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Fotografia: Susana Neves
Publicado a: 04/03/2021

O sopro de uma visão singular.

João Pedro Brandão: “O jazz está sempre a olhar para o lado, está sempre a ver o que é que se passa”

Fotografia: Susana Neves
Publicado a: 04/03/2021

A música de João Pedro Brandão fala por si. Mesmo para memórias de peixe, não é preciso recuar tanto assim no tempo para nos cruzarmos com Trama no Navio (2020), brilhante disco da sua autoria que reduziu à “espinha dorsal” uma peça para big band que havia originalmente escrito para musicar a segunda parte de O Couraçado Potemkine (1925), filme clássico de Sergei Eisenstein. O desafio de compor para cinema proveio da Orquestra Jazz de Matosinhos, que integra desde 2009 e com a qual já participou em inúmeros projectos. Inúmeros é, aliás, um adjectivo que poderia ser utilizado sem rebuço para descrever os vários frutos da carreira de Brandão, que se estende ao longo de mais duas décadas.

Em 2011, fundou o Coreto, ensemble de 12 músicos do qual é líder e com que gravou quatro trabalhos — Mergulho (2014), Sem Chão (2015), Aljamia (2012) e Analog (2017) –,  todos editados através do Carimbo Porta-Jazz, sendo que os dois últimos são integralmente constituídos por composições da sua autoria. Ademais, é membro dos Bode Wilson, trio em que surge ao lado de Marcos Cavaleiro e Demian Cabaud, com quem gravou os álbuns 26 (2014) e Lascas (2017), ambos, claro está, edições do Carimbo. É também sideman no Impermanence da trompetista Susana Santos Silva, no quinteto do guitarrista AP, e no quarteto de Lucia Martinez. Mas se a carreira de Brandão como multireedist e compositor está repleta de momentos de excelência, este foi apenas um dos muitos ângulos da sua multifacetada actividade que foi abordado ao longo desta entrevista.

Igualmente incontornável foi o tema Porta-Jazz, associação da qual João Pedro Brandão é um dos cérebros fundadores. Em 2021, a Porta-Jazz deu início à sua segunda década de actividade que, até ao momento, tem sido de uma produtividade fora de série. Para além de João Pedro Brandão, são 10 os músicos que presentemente constituem o núcleo da associação – viz., Eurico Costa, Susana Santos Silva, José Pedro Coelho, Marcos Cavaleiro, Rui Teixeira, Hugo Raro, António Pedro Neves, João Paulo Rosado, Hugo Ciríaco e João Guimarães –, os quais fez questão de não esquecer em vários ocasiões ao longo desta conversa, nunca deixando créditos por mãos alheias. Aliás, se há uma característica da personalidade de Brandão que prontamente se assoma é a sua tónica comunitária, atributo raríssimo nos dias de hoje, ainda mais numa sociedade que prima pela competição e individualismo em detrimento de uma evolução comum e sustentada. Assim sendo, o músico não só se reconhece como parte integrante de uma comunidade, como ajuda a desenvolver actividades que a potenciam, provendo, assim, não só oportunidades para as actuais gerações, como também perspectivas para as que hão-de vir. Houvesse mais gente com este espírito e o mundo seria, com certeza, um lugar com mais humanidade.

Houve ainda tempo para falar da sua faceta de professor, vertente que, admite, torna-o um músico melhor. Além disso, o permanente contacto com as futuras gerações de músicos dá-lhe também sensibilidade para, numa quase epifânica tirada, afirmar que “se o mercado não for estimulante, o talento nem sequer surge”. É verdade — agora que foi dito parece evidente. Haja quem continue a investir e a apoiar projectos como a Porta-Jazz, fulcrais para o desenvolvimento da cultura e do jazz não só no Porto – cidade onde a associação se encontra sediada -, mas também a nível nacional.

Depois das habituais saudações e de um acordo mútuo de tratamento na segunda pessoa do singular, seguiu-se a entrevista que agora aqui se vê transcrita. Foi mais de uma hora de conversa feita através do Zoom da qual foi difícil não se sair inspirado.



Começaste os teus estudos musicais em 1992 com a flauta transversal, este que é um instrumento que não prima por ser propriamente atractivo para o jovem comum. O que é que te levou a interessar pela música e, principalmente, com apenas 15 anos, a escolher este instrumento para a sua aprendizagem? 

Na realidade, eu comecei miúdo… comecei com sete anos, numa academia, a tocar flauta de bisel. A flauta transversal surgiu naturalmente. Foi um passo estimulante tendo em conta a referência anterior. Já não me lembro muito bem quando é que isso foi… [tinha] 15 anos? Talvez tivesse menos… [Foi em] 1992? Talvez… Na realidade, eu vinha a estudar desde miúdo e depois cheguei a essa altura e a música deixou de ser uma coisa muito central [na minha vida]. Aliás, nessa altura acho que até abandonei os estudos durante um ano ou qualquer coisa do género. Depois é que encontrei uns amigos na escola que também tocavam. Comecei a tocar com eles e voltei a interessar-me de uma forma mais consistente pela música — e o instrumento era esse [a flauta transversal]! Só que depois, quando se começa a tocar um instrumento, aquilo começa a ser um bocadinho natural, e claro que eu tinha sempre aquela tentação de ir estudar outros instrumentos. Havia também a perspectiva do saxofone como uma coisa natural, por ser um instrumento parecido, que também me atraía. Então ainda andei uns tempos a tocar flauta. Aliás, eu só comecei a tocar saxofone bastante mais tarde, já tinha acabado a faculdade.

E o que é que te levou a optar pelo jazz? Quais é que eram as tuas referências e o que é que gostavas de ouvir na altura que te tenha levado a escolher essa vertente estética?

Eu acho que isso tem muito a ver com o que se ouvia em minha casa. O meu pai, que se interessava pelo jazz, tinha uma colecção que, na altura, me interessava. O meu irmão, que é um bocado mais velho que eu, também ouvia alguma coisa [de jazz]. Nessa altura, nos anos 90, começaram a aparecer umas bandas com uma fusão entre o hip hop e o jazz, e umas colectâneas como o The Rebirth of Cool. Isso também teve algum impacto no que eu comecei a ouvir na altura, não é? Aquele funk, hip hop, jazz… aliás, isso, para mim, foi uma descoberta fantástica, porque, até aí, a música dita pop não me interessava, não me motivava muito. E esse foi um mundo que, de repente, me despertou para tocar. O jazz tradicional e histórico sempre me interessaram como ouvinte, mas eu estava um bocadinho longe daquilo – não sabia muito bem o que se estava ali a passar em termos teóricos. Mas depois essa via foi muito importante… Quando entrei na faculdade, no curso de engenharia, já comecei a ter alguma autonomia e consegui ir para a Escola de Jazz no Porto. Na altura, morava na Foz e antes tinha morado em Matosinhos, e aquilo [o Porto] era muito longe [risos]. Aí comecei a entrar um bocado mais nesse mundo em termos de estudo, embora também fosse bastante atribulado, porque a oferta, mesmo em termos de professores, [era escassa]… Ou seja, o meio era mesmo pequeno. E confuso. Muito auto-didacta, com todos os tropeções que isso implica. Só quando comecei a ter aulas com o Paulo Gomes – já estava no terceiro ou quarto ano da faculdade –, é que realmente comecei a ter um estudo e uma orientação consistentes.

E quando foste para a Escola Superior de Música do Porto e para a ESMAE foi saxofone que foste aprender. Como é que se deu essa transição?

Basicamente, fiz o curso de engenharia e, ao mesmo tempo, fui para a Escola de Jazz. Tive ali um ano que não funcionou muito bem: tinha umas classes de conjunto e aquilo não era muito consistente. Depois, acabei por sair e passado um ano é que voltei. Já estava no terceiro ano da faculdade e comecei a ter aulas com o Paulo Gomes. Durante esses últimos anos da faculdade é que comecei a ter um estudo mais consistente, sempre entre a faculdade e a flauta. Ainda trabalhei mais um ano e tal, mas, ao fim desse ano, estava mesmo com vontade de estudar [música] e não tinha tempo para o fazer: chegava a casa tarde, tocava um bocadinho, baixinho e à noite. Queria mesmo pelo menos dar uma hipótese a essa parte. A ESMAE não tinha flauta, e como já tinha essa ideia – já tinha andado a experimentar –, comprei um saxofone e vim para casa estudar. Despedi-me em Janeiro e concorri à ESMAE em Maio ou em Junho. E pronto, pus-me a estudar saxofone… foi assim uma aventura.

Que dura até hoje…

Sim, e depois continuei… Outra experiência valiosa e que ainda não referi foram os Hornflakes: uma secção de sopros formada pelo Miguel Guedes (sax barítono), Filipe Lopes (trompete), e eu, que surgiu em 1998, nos Big Fat Mamma, e que continuou a trabalhar com os Azeitonas, Expensive Soul, Funkaliciuous… Foi a primeira secção de sopros destes grupos. Esta foi uma fase muito importante para mim, porque criávamos os arranjos e fomos apurando uma linguagem própria, dos três. Tivemos muitos concertos com essa secção, até que chegou a um ponto em que as opções artísticas/profissionais de cada um dos três já não eram compatíveis com o que estávamos a ali fazer.

Entrado agora no universo da Porta-Jazz, associação que, em 2021, iniciou a sua segunda década de existência. Tal como descreveste num recente newsletter, “foram 10 anos de concertos, festivais, ciclos fora de portas, 68 discos editados, intercâmbios e parcerias internacionais, seis mudanças de sala com um piano de cauda às costas entre outras coisas”. Poder-se-á dizer que os resultados estão à vistaqual foi a força-motriz que levou inicialmente à criação deste projecto?

Antes que me esqueça, ficas a saber que essa newsletter é escrita pelo Rui Teixeira – os textos têm sido da autoria dele. Eu acho que a força-motriz foi uma conjugação de [vários] factores. Da minha parte, eu fiz um Erasmus fora de Portugal, na Bélgica, e, apesar de tudo, na pequena cidade onde estava – que era em Leuven –, havia uma actividade e dinâmica à volta dos músicos de jazz, com uma interacção muito grande entre as cidades – o que lá também é muito mais fácil, obviamente –, mas havia muito mais voluntariado em relação a fazer coisas. Mesmo que não houvesse apoios, organizavam-se concertos e jam sessions. Quando voltei para o Porto, senti que aquela energia faltava aqui. Ao mesmo tempo, toda a minha geração — alguns até que, como músicos, eram mais velhos, não necessariamente mais velhos em idade, mas já tocavam há mais tempo e já eram músicos há mais tempo que eu –, toda aquela malta que se começou a formar na ESMAE – porque o curso da Escola Superior de Música é relativamente recente, e é dessa altura — estava um bocadinho perdida na cidade, principalmente porque não havia um pólo agregador dessa malta. Durante a ESMAE, organizava-se uma jam session semanal e as pessoas estudavam lá. A escola [também] estava aberta 24h por dia – aquilo era mesmo um centro de actividade e as pessoas reuniam-se. Depois da ESMAE, a malta andava perdida a fazer os seus projectos em casa, a fazer música, e ninguém tinha um espaço para tocar. A Casa da Música já tinha surgido, mas não preenchia de todo essa função, pois trazia [principalmente] músicos estrangeiros e tinha outra direcção. Nessa altura, nem Pelouro da Cultura existia no Porto. Então, começámos a falar – nomeadamente, eu, o Eurico Costa, o Rui Teixeira, a Susana [Santos Silva] e o AP – em formar uma associação por iniciativa própria. Eu e o Eurico tomámos efectivamente a iniciativa de criar a associação, de fazer o registo oficial, e começámos logo a trabalhar. Reunimos as 11 pessoas [que inicialmente faziam parte da associação], que ainda são basicamente as mesmas, salvo duas que depois saíram e entraram novas, e que têm feito este trabalho de, no fundo, criar ambiente para as coisas acontecerem. Ou seja, no início era uma coisa muito simples: não havia sítios para tocar, [logo] tínhamos de arranjar maneira de [fazer] acontecer alguma coisa. E, portanto, foi nessa perspectiva [que tudo ocorreu]. A primeira coisa que fizemos foi o festival, porque sabíamos que, apesar de tudo, já havia material. Nós criamos a associação no Verão e, no final do ano, estávamos a realizar o primeiro festival, que foram logo 13 concertos, tudo com bandas do Porto, [tudo] música original. E foi assim uma festa que, depois, manteve-se estes anos todos – e tem-se renovado!

E por falar em Festival Porta-Jazz, há perspectiva de o realizar este ano?

Sim… estamos em conversações [sobre isso]. O festival [em condições normais] teria sido o fim-de-semana passado, nos dias 6 e 7 [de Fevereiro]. Estava tudo preparado, tínhamos plano A, plano B e plano C. Tínhamos tudo preparado para divulgar e entrámos neste confinamento. A perspectiva é de fazer o Festival no Verão, talvez em Julho, ao ar livre. [Vamos] tentar que isso aconteça nos mesmos moldes, mas noutro contexto, obviamente.

Agora estão parados por causa da pandemia, mas como tem sido a experiência dos Blind Dates? Haverá porventura a hipótese de estes já terem originado colaborações que vão para além do momento do próprio concerto?

Sabes que esta questão da experimentação e do momento em palco é uma coisa muito inerente ao jazz. As jam sessions sempre existiram. Aqui, o nosso objectivo é que as pessoas saiam da zona de conforto em termos musicais e de criação. Agarrar um standard é uma coisa, outra coisa é fazer música completamente improvisada e com pouca gente em palco, porque com muita gente em palco as funções já estão automaticamente definidas: os graves estão ali, os agudos estão ali, o ritmo está ali. Já com dois em palco, não é bem assim, as coisas são pensadas de outra maneira. Portanto, aqui, mais do que criar projectos que venham dali, é fazer com que cada um de nós cresça um bocadinho naquele momento. Na realidade, esta era uma ideia que já tínhamos em mente fazer, que neste contexto surgiu por convite dos Maus Hábitos e pareceu-nos perfeito para iniciar esta experimentação. É completamente aleatório [a escolha das duplas]. Se calhar, o bom disto é que quem se junta, à partida, não se juntaria [se não fossem estes encontros]. Temos sempre tendência a juntarmo-nos com quem já temos afinidades e, aqui, acontecem outras coisas.



Sim, isso é fantástico. E pode ser que surjam algumas colaborações improváveis…

Sim, de certeza que isto vai ter consequências, nem que seja no todo através da mudança em cada um de nós. Nisso vai ter influência de certeza.

Para além das várias mudanças de sala, que parecem ter trazido consigo questões de logística de difícil resolução – como o transporte do piano, etc–, consegues identificar quais foram as principais dificuldades que a Porta-Jazz enfrentou ao longo da sua existência e, também, enfrenta no presente?

Essa questão da mudança de sala não foi só uma questão logística. Obviamente que isso foi sempre uma questão difícil de resolver e com custos que, às vezes, eram desproporcionados em relação à nossa capacidade. Mas, sobretudo, foi difícil para consolidar públicos; havia sempre uma desestabilização no crescimento da rotina. Isto porque nós sempre investimos em ter programação e actividade semanal, assim como em ter um espaço que é vivido não só pelo público, mas também pelos músicos, de forma regular. E quando se muda de espaço, há novas regras, novas formas de funcionamento e, mesmo para os músicos, isso foi sempre desestabilizador. Nunca tivemos um espaço nosso. Aliás, o único espaço que está a ser vivido em plenitude a esse nível é este último onde estamos, em que realmente os músicos vão para lá quando querem e vivem aquilo muito mais naturalmente… e porquê? Porque houve tempo para consolidar aquele espaço como fazendo parte deste movimento. Essa foi sempre a nossa maior dificuldade, sendo que foi também sempre o [nosso] maior objectivo, [o de] ter um espaço próprio. Claro que, associado a isto, vem a instabilidade dos apoios, que, apesar de tudo, por muito que se pense o contrário, quando estamos a falar de cultura e não de entretenimento que seja comercializável a ponto de ser sustentável, temos sempre de falar de apoios, não há hipótese. E isso foi sempre uma coisa difícil de assegurar. Houve muitas alturas em que o nosso esforço foi bastante desproporcional ao que acontecia – nem falo em honorários, isso aí nem se fala. Foi tão difícil que mesmo o nosso funcionamento foi sempre mudando. No início, eu, o Eurico [Costa] e a Susana Santos Silva fazíamos a parte executiva; depois, comecei a ficar só eu a fazer essa parte. Pronto, distribuíamos algumas tarefas pelos outros. Depois começámos a ter duas pessoas que nos ajudavam, um produtor, isto quando havia apoios. Quando não havia apoios [não era possível]. Era sempre muito instável. Desde há um ano, fizemos uma reestruturação e quem está a fazer a parte executiva são só músicos: sou eu, o Rui Teixeira e o António Pedro Neves. Isto não impediu que as decisões fossem tomadas sempre pelos 11, e isso foi uma coisa de que nós nunca abdicámos, de reunirmos todos para aprovarmos as ideias que surgiam. Naturalmente, [com maior contribuição] da parte das pessoas que estavam mais activas, mas sempre com a aprovação de todos. Fomos criando comités dentro deste grupo grande e criando várias dinâmicas. Mas envolver toda a gente e passar este tempo todo sem uma estabilidade, nem de espaço, nem de apoios, foi o mais complicado, assim como não deixar cair o movimento. Houve alturas em que realizar o festival – que já ia na sua enésima edição – e dizer “pessoal, não há assim muito dinheiro e tal…” [foi difícil]. Estamos a falar de músicos profissionais! Nós tentámos sempre que nada caísse, nem as programações semanais, nem os círculos fora de portas, nem as edições, nem as produções de vídeo. Tentámos sempre que tudo continuasse. Neste momento, este é o quarto ano de financiamento contínuo. Portanto, em termos de orçamento, ainda estamos a tentar encontra um equilíbrio entre o que fazemos e o que temos — é um processo. Acho que todas as estruturas culturais têm essa [questão]. Estamos a falar de uma área muito subfinanciada.

Sim, e o trabalho [da Porta-Jazz] é realmente notável! Parece-me que existem poucos paralelos, a nível europeu, de associações que tenham vindo a desenvolver trabalho de forma tão consistente e com esta longevidade… conheces outros exemplos que sejam equiparáveis – em termos de dimensão e produtividade — ao trabalho realizado pela Porta-Jazz?

Nós temos andado à procura de parceiros e associações com o mesmo género de funcionamento e não é fácil encontrar. O que existe são etiquetas, labels independentes, e essas funcionam normalmente com um grupo de pessoas ou com [apenas] uma pessoa – eu estou a falar de labels que são geridas por músicos, neste sentido comunitário. Isso vai acontecendo, mas acabam por não fazer um trabalho tão vasto. Editam e ponto final. Depois, há associações que fazem o resto, mas normalmente não são associações de músicos. São associações, por exemplo, de produtores, que têm outra visão sobre esta área, o que faz com que os movimentos em si não sejam tão consistentes. O nosso movimento parte dos próprios músicos; o que acontece é fruto do que há, tão simples quanto isso… Se nós não fizermos este ambiente crescer, não acontece nada.

Temos uma parceria com uma associação de músicos que se chama AMR, em Genebra, essa, sim, faz um trabalho semelhante ao nosso, mas não edita [álbuns]. E tem muito dinheiro… claro! [Risos] Tem um edifício fantástico, tem uma parte educativa importante – ou seja, eles investem também bastante tempo na educação, em workshops –, mas tem um meio menos envolvido que nós. É uma associação que nasceu por volta dos anos 70, já tem uma idade valente. Não quero dizer isto [ que não há paralelos a nível europeu] porque não fiz nenhum estado da arte, não fiz nenhuma investigação sobre o assunto, mas aparentemente não há muitos movimentos deste género, com esta amplitude. Eu acho que também não há porque, provavelmente, não houve tanta necessidade que houvesse. Nos outros países as pessoas estão mais apoiadas, ou seja, há circuitos mais definidos, há etiquetas mais trabalhadas, e têm mais acessos… se calhar é mais por aí!

A Porta-Jazz e os discos que o Carimbo tem lançado são inevitavelmente parte integrante da cena nacional de jazz, tendo, aliás, uma expressão muito forte dentro da mesma. Além disso, na minha opinião, vários deles têm uma sonoridade muito própria. Não consigo entender exactamente o que é, mas, por vezes, sinto elementos comuns em vários trabalhos, como se houvesse uma certa estética partilhada entre eles. Acreditas que podemos falar em jazz português? Isto é, será que possuímos – generalizando, está claro — um conjunto de temas e imaginários na nossa cultura que acabem por, inevitavelmente, se expressar na música através de opções estéticas específicas que foram herdadas quer pela influência que adveio de músicos nacionais passados, quer pelas técnicas e tipo de ensino que por cá se fazem?

Essa pergunta está sempre um bocado presente, mas eu tenho alguma dificuldade em responder. O que estás a dizer faz todo o sentido. Por outro lado, quanto maior é o meio, mais isso se dispersa, e quanto mais as pessoas circulam, também mais isso se dispersa. Se calhar, até aos anos 90 isso era muito notório, o jazz português era o jazz português, e, embora tivesse muitas referências facilmente detectáveis que não eram portuguesas, havia ali uma linha mais comum. Mesmo olhando para o que se fazia no Porto ou em Lisboa, havia uma linha bastante comum [que diferenciava as duas cidades]. Sobretudo havia menos vozes, logo cada uma das vozes tinha uma predominância muito maior e, por isso, influenciava facilmente tudo o resto. Eu acho que, desde há uns anos para cá, há muitos músicos que têm percursos diferentes. Por um lado, muitos deles absorveram influências desses músicos, que foram seus professores. Por outro lado, houve músicos que estudaram fora noutras escolas: uns em Nova Iorque, outros em Amesterdão. Por fim, o acesso à informação é a loucura total [risos].

Agora, o meio em si influencia-se, isso eu não tenho dúvida nenhuma. Apesar dessas coisas todas que eu estou a falar, o que estás a dizer prevalece sempre um bocadinho, quanto mais não seja por pressão positiva. Há sempre músicos que têm uma influência grande nas comunidades. Por exemplo, tens o Marcos Cavaleiro e o Demian Cabaud que tocam em imensos projectos e que acabam por influenciar muito a sonoridade do jazz que se faz neste momento. E hás-de ter outros exemplos que não têm nada a ver com eles, que são completamente diferentes. Olhando para Portugal, vê-se mundos diferentes mesmo dentro do jazz: malta que só faz free [jazz], malta que só toca mainstream, malta que anda ali no meio entre as duas coisas. Acho que já há uma diversidade grande, mas, talvez, continue a haver essa parte quase intrínseca, que é transversal a toda a gente, e que quem está dentro – os próprios músicos – se calhar já nem valorizam nem notam. Eventualmente, acho que sim. Em termos de comunidade, isso nota-se um bocado.  

Estavas a dizer que há uma certa sonoridade no Carimbo Porta-Jazz; na Porta-Jazz nós sentimos que há uma série de coisas diferentes ao nível das propostas musicais que acontecem. Mesmo esteticamente e conceptualmente são muito diferentes. Apesar de tudo, no Porto há um lado que tenta não ser comercial. Eu acho que isso sempre houve, não tem a ver com a Porta-Jazz. Mesmo no rock e na música pop, música que rompe [com o paradigma] normalmente vem daqui. Até agora, claro… Se calhar daqui para a frente não vai ser assim. Há esse lado de [o Porto] não ser um centro cheio de propostas de clubes para tocar, em que naquele clube tens de tocar aquilo, etc… E [também não há ilusões de] que seja sustentável criares um projecto porque sabes que tens aquele enquadramento profissional — isso aqui não existe muito. As pessoas acabam por fazer os projectos para se satisfazerem artisticamente. Portanto, acaba por haver um lado genuíno, que depois puxa por esse lado que estás a falar, mais intrínseco. Mas isto são tudo suposições, leituras super subjectivas…

Claro, e era mesmo essa tua opinião pessoal que eu também queria saber. Relativamente à sonoridade da Porta-Jazz, por acaso estive a ver se havia, porventura, alguma sobreposição ao nível dos engenheiros de som que participam em diferentes álbuns [que pudesse cunhar essa sonoridade que eu digo notar], mas, até aí, [vocês] costumam trabalhar com pessoas diferentes.

Sim, sim… é tudo autónomo a esse nível. A única coisa que não é autónoma é a capa. [Da responsabilidade da artista Maria Mónica] Aí, sim, há uma linha.

Falando agora do teu disco mais recente. Como foi a experiência de musicar a segunda parte de O Couraçado Potemkine (1925), o clássico de Sergei Eisenstein, a pedido da Orquestra Jazz de Matosinhos?

Para mim foi uma experiência nova. Quer dizer, eu já tinha tido algumas experiências a escrever para aquela big band e gosto [de o fazer]. Aliás, aproxima-se um bocado do trabalho que faço com o Coreto, embora ali seja mais funcional. Normalmente, [escrever] é uma coisa que passa um bocado pelos músicos da própria orquestra, pelo menos os que estão mais virados para aí. A orquestra dá essa possibilidade e abre essas oportunidades de escrevermos arranjos. Por exemplo, houve um ciclo de novos talentos que a orquestra organizou – e que organiza já há uns tempos –, em que sempre houve lugar para fazer arranjos dentro da orquestra. Portanto, eu já tinho tido essa experiência. Já tinha feito música para imagem, até em tempo real, e já tinha feito também [música] para uns vídeos pequenos. Agora, fazer música nesta perspectiva de uma obra cinematográfica que tem aquela importância nunca tinha feito, e isso foi um desafio muito fixe. Também nunca tinha escrito para uma formação tão grande e para cinema, ou seja, lidar com aquelas questões todas de sincronismo entre imagem e música… Para mim, foi uma aprendizagem óptima, mas com aquela pressão positiva de ser um filme realmente importante e de estar a lidar com a Orquestra Jazz de Matosinhos, que é sempre um instrumento com um potencial incrível.

Sentiste que o facto de estares restringido a uma narrativa pré-existente foi condicionante para a tua criatividade ou foi simplesmente mais exigente pelas limitações que impôs?

Não são propriamente limitações. São condicionantes e eu não as vejo como negativas. [Vejo-as] só como uma oportunidade de olhares para as coisas de outra maneira. E realmente estás condicionado, mas por alguma coisa que é estimulante, não por uma barreira com a qual não concordas. É uma coisa que te estimula. Aquela narrativa, no fundo, já está feita, não a tens que imaginar. [Além disso, a narrativa] é fascinante e estimulante. Quem está a escrever tenta não baixar as expectativas e estar ao nível do que lá está, da mensagem, de tentar equilibrar as coisas. Tendencialmente, quando escrevo, eu próprio já tento criar algumas barreiras ou condicionantes. E acho que isto até é algo mais ou menos comum entre os compositores: pegar num imaginário qualquer, que não tem necessariamente a ver com a música, ou pensar numa narrativa qualquer. E essas condicionantes são mais estímulos que outra coisa.



E a propósito, como descreverias o teu típico processo criativo e de composição?

Acima de tudo, há uma necessidade básica de fazer música, de estudo, de criar e de ouvir o resultado musical. Isso é a primeira coisa. Depois, e isso foi algo que fui descobrindo, a mim ajuda-me ter uma temática, que normalmente vai para além da música e que me estimula a escrever e me cria imagens visuais do que é que a música representa. É um bocado assim que eu tento funcionar: pegar numa temática, tentar desenvolvê-la, encontra um fio-condutor – um princípio, um meio e um fim –, começar do geral e, eventualmente, [tudo] isso desaguar nas notas que se escrevem. Eu acho que sermos estimulados por um livro, um disco, uma conversa ou um tema na sociedade é um processo comum a toda a gente. Mesmo não havendo um texto… claro que quando há um texto, quando as pessoas escrevem, tudo é muito mais directo: queres falar de uma coisa, escreves sobre isso. Na música, sem texto, é um bocado mais subjectivo e muito mais pessoal. Tens que ir lá dentro às tuas profundezas e tentar perceber como é que é que se traduz isso…

E muita beleza da música vem daí, não é…

Claro que sim… dessa parte mais profunda, não sei.

E foi dessas composições que escreveste para a big band que surgiu o teu último álbum, Trama no Navio, que desde já tenho de te dizer que é um trabalho brilhante, adorei ouvi-lo. 

Obrigado.

Como foi passar de um drama para uma trama? Como foi esse processo de reduzir um diamante já lapidado e com múltiplas faces a algo com menos dimensões, mantendo, ainda assim, o brilho do original?

A parte de reduzi-lo ao essencial não foi propriamente difícil, até porque a música que está na big band até partiu de algo mais simples. Normalmente crias um esqueleto e começas a encher aquilo. Então, [o que fiz] foi voltar ao início [risos]. Voltei ao esqueleto que tinha inicialmente e, na realidade, a partir daí, é tudo muito simples porque não está dependente de mim [risos]. Está dependente daqueles músicos, eles é que fazem o trabalho.

Os músicos [Ricardo Moreira (piano e orgão Hammond), Hugo Carvalhais (contrabaixo), Marcos Cavaleiro (bateria)] com quem gravaste o álbum foram, então, escolhas naturais?

Sim, os músicos foram escolhas bastante naturais…. claro que sim! Era o grupo que eu queria para esta música, sem dúvida. Por muitas razões… o que me atrai ali [no álbum], e o que eu não tinha experimentado até agora, era ter uma narrativa tão definida: isto começa aqui e vamos passar por este e por aquele ponto… No fundo, podes olhar para um disco e cada música é um desses passos, mas aqui a linha é contínua, o que é um bocadinho mais arriscado. Mesmo a gravação foi arriscada a esse nível, porque nós fizemos [apenas] dois takes, um de manhã e outro de tarde. Saber gerir esse percurso sem lhe retirar nem interesse nem frescura cada vez que se tocava era o desafio. E, sobretudo, o que me interessava era levar aquilo para uma dimensão para a qual eu não tinha escrito [inicialmente]. Na Orquestra Jazz Matosinhos, eu escrevi aquilo para o filme, ali não; ali é uma narrativa que está construída e que pode ser daquele filme ou de outra coisa qualquer, por isso é que é uma trama, uma trama qualquer, uma história. E depois a história é contada pelo grupo, não sou eu que a conto, é o grupo que a conta. Claro que há uma direcção e uma estética que nós encontrámos, mas aqueles estímulos são de todos, acho que se nota e se percebe.

E em relação à tua faceta de docente, uma pergunta muito directa que espero que não seja muito intrusiva: fá-lo para teres conforto económico ou por vocação? Se houvesse oportunidade de deixares o ensino para te dedicar integralmente às tuas restantes actividades, fá-lo-ias?

[Risos] Isso é muito complicado… Se calhar não te vou responder directamente à pergunta. Prefiro não pensar muito no que poderia ser a vida [caso não leccionasse]. Prefiro, apesar de tudo, ter uma perspectiva positiva sobre as coisas que faço. Há uma frase que a minha mãe me dizia quando eu andava a tentar fazer opções – mesmo antes da música – que me ficou e que acho faz muito sentido que é: “Não interessa tanto fazer o que se gosta, mas interessa mais gostar do que se faz”. E eu tenho de olhar para isto nessa perspectiva. Comecei a dar aulas mal deixei de trabalhar em engenharia e isso foi uma coisa estimulante e continua a ser. Agora, obviamente, há grupos de alunos mais estimulantes que outros, e há anos mais estimulantes que outros, e há anos em que a solicitação das outras áreas em que estou envolvido são demasiado intensas e em que as aulas estão a atrapalhar, assim como o contrário [também acontece]. Há projectos que têm a ver com a escola, que são extremamente estimulantes, em alturas que me dava jeito não estar a fazer outras coisas que tenho que fazer. Por exemplo, se calhar estou a tratar de umas papeladas na Porta-Jazz na altura e não me dava jeito nenhum. Ou seja, tentando ser mais directo: eu deixei de ser engenheiro para ser músico e, portanto, essa é a minha prioridade. Eu quero fazer música e essa é a minha prioridade! Ao mesmo tempo, tenho vindo a perceber que eu não sou naturalmente essa pessoa que faz só uma coisa. Para mim, estar bem e gerir a minha felicidade é também gerir estas várias vertentes. Mas é claro que me dava jeito desligar os interruptores em determinadas alturas, mas isso não se consegue fazer, tem de se gerir o tempo. Como tu sabes, todos nós temos multitasking para fazer. Às vezes, no meu caso, o multitasking é muito intenso. Eu aprendi a desligar durante uma hora para fazer música. Agora vou tratar deste Excel. Agora vou dar aulas. Agora vou ligar àquela pessoa por causa de uma parceria. Agora vou ligar aos músicos. Agora vamos fazer uma reunião… pronto, estou sempre a mudar [de tarefa], mas acho que isso faz parte de mim e, portanto, não te vou dizer que fui dar aulas porque decidi que era isto que queria fazer na minha vida. Não. A minha decisão foi deixar a engenharia para fazer música – essa foi a minha decisão! Tudo o resto veio como decisões consequentes dessa, das quais não me arrependo minimamente.

E achas que ensinar te torna melhor músico? Isto porque, ao estares em contacto permanente com as bases da tua disciplina, e ao seres sujeito a questões dos teus alunos que te apontam quer coisas que para ti já são óbvias, mas que eles interpretam de uma perspectiva diferente, quer os teus vícios técnicos, não és tu próprio forçado a melhorar enquanto músico?

Sem dúvida. É uma aprendizagem constante. Aliás, só o facto de não nos querermos repetir enquanto professores, [isto é] darmos voltas à cabeça para não nos repetirmos, embora o façamos, obviamente. [No ensino] deparamo-nos com personalidades completamente diferentes. As pessoas são todas diferentes. Os miúdos são completamente diferentes e às vezes põem em causa tudo o que te achas que está certo na progressão que eles fazem. Alguém que tu dizes “esta pessoa não tem hipótese nenhuma” e, de repente, ele dá um salto alucinante, por factores que tu percebes quais são, mas que nunca tinhas considerado. Há muitas coisas que são estimulantes, assim como o que eu faço na Porta-Jazz. O facto de me deparar, quase obrigatoriamente, com todos os projectos musicais que andam por aí… Eu ouço mesmo todos os discos! Eu e nós todos! Portanto, o facto de nós nos depararmos seriamente com os projectos, com as propostas, com quem vai tocar à sala todas as semanas… Isto é um estímulo enorme, e dá-te uma percepção da realidade que, consequentemente, tem um reflexo na percepção que temos de nós próprios. E isso com os alunos é a mesma coisa.



Apelando mais uma vez à tua experiência como professor, Portugal é hoje um país ainda como dificuldade em absorver talento musical, quer este seja auto-didacta, quer tenha saído das escolas e universidades? Ou acreditas que estamos a melhorar a esse nível?

Mas estás a falar de absorver talento a nível académico ou a nível profissional?

Referia-me a nível profissional…

O talento é uma coisa um bocadinho discutível. O que acho é que se o mercado não for estimulante, o talento nem sequer surge ou, pelo menos, esfumaça-se algures pelo caminho. Por isso é que eu acho que o trabalho que fazemos na Porta-Jazz é importante por dar uma perspectiva. Não é porque depois vais estar todas as semanas a tocar na Porta-Jazz, mas é por haver a perspectiva de actividade que há estímulo para quem está a explorar alguma coisa. Nessa medida, a minha reposta é sim para o que me estás a perguntar [da dificuldade em absorver talento], porque acho que o mercado e a actividade cultural portuguesa ainda é muito escassa. Estamos a falar do Porto e de Lisboa e o resto é muito pouco, mesmo muito pouco. Não estou a dizer que se faz um esforço pequeno. Estou a dizer que se faz um esforço muito grande e, mesmo assim, teria que haver muito mais. Se calhar tens um festival de música por cidade e no resto do ano não há mais nada. E estamos a falar de uma oferta que devia acontecer todas as semanas, devia ser um estímulo constante por todas as razões e mais algumas. Nesse aspecto, acho que sim, perde-se muito talento. E há muita gente que desiste! Da minha percepção prática de alunos, de colegas… muitos desistem de lutar, obviamente. E malta com objectivos interessantes.

Vivemos numa época em que o jazz ganhou um relevo que talvez nunca tenha tido anteriormente, muito graças à sua fusão com as sonoridades ditas mainstream, algo que trouxe um novo leque de ouvintes e também de investidores. Isto é um fenómeno que penso que tem, de certo modo, paralelismos com o que aconteceu nos anos 70, altura em que o jazz se mesclou com outros géneros, mas que, curiosamente, foi seguido da década de 80, em que o jazz perdeu ímpeto a nível global. Qual é a tua opinião sobre as novas tendências que o jazz e a música improvisada têm incorporado? Isto envolve um bocado de futurologia, mas acreditas que poderemos vir a assistir a alguma depressão depois deste período de euforia e profusão?

Tenho alguma dificuldade em fazer essa análise. Eu acho que o jazz sempre foi fusão… sempre! Toda a vida do jazz foi feita disso, não é? Aliás, o jazz surge da fusão de dois mundos musicais [mundo musical africano e ocidental (europeu)]. E [isso] sempre aconteceu, por exemplo com a música latina, nos anos 40 e 50. Estavas a falar dos anos 70… e falaste dos anos 80 como uma altura de depressão. Sim, mas nos anos 80 estava o Miles a fazer os projectos dele e com muita gente a ver. Eu acho que isso vai sempre acontecer. O que acho é que essas correntes que levam o jazz para o mainstream acabam por se esgotar porque se baseiam em fórmulas, válidas, mas que são fórmulas. E como qualquer fórmula, esgota-se e tem de se encontrar outra. Mas como o jazz está sempre a olhar para o lado, está sempre a ver o que é que se passa, realmente isso vai ser sempre cíclico. O jazz e o rock estão muito fundidos desde há uns tempos, [e também tem havido] uma onda muito forte com o hip hop. Mas isso são tudo coisas que correm o risco de entrar em fórmula, em receita. Normalmente, quando entram nessa fase é quando passam a ser aceites pelo mainstream, pela generalidade do público. E aí deixa, na minha perspectiva, de ter interesse, porque entra na fase em que deixa de ser jazz para passar a ser uma outra música, uma música popular, uma música baseada numa fórmula que não rompe com nada. A base do jazz, no meu entender, é essa tentativa de ruptura, contestação, de “pôr em causa” num bom sentido, de criar alguma coisa que não quer dizer que seja nova, mas que, pelo menos, seja nova para quem a está a fazer. Eu vejo muitas vezes esse discurso vigente: o jazz mais progressista, o jazz moderno… não é nada! É uma fórmula que não tem nada de moderno, é só uma fórmula que se vai esgotar – deixa de ser moderno no momento em que passou a ser uma fórmula [risos].

Pessoalmente, tendo a concordar com a tua opinião. As fórmulas tendem a definhar exactamente por serem repetição do que já foi feito.

Claro… Mas, no meio disto tudo, houve coisas super interessantes. Há sempre! Normalmente o que acontece é que quando há uma coisa super interessante que tenha essa fusão – e isso vê-se em todas as músicas, não é só no jazz –, pega-se naquilo, simplifica-se e reproduz-se. E aí já perdeu tudo. Isto é um exemplo meio absurdo, mas se calhar é uma comparação fácil de perceber: é o que se faz com a música árabe. A música árabe para os ocidentais é uma coisa muito simples [imita o estereótipo de melodia árabe]. Não é nada… aquilo não tem nada a ver com música árabe. É simplesmente dois tipos a encaixarem um mundo em cima de outro, a espremerem-no e a porem-no numa máquina para o reproduzir. E, entretanto, já deixou de ser música árabe há muito tempo. No fundo, [isso acontece] quando tiras a parte profunda que estávamos a falar da música, da descoberta, da pesquisa e da personalidade. Quando a música é pessoal, tem muito mais interesse do que quando é reproduzida por outra pessoa. Quando aquela música vem mesmo daquele grupo de pessoas, e não daquele outro grupo de pessoas que eu estou a imitar, tem muito mais interesse.

Sem dúvida. E até o facto de começar a haver novos investidores – em Portugal, se calhar, não é muito o caso – a nível mundial, inclusive majors, significa que alguma dessa música já atingiu o ponto de comercialização, estando por isso implícito que foi desprovida da parte mais complexa e que se consegue vender em série sob a forma de mercadoria.

Claro. Convém não confundir que a fusão em si não tem nada de mal, ou de menos rico. Porque, como te estava a dizer, a fusão sempre existiu no jazz e sempre vai existir. O pessoal nos anos 60… aquele jazz é o jazz tradicional com a música contemporânea e erudita, aquelas harmonias do Herbie Hancock e do Wayne Shorter. Há sempre fusão, sempre houve, e sempre irá haver… faz parte. É preciso jogar com a sinceridade ou honestidade de cada proposta.

[Dito isto] eu não tenho dúvidas nenhumas que a música que eu faço está cheia de reproduções de coisas que já foram feitas. Agora, eu não parto é, à partida, desse pressuposto [de simples reprodução]. Uma coisa é ser influenciável e ter referências, isso vai sempre acontecer. Porém, quando a música parte já do pressuposto que vai ser uma reprodução, acaba por ser um simples encaixar de peças. Não tenho a pretensão de ser aquela pessoa muito inovadora – isso não existe! Nós vamos dando o nosso pequeno contributo e isto vai evoluindo. Se não se dá contributo nenhum, isto não evolui [risos].

Numa perspectiva pessoal, o que esperar de João Pedro Brandão em 2021? Que projectos é que este novo ano traz no bico?

Sinceramente, este início de 2021 está a ser a apanhar os cacos e a tentar reconstruir tudo o que foi caindo. Começando pelo festival… estamos a perder muita energia com isso. Musicalmente, eu gostava de tocar com este projecto [de Trama no Navio]. Gostava muito de o tocar ao vivo e tenho algum receio de que não consigamos fazê-lo ainda em 2021. Também gostava de continuar a fazer música e conseguir que isso fosse uma actividade mais intensa [risos]. Como te disse há pouco, o meu objectivo de vida é esse, não que os outros não façam parte, mas esse é o primordial. Gostava de ter espaço para tocar mais ao vivo. Em 2021, esperemos que dê para fazer alguma parte disso. De resto, eventualmente vamos gravar com o Coreto mais um disco. Também estamos a pensar [gravar] com o Bode Wilson, o trio que tenho com o Marcos [Cavaleiro] e o Demian [Cabaud], [no qual] também queríamos fazer mais um disco. Vai sair mais um disco do Demian em que eu participo, que é um projecto do qual eu gosto muito. Há aí coisas a acontecer, obviamente…

E em relação à Porta-Jazz, há algum projecto que gostasses de referir ou revelar?

Em 2021, o que nós queremos é, pelo menos, retomar a intensidade da actividade que tínhamos, ou seja: voltar à sala ou à tenda; regressar à regularidade semanal dos concertos; proporcionar oportunidades de a malta tocar fora do Porto e no Porto; retomar parcerias que tínhamos com alguns festivais internacionais e grupos fora do Porto; tentar proporcionar intercâmbios entre músicos da nossa geração… porque isto tudo levou um grande travão! Retomar tudo isso é o que nós queremos em 2021. E já é um grande objectivo.


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