sozinho, mas talvez porque não consegue convocar aliados para a sua fuga, para a sua dissidência. Mas ao contrário das personagens dos meus filmes anteriores, ele tem uma consciência histórica, social e politica muito enraizada, lúcida. Ele tem um discurso. É também por isso que é rapper, não é? Neste sentido, não o vejo a “conversar” com as personagens dos meus filmes anteriores, não sei se eles iriam ter algo para dizer umas às outras. Mas agora que penso nisto, talvez tivesse feito bem às minhas personagens anteriores terem ouvido o Karlon, talvez lhes tivesse feito bem ter descoberto o rap dele! (risos)

Uma mudança significativa neste teu último filme está relacionada com a palavra e, particularmente, com a palavra falada enquanto forma artística que é o rap. Nos teus filmes anteriores, as personagens nunca falam muito, não são expansivas, nunca se explicam ou exprimem para além do essencial – e, às vezes, nem o essencial. Tudo é dado de outra forma, plasticamente, e esse é, para mim, aliás, um dos maiores atributos do teu cinema. Concordas, neste sentido, que, pelo uso intenso, pela torrente de palavras, este filme é também algo de “novo” na tua obra? E não foi difícil para ti mudar de “pista”, de registo?

Eu sempre vi as palavras como gestos, eu acho que uma palavra é sempre a extensão do corpo de alguém. E quando trabalho a questão da palavra, dos diálogos, das vozes, não presto apenas atenção ao lado semântico e ao lado da comunicação, mas também a este lado mais material, mais físico das vozes. A voz belíssima do David Mourato no Montanha, que é uma voz cheia de ar, super sussurrada e rouca, de alguma está muito relacionada com o medo dele do mundo, o medo de falar, a solidão, a forma como ele se retrai. Eu acho que um russo que veja o Montanha sem legendas vai conseguir percepcionar, pelo menos, o lado emocional e físico daquilo que é dito no filme. Quanto ao “mudar de registo”, os meus filmes têm estado sempre muito ligados a períodos que eu estou a viver, às pessoas e aos lugares que vou decidindo, de forma mais ou menos instintiva, filmar. No fundo, as pessoas com quem me apetece passar tempo, encontrar. Eu filmo muito como um encontro. Esta energia que o Karlon traz ao filme é dele, ou seja, eu obviamente que vou atrás dele e tento que o filme faça justiça e devolva essa energia de que falas, do mesmo modo que tentei fazer o contrário com o David Mourato. Mas acredito que são coisas que dizem muito mais respeito às pessoas que filmei do que a decisões estéticas ou artísticas que eu tenha pensado a priori.

 


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O filme passa-se praticamente todo durante a noite e na parte “de baixo”, nesse sentido sugerindo por vezes tratar-se de um sonho (ou pesadelo…), de uma alucinação do Karlon. A solução de terminar o filme de dia e na parte “de cima” foi um contraste procurado propositadamente? E essa “alvorada” resolve alguma coisa para o Karlon?

Bom, eu ainda não tenho uma ideia muito clara sobre o final do filme e acho que nunca vou ter. Mas eu gosto que o fim do filme crie leituras e ambiguidades, e que, de alguma forma, acompanhe essa espécie de questionamento permanente que o Karlon faz durante o filme. O Karlon desconfia da verdade, ou de uma outra verdade que não é a dele. Eu acho que isso é uma atitude política fortíssima, que é a de desconfiar da História com “H” grande, mas também das suas próprias memórias, das suas próprias relações pessoais. O fim do filme é, obviamente, um gesto cinematográfico, um gesto de cinema, no qual voltamos para os prédios e em que vemos aquele cavalo que não sabemos exactamente o que é, em que ouvimos o som da natureza muito mais presente sobre as imagens dos prédios – o som da natureza, ali, é quase uma representação sonora hiperbólica, onírica… Eu gosto de pensar no final do filme como o culminar do questionamento do Karlon: é o filme a perguntar-se a si próprio o que é verdade e o que é mentira, se podemos acreditar naquilo que vimos antes. O cavalo existe mesmo ou não? O que é aquele cavalo? Se isto fosse um filme feito nos anos 60, no auge do pensamento estruturalista, podíamos dizer que o Karlon é a “cultura” na natureza e que, no fim do filme, é a natureza na cultura. Há esta oposição obsoleta entre natureza e cultura na antropologia, na sociologia, na filosofia, nas ciências sociais. O cinema propõe sempre leituras mais complexas e mais ricas.

Num prolongamento da selva como espaço místico e fantástico, podemos ver o cavalo quase como uma metamorfose do Karlon?

É possível! Um amigo meu já viu o filme e falou-me nisso. Mas também houve gente que me disse que o cavalo é um símbolo equestre, militar, do colonialismo, uma figura quase bélica. Os cavalos foram levados para a América pelos espanhóis e para África pelos portugueses e pelos espanhóis. O cavalo é o animal que se encontra no mundo inteiro pela acção directa dos europeus. De alguma forma, eu também pensei um bocadinho na possibilidade de o cavalo ser essa evocação. O cavalo é um animal que, mesmo quando o vemos em estado selvagem, pensamos nele como um animal doméstico, em contacto com o homem. De alguma forma, é possível, se calhar, pensar no cavalo como o espelho invertido do Karlon, que é um homem que tenta voltar à natureza e à animalidade. Mas enfim, o final do filme vai ser sempre lido de várias maneiras possíveis.

É um pouco inevitável falar ou pensar, ao ver o teu filme, nos filmes do Pedro Costa (Ossos, 97; No Quarto da Vanda, 2000; Juventude em Marcha, 2006) – pelo urbano, pela noção de “margem”, pela negritude, pelo bairro, pelas antigas colónias, pela pobreza, até pelas “ossadas” do título (Ossos). Em algum momento os filmes do Pedro Costa foram uma inspiração ou um horizonte para a construção do teu?

O Pedro Costa é um realizador por quem eu tenho a maior admiração, principalmente porque ele é um realizador de “outro tempo”, tem uma forma de trabalhar profundamente ligada às pessoas e aos lugares que filma, e durante longuíssimos períodos de tempos. Já não existe esta forma de trabalhar, praticamente não existe. Como um Cézanne que fica horas e horas a olhar para a mesma montanha, como um Proust que se fecha em casa 10 anos para escrever… Ele é um artista de outro tempo, não é do século XXI. Para além das questões práticas e artísticas, porque eu gosto mais duns filmes dele do que doutros, este lado verdadeiramente ligado à realidade, em que o cinema se dilui nas coisas da vida, interessa-me imenso. Há imensos cabo-verdianos em Portugal e há poucos realizadores a filmar com eles, o Pedro Costa é aquele de quem conhecemos melhor o trabalho. O cinema também reflecte a sociedade, também é um mundo onde o acesso aos meios continua a ser exclusivo de uma elite intelectual e económica. Seria incrível que existissem realizadores cabo-verdianos a filmar os cabo-verdianos! E aqui também vemos a importância do rap: foi a primeira luz, a primeira vez que os cabo-verdianos saíram da escuridão e do silêncio em Portugal, e isto começou muito tarde, só nos anos 90. O Karlon fala muito nisto, de que gostava de chegar a casa no fim do dia e que as mulheres não fossem todas empregadas domésticas e os homens operários da construção civil. O rap continua a ser, mais do que uma forma de escape, uma forma de sair da invisibilidade e do silêncio. O cinema ainda não conseguiu este encontro, infelizmente.

No filme, todas as personagens falam em crioulo, menos a filha do Karlon.

O filme segue uma estrutura que leva um bocadinho ao O Sabor da Cereja (1995) do Kiarostami, no qual há três personagens que entram num carro. É um dos meus filmes preferidos, um dos que mais me comove. Há um tipo que se quer matar e, nesse processo de viajar de carro por Teerão e pelos subúrbios, três personagens vão, cada uma à sua maneira, tentar demovê-lo dessa intenção. No meu filme, há um bocadinho dessa estrutura episódica, de três personagens que, de alguma forma, são, cada uma delas, representativa de uma determinada geração. A mãe do Karlon faz parte da primeira geração de emigrantes cabo-verdianos, guineenses, angolanos, em Portugal, que chegaram nos anos 60 e 70, e que se instalaram em bairros auto-construídos ali na periferia do aeroporto, em baldios e descampados. Gente que diz: “Eu trabalhei a vida inteira para finalmente conseguir sair da barraca, e agora que tenho uma casa de tijolo, tu [Karlon] queres sair da casa e voltar para uma barraca?!” – é o que a mãe pergunta ao filho. Mais tarde, temos o melhor amigo, o Xama, que, tal como o Karlon, passou por este percurso de, tendo nascido em Portugal, as suas memórias de infância já não remeterem para Cabo Verde, mas para a Pedreira dos Húngaros, para o bairro de barracas. O Karlon tem memórias muito bonitas, mas também trágicas, desse período, e por isso é que está dividido entre uma coisa e outra. Finalmente, a filha, que já nasceu no bairro social, nos prédios, e que já não fala crioulo, já está a ter uma vivência quotidiana em Portugal muito mais desligada de Cabo Verde, daí ela falar em português e o Karlon lhe responder em crioulo. Isto também é verdade no bairro: os miúdos mais novos já não falam crioulo, têm vergonha de falar crioulo na escola. O rap, de alguma forma, tem um papel importante hoje em dia em devolver aos cabo-verdianos a identidade e a língua.

Sei que estás, paralelamente, a filmar no Brasil uma longa-metragem e que este regresso à curta foi resultado de um convite específico da Terratreme. Pergunto-te se é um regresso pontual ou se a curta é um território no qual, independentemente do que fizeres no formato longa, queres ter ter sempre um pé.

Sim, quero. Este filme foi pensado e filmado durante a pós-produção do Montanha e no período durante o qual esperávamos pela sua estreia, mas também quando eu já estava envolvido com o filme no Brasil, em que já tinha ido lá fazer uma temporada de dois meses. Na verdade, este é um filme “de passagem”. É a parte mais difícil do trabalho de um realizador: esta espera para se conseguir fazer um filme, para se conseguir financiamento, para se conseguir filmar o que se quer, da maneira que se quer. De alguma forma, eu vou querer fazer rodagens cada vez mais longas, porque o mais interessante, às vezes, não é o próprio filme, mas as relações que são criadas com as pessoas que filmo. Se calhar, o grande trunfo do Montanha foi eu ter conseguido, mesmo com uma equipa grande e filmando em 35 mm, ter tempo e fazer paragens para ver o miúdo crescer. No final de contas, conseguimos ter seis meses de rodagem e, apesar das interrupções, continuávamos juntos. Agora no Brasil, tive oito meses em rodagem e, antes desta rodagem, eu e a Renée já tínhamos estado várias temporadas no Brasil. A Renée já desde 2009 que vai a esta aldeia onde tem amigos e onde já conhecemos toda a gente. As curtas-metragens têm este lado mais imediato com a vida e com os filmes. Este filme consegui fazê-lo com menos dinheiro e sem ter que estar à espera…. Enfim, com toda a gente a ganhar vergonhosamente mal, tanto eu, como o Karlon e o resto da equipa, mas, apesar de tudo, é possível trabalhar neste registo durante um período curto de tempo se toda a gente estiver no mesmo barco. Portanto, eu não nego a possibilidade de continuar a fazer filmes mais pequenos nos próximos anos enquanto fizer simultaneamente longas-metragens.

És um dos subscritores da carta de protesto de um grupo de pessoas e instituições ligadas ao cinema contra o novo modelo legal, ainda por aprovar, de nomeação dos júris do ICA. Se este modelo não for travado, crês que o cinema português pode, mais do que nunca, ficar asfixiado?

O que eu acredito é que a cultura é sempre renegada para um lugar que nem sequer é secundário, é terciário. Nenhum político português, nenhum primeiro-ministro, nem mesmo ministros da cultura têm um discurso claro sobre políticas culturais. Raramente têm alguma coisa, sequer, de interessante a dizer sobre estas matérias. O que se está a passar agora é absolutamente escandaloso e revelador de como a classe política vê a cultura em Portugal: o ICA a transformar-se no único organismo público em Portugal que tem uma forma de nomeação de júris controlada por interesses privados e corporativistas. Ou seja, segundo o modelo actual da lei, todos aqueles que têm representação na Secção Especializada do Cinema e Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura (SECA) podem propor júris para concursos do ICA. E para este grupo inteiro, propõe-se agora que se incluam as operadoras TV cabo, as distribuidoras (nomeadamente, aquelas cujos 99% da sua distribuição é de cinema americano. Pessoalmente – mas esta também é a posição da Associação Portuguesa de Realizadores (APR) –, não quero ter absolutamente nada a ver com os júris que vão avaliar os projectos. O ICA é um instituto que tem uma função política e não se pode despolitizar um organismo público! Acho que é precisamente esta despolitização da vida e das instituições que está a levar à ascensão da extrema-direita em França e do Donald Trump na América. São figuras que aparecem como não-políticos e a imprensa combate-os caricaturando-os, em vez de os tratar também como políticos com um discurso coerente, convicto, político. Eles estão a aproveitar-se deste vazio que está a ser criado por uma classe política europeísta completamente desfasada do seu tempo! Estamos a assistir a este movimento: transformar o ICA num gabinete que, no fundo, entrega cheques a filmes cujos júris vão ser decididos por entidades privadas e organizações corporativistas. O Secretário de Estado, e o Ministro da Cultura repetiu as mesmas declarações, disse isto, que é o mais importante para clarificar o que está errado aqui: falou deste modelo legal como um equilíbrio de forças entre “beneficiários” e “financiadores”. Os realizadores, os produtores não são “beneficiários”! A classe política nunca consegue perceber isto: os “beneficiários” por existir o apoio à cultura, as belas artes, ao teatro, à ópera e ao cinema é o país inteiro, como é óbvio. É um benefício público, um bem público! O segundo grande equívoco é a referência às operadoras como os “financiadores” do cinema português. Eles não são “financiadores” do cinema português! As operadoras pagam um imposto consagrado pela lei, e este imposto serve precisamente para o orçamento do ICA e da Cinemateca. As operadoras pagam impostos como eu pago! Eu não sou financiador de um hospital ou de uma escola, o Estado é que os financia com uma parte dos impostos que todos nós pagamos, mas eu não sou financiador de política pública nenhuma, sou um cidadão que paga impostos. Ora, estas empresas também pagam impostos, ponto final. Portanto, este equilíbrio entre “beneficiários” e “financiadores”, além de vergonhoso, é muito representativo da forma como o Secretário de Estado pensa a cultura, desta forma dicotómica. As distribuidoras e as operadoras são financiadoras, isso sim, dos produtos audiovisuais que querem produzir: se a MEO, a NOS ou a TVI quiser financiar um filme meu, tem como fazê-lo: “Temos aqui uma quantia tal e queremos que o senhor faça um filme tal com o guião tal”. Isto é que é “financiar”! O imposto que eles pagam e que está consagrado na lei não lhes dá direito a intervir directamente na forma como o dinheiro público é gerido. Inclusivamente há um parecer, que foi pedido a uma sociedade de advogados, que duvida taxativamente da legalidade desta forma de nomeação dos júris. Eu espero que, por todos estes motivos, o Ministro da Cultura, ou o próprio Primeiro-Ministro, reverta esta situação.

 


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