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Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 19/03/2019

O ano de 2019 começou há pouco, e o transacto ainda nos está fresco na memória, mas já temos espaço reservado para os novos planos do escultor sonoro do Porto, venham sob que nome vierem. Mais do que obrigatório, é necessário acompanharmos a sua evolução.

João Pais Filipe: “Eu gosto de me pôr constantemente à prova. Não gosto de me acomodar”

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 19/03/2019

“Tu ouves tudo ao mesmo tempo, mas para mim são secções claramente distintas”. É assim que João Pais Filipe, portuense de gema, percussionista multifacetado e artesão encara o que faz. E não é fácil enquadrar a sua expressão, que problematiza fundamentalmente o papel a que a percussão tantas vezes é reduzida na música contemporânea. O que Pais Filipe faz é muito mais do que umas batidas, é música concreta e aproxima-se de territórios que não têm nada em comum com aquilo a que soa para além de uma aura, uma ideia, ou uma plasticidade sónica.

O percussionista não é novo nestas paragens, mas foi em 2018 que os seus emissores entraram em força em todos os radares do circuito alternativo e experimental de Portugal e da Europa — ao ponto de o colocar em rota de colisão com Burnt Friedman, produtor alemão fundamental da música experimental e electrónica dos últimos 30 anos. O encontro consumou-se no Porto, durante o mês de Fevereiro, naquilo que foi uma sessão de gravações entre os dois músicos, com o aval do germânico a chegar em parcas, mas sentidas palavras: “eu estou há 40 anos a preparar-me para isto. Tu estás há 15″. De facto, há acasos que não se podem explicar, mas este poderá ser ouvido muito em breve.

No seu currículo, João Pais Filipe conta com inúmeras colaborações e projectos em que se assume como peça central, desde os seus mais recentes tentos a solo, à colaboração com Valentina Magaletti nos CZN (nome que vai buscar à liga de metal que o artesão usa para fazer os seus gongs e cymbals: “copper-zinc-nickel”), à dupla com o explosivo saxofonista Julius Gabriel epitetada Paisiel, uma contracção de ambos os apelidos, até ao buraco negro voodoo HHY & the Macumbas.

Em 2018, todos estes projectos chegaram aos escaparates com álbuns novos e o portuense foi, em todos eles, um elemento fundamental. E a eles acrescem, ainda, nomes seminais da cena mais pesada portuense, como Sektor 304 ou Mécanosphère, ou, mais recentemente, Sinter, e ainda colaborações com Rafael Toral, o projecto audiovisual Montanha Magnética, e inúmeras variações de outputs, que atestam a massa de talento que é o objecto deste texto. Mais preocupante ainda: parece que está tudo a começar agora e que há mais para vir, muito mais.



O seu som, de difícil catalogação, é impossível de encaixar: é uma problematização constante e uma mutação singular, cujas estirpes novas se ouvem sempre com a familiaridade recorrente para quem já conhece este vírus criativo, talvez mais sintomático da sua frequência no curso de Pintura, na Faculdade de Belas Artes do Porto, e de uma sede de constante superação: “Eu gosto de me pôr constantemente à prova. Não gosto de me acomodar,” contou em entrevista ao Rimas e Batidas. É, de resto, algo audível a níveis gritantes na sua expressão, que começa bem antes de se pegar nas baquetas. Pais Filipe nunca foi apenas um baterista ou percussionista. Não é timoneiro, mas sim uma peça fundamental do som que compõe: “eu sempre gostei mais de fazer duos por causa disso, é tudo muito mais discutido e trabalhado em conjunto. E tenho um papel semelhante em todos os projectos em que estou envolvido, desde Sektor a Macumbas.”

Esta procura identitária começa tanto na forma como prepara o seu kit quanto na forma como o aborda. “Este kit com que toco foi, na sua quase totalidade, feito ou alterado por mim”. Desde um jambé aproveitado pelo som da madeira, um bombo transformado em timbalão com gigantismo, ou toms adaptados para fazer linhas melódicas semelhantes às de um baixo, até, claro, aos seus cymbals e gongs, que variam do som seco e imediato ao expansivo, de sustains prolongados. “Eu adapto o meu kit consoante o projecto. Há sempre uma relação e alguns são mais próximos do que outros. Por exemplo, Paisiel é mais roqueiro (sem ser rock) e apesar de usar este mesmo kit para o meu set a solo, uso sons mais abertos e menos secos para ir atrás da jarda toda do Julius. A solo toco com sons mais recortados”, explicou.

Por isso, descrevê-lo como percussionista é redutor e há que escolher outra terminologia: homem-mixer, um ser de inúmeros inputs, que vai beber desde os primeiros tentos de Mika Vainio, até ao Drumming de Steve Reich, ao compositor grego Iánnis Xenákis, a Muslimgauze, ou a, claro, Burnt Friedman e os inúmeros registos que criou e questões que levantou com o icónico baterista de CAN, Jaki Liebezeit; tudo isto, com uma paragem fundamental nos ambientes industriais, ou inspirações sorvidas das estéticas mais black e death do metal. O processo canaliza-se, depois, para os seus principais outputs: os braços — dois, em stereo — que de forma minimal constroem peças circulares de complexidades capazes de nos tomar o fôlego ou induzir transe, que ora soam a techno minimal e encarnam texturas da concreta, ora são mantras, de inspiração africana ou médio-oriental, mas resvalam o dançável. Não interessa se lhe chamam música experimental ou, como tem acontecido, ethno-techno; nunca serão nomenclaturas que descrevem na totalidade o trabalho de João Pais Filipe: “Eu acho estes termos todos castradores e redutores. Quando estou a tocar não estou a pensar em Pan Sonic ou Muslimgauze. São coisas que já estão lá.”


“A minha ideia era criar grooves que fossem naturais.”


A procura por esta expressão singular, já o assinalámos em cima pelas palavras de Burnt Friedman, não é recente — conta com mais de década e meia de trabalho –, e tem sido morosa, quase dolorosa, justificada e ponderada: “Só passado um bom bocado depois de ter começado a trabalhar na cena a solo é que me apercebi de que tinha perdido muita coisa na maneira de tocar, afectou-me muito. Ganhei em muito, mas perdi — talvez esta não seja a palavra certa — uma cena mais orgânica que tinha, que agora é mais automatizada. Não é que não o consiga fazer, mas já não me saem naturalmente, tipo fazer breaks e essas merdas.”

Falamos de uma abordagem fundamentalmente diferente daquilo que associamos com percussão, portanto. Aproxima-se mais do que se espera de um produtor de música electrónica e menos de um mero executante. “A maneira como comecei a tocar mudou totalmente. É como se o meu kit não fosse sequer uma bateria. Encaro as coisas como linhas de baixo, elementos melódicos, etc”. Elevar a arte da percussão sem a retirar de um contexto minimal, passível de ser reproduzido com apenas dois braços, com o mantra e a naturalidade a criarem em tensão com o automatismo industrializado latente do seu trabalho; isto é, chegar a um ponto em que soar a si próprio fosse uma expressão sua, e não um esforço constante.

“A minha ideia, e foi por isso que perdi muito tempo, era criar grooves que fossem naturais. São peças em tempos que não são regulares, mas eu queria que soasse tudo quase circunstancial. Não quero estar ali a contar tempos,” explica, opondo o que faz imediatamente aos meandros de um universo rock hiper-complexificado. “Quis levar as coisas para um nível que não é melhor, nem pior, mas era onde eu queria chegar. Era a minha cena. E demorei muito tempo a conseguir fazer tudo, desde montar o kit a mudar o chip na forma como abordo o instrumento. Tive de praticar bastante, até para ter a capacidade de estar 15 minutos a tocar quase a mesma coisa, mas ainda assim ser capaz de acrescentar e tirar pormenores, quase como se fosse uma mesa de mistura.”

Este é, de resto, um dos elementos que torna a expressão de Pais Filipe fundamentalmente familiar para quem o ouve: a capacidade de tornar extremamente complexo elementos relativamente simples. “Eu trabalho muito um aspecto ‘ilusório’ da música, em que parece que estou a fazer algo de inspiração mais electrónica, minimal e directa, mas se tocar os elementos de forma isolada estes estão em tempos e cadências completamente distintas e que bebem em África, ou no Médio Oriente.” Como acontece, por exemplo, em “Konorak” do registo solo homónimo lançado com o selo da portuense Lovers & Lollypops, em que a justaposição de elementos cria uma permanente sensação de hesitação, de contratempo, ou do coração a saltar uma batida. O mesmo pode sentir-se em “Limousine in the desert” de Paisiel, com o sopro circular de Julius Gabriel a aterrar como um motor sobre o asfalto líquido de Pais Filipe, pejado de pequenos truques sonoros que induzem ilusão.

São detalhes mais ou menos fáceis de reproduzir num contexto de concerto, que levam o percussionista a trabalhá-los e a perceber-lhes a importância de soar com suavidade e naturalidade, e de perceber que vantagens traz o estúdio, e que vantagens trazem os momentos ao vivo: “Apesar de serem processos muito diferentes, o adaptar de uma peça para a tocar ao vivo acaba por ser muito importante. É aí que surgem ideias novas, grooves novos. E o inverso começou agora a acontecer. Estou a tocar coisas novas e a fazer uma adaptação para as gravar. Estou a perceber como o vou fazer e de que maneira.”

Nisso entra também um processo de enriquecimento das faixas, com overdubs estratégicos. Ouça-se o gong, tocado com arco de violino, em “Nine Doors”, ou as notas suspensas a impregnar a aura de “Kavusan” como pequenos apontamentos de elevação espiritual. O inverso apela, de outra maneira, a uma expressão latente e hipnótica, que vive da construção de peças com linhas melódicas claras e cadências que embalam atenções e as diluem na circularidade das suas progressões — não é por acaso que João Pais Filipe reserva para os seus pés a capacidade de envolver um ocasional gong nas suas expressões ao vivo.


“A maneira como comecei a tocar mudou totalmente. É como se o meu kit não fosse sequer uma bateria.”


O ano 2018 foi encerrado, feitas as contas finais, com seis registos: o seu regresso a solo (sim, o primeiro álbum em nome próprio já data de 2008), a cassete com Paisiel, o vinil com CZN, o segundo longa-duração de HHY & The Macumbas, e dois discos com Rafael Toral, Space Quartet e Saturn. Contudo, não é aqui que acabam os outputs de um Pais Filipe mais prolífico do que nunca — algo que, na sua abordagem humilde, se explica talvez por não ter de equilibrar a sua arte com um trabalho a full time, mas que nós explicamos de outra forma: enquanto houver algo a dizer, há quem queira ouvir o João Pais Filipe. E não faltam planos ao portuense.

Na calha, o artesão e percussionista tem em vista mais um tento a solo, e encontra-se a preparar um novo disco de Paisiel, que deverá elevar as questões que ambos os músicos fazem sobre os próprios instrumentos a novos patamares. Pais Filipe continuará a sua problematização sobre a abordagem aos elementos de percussão, e Julius Gabriel deverá deixar a interrogação sobre a forma como se capta e processa o som de um saxofone, sendo que o alemão pretere o microfone a um pickup de guitarra e processa o seu instrumento através de uma pedaleira e amplificadores. O novo registo será tanto um ensaio quanto um álbum e serve para extrapolar o número de possibilidades que ainda não existem na altura de abordar estes instrumentos em estúdio.

Há, ainda, o fechar de uma temporada com a dupla Talea Jacta, uma nova peça composta com os britânicos mutantes GNOD e uma banda sonora virada disco com Black Bombaim. O primeiro, duo com Pedro Pestana (Tren Go! Soundsystem, 10 000 Russos), parte de uma residência artística no Maus Hábitos, no Porto, desdobrada em quatro volumes ou concertos, com André Couto (10 000 Russos, dreamweapon), Rafael Toral, Wendy Mulder (Onrust), e Julius Gabriel como convidados especiais, que foram gravados e dos quais vai resultar um novo registo. Com Black Bombaim, locomotiva stoner de Barcelos, começou tudo a convite do festival Curtas de Vila do Conde, que lançou o repto ao trio e ao artesão de se juntarem em palco para musicar o filme Dragonflies with Birds and Snake do alemão Wolfgang Lehmann. Meses de trabalho resultaram numa actuação singular, com direito a repetição no Porto e a sessão de estúdio no dia imediatamente a seguir à performance. O álbum também deverá sair este ano.

Seguida à conversa que deu neste texto, veio uma sessão de estúdio com Burnt Friedman. Aconteceu mesmo, e quase parecia inscrito nos astros. Esoterismos bacocos de parte (nunca fizeram parte deste diálogo, de todo o modo), um misto de alegria, ânsia e incredulidade estava espelhado na cara de João Pais Filipe a falar do tempo que o esperava em estúdio com o alemão: “Para mim, ter cá o Friedman é muito simbólico e especial, principalmente pelo trabalho dele com o Jaki Liebezeit. Eu acho que a abordagem que eles tiveram à música é inacreditável, desde a estética ao próprio som que eles tiravam dos instrumentos. É provavelmente a minha influência mais central e transcende musicalidade; é muito singular e abriu-me muitas possibilidades.”

O que podemos esperar desta sessão, nem o próprio artesão sabe especificar. “Em cima da mesa estava colaborar com ele, ou editar pela label dele, a Nonplace. Claro que eu quero os dois [risos]. Mas sei lá, ele manda-me mails e eu nem sequer imponho nada nada. Ele que venha e por mim ‘tá tudo! É mesmo especial, até me custa crer que vai mesmo acontecer”. Custa mais, se se recuar a 2009, a um Clubbing na Casa da Música, que tinha um cartaz de luxo, principalmente para quem, como Pais Filipe e este que vos escreve, partilha uma predilecção pela música pesada e sonoridades robustas e distorcidas. Os noruegueses Ulver, que trilham desde o black metal canónico à electrónica, ao prog rock, aterravam na sala portuense para o seu segundo concerto de sempre, seguindo-se aos icónicos Throbbing Gristle — que, por desistência de Genesis P-Orridge, actuaram como XTG.



Na Sala Suggia, no entanto, ouvia-se música experimental que ainda não se podia datar, nem balizar, que transcendia a transformação regressiva dos Ulver dos 90s para diante, com electrónica, e para trás em busca do progressivo, ou os passos fundamentais do britânicos no surgimento do industrial e cuja época áurea assenta nos 70s e 80s. Falamos, nem por acaso, de Burnt Friedman e Jaki Liebezeit, que traziam a sua pesquisa musical, tensão orgânica-electrónica, até ao Porto e deram um concerto monumental. Seguiu-se uma pequena interacção entre Liebezeit e Pais Filipe que este recorda bem: “Virou-se para mim e disse ‘és baterista? Nunca tocaste com um kit assim, aposto’. [Risos] Na altura pareceu quase um desafio.”

O tal desafio chegou ao seu estágio final em Outubro passado, quando o portuense rumou para sul, em direcção ao Out.Fest, festival de música exploratória que enche as margens do Tejo, no Barreiro, com alguma da música mais fundamental de amanhã. “O concerto no Out.Fest, por acaso, foi memorável. Nem te sei explicar porquê, mas foi. Eu estava a tocar e sentia mesmo que o pessoal estava a adorar. Foi perfeito, estava tudo louco”, admitiu, colocando a hipótese de jogar em casa, ou seja, no contexto certo e para as pessoas certas, para este estado de quase-nirvana a que chegou na Margem Sul. “A verdade é que eu acabei de tocar, saio para o lado do palco e tenho o Burnt Friedman, o Mohammad Reza Mortazavi (percussionista iraniano com quem Friedman tocou), e o Vítor Rua logo a querer falar comigo. Foi inacreditável.”

Um Burnt Friedman que não perdeu o concerto por acaso, muito por influência da organização do festival, que o posicionou estrategicamente entre a audiência do artesão e percussionista portuense. O resto é história: “O Burnt pediu o meu contacto e começámos logo a trocar mails, e depois chamadas. Eventualmente ele perguntou-me ‘o que é que tu achas de eu ir aí ao Porto gravar-te?’” A pergunta foi recebida como seria de suspeitar: “‘O que é que eu acho?!’ Se calhar vou estar ocupado…’ [risos] É inacreditável, claro que aceitei logo.”

Imediatamente no rescaldo da sessão com o produtor alemão, chegou ainda a colaboração com GNOD, fruto de um desafio lançado pela Lovers & Lollypops para se apresentarem em conjunto e ao vivo. Começou com três dias na oficina de João Pais Filipe, que se transformaram num concerto e que despertaram de imediato a sede de estúdio. A oficina, uma vez mais, virou sala de captações para um álbum cujos detalhes ainda estão a ser alinhados.

O ano de 2019 começou há pouco, e o transacto ainda nos está fresco na memória, mas já temos espaço reservado para os novos planos de João Pais Filipe, venham sob que nome vierem. Mais do que obrigatório, é necessário acompanharmos a sua evolução. Esta tem sido a raiz para muitas mutações novas da música contemporânea portuguesa e promete continuar a ser um dos seus pólos de experimentação mais frutuosos.


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