Seis anos depois de Parallel Realities, o baterista João Lencastre regressa a um universo que nunca deixou verdadeiramente em suspenso. Parallel Realities II nasce tanto de uma vontade consciente de dar continuidade a um projeto que ficou interrompido pela pandemia como da mesma urgência criativa que tem marcado grande parte da sua discografia. Mais do que uma sequela no sentido clássico, este segundo capítulo assume-se como um prolongamento natural de uma história iniciada em 2019, preservando o risco, a abertura e a frontalidade que definem o ensemble desde a sua formação original.
Ao longo do disco — e da conversa que se segue — percebe-se que a ideia de liderança em Lencastre continua distante de qualquer noção de controlo. Criar condições, sugerir direções, lançar provocações: é nesse espaço de liberdade partilhada que a música acontece. Mantendo exatamente a mesma formação — com João Lencastre e ainda o guitarrista Pedro Branco, o baixista e manipulador de electrónicas João Hasselberg, o pianista Rodrigo Pinheiro e o saxofonista Albert Cirera — Parallel Realities II aprofunda uma confiança rara entre músicos que sabem ouvir, reagir e construir em tempo real, aceitando a incerteza como parte essencial do processo criativo. As composições surgem como pontos de partida, nunca como destinos fechados.
Situado claramente no território da improvisação livre e da música experimental, o álbum explora contrastes extremos — densidade e silêncio, intensidade e suspensão — sem nunca perder a coesão do grupo. Para Lencastre, tocar continua a ser um exercício de escuta e de instinto, onde a música dita sempre o caminho. É essa filosofia que faz com que cada concerto possa desmontar o disco e reconstruí-lo de outra forma, mantendo intacta a sua essência. Nesta entrevista, entramos nos bastidores desse processo e nas perguntas que continuam a mover um dos músicos mais inquietos da cena portuguesa contemporânea.
Em entrevistas anteriores disseste que muitos dos teus discos nascem mais de uma necessidade do que de um plano. No caso de Parallel Realities II, sentiste essa mesma urgência ou houve aqui uma decisão mais consciente de regressar a um universo específico?
Gosto muito de como soa o primeiro disco, e senti que este ano era uma boa altura para dar-lhe continuidade e “relançar” o grupo, que funciona também muito bem ao vivo, mas que acabou por ficar meio parado na altura da pandemia…
Quando falaste do primeiro Parallel Realities, referiste muito a ideia de risco e de entrar em estúdio sem rede. Seis anos depois, esse risco é hoje o mesmo ou assume outra forma?
A atitude e a vontade pela procura é a mesma, apesar de neste disco o tipo de composição em alguns temas ser diferente. O risco depende sempre do quão queres sair da tua zona de conforto, e uma das razões porque este grupo funciona é porque gostamos de saltar para fora de pé.
Tens dito que liderar não é controlar, mas criar condições. O que mudou na forma como crias essas condições entre o primeiro disco e este segundo capítulo?
Acho que nada mudou, tirando o facto que neste disco há alguns temas escritos, e no primeiro a direção foi sobretudo dada através de ideias visuais ou de palavras que sugerem uma direção ou um andamento. Tento sempre ser o mais breve e claro possível na ideia que quero para a música para não condicionar ou limitar o processo criativo de cada um.
Em vários momentos do teu percurso tens sublinhado a importância da escuta. Neste ensemble em particular, sentes que hoje escutas de maneira diferente do que em 2019?
Diria que sim, que há um amadurecimento e uma evolução enquanto músico, mas mesmo em espaços mais curtos de tempo, que pode até ser de um dia para o outro, dependendo da sala, do instrumento, do estado de espírito, do tempo, etc. Ouço e reajo de forma diferente, mesmo que seja a tocar o mesmo repertório.
O facto de manteres exatamente a mesma formação sugere uma confiança rara. O que é que este grupo já sabe fazer contigo — e contigo como líder — que não estava ainda totalmente claro no primeiro disco?
Acho que não há nada que não soubessem já fazer. Desde que os conheço que têm uma personalidade musical muito forte, e é sempre muito fácil improvisar e criar em tempo real com eles. Soa diferente sempre que tocamos, e é exatamente isso que eu procuro, ser surpreendido e desafiado a cada concerto ou gravação.
Noutras entrevistas falaste da composição como algo que pode ser bastante aberta, quase incompleta. Em Parallel Realities II, as tuas composições funcionam mais como estruturas ou como provocações?
São pontos de partida, pontos de passagem, ou de chegada, que sugerem um mood ou um universo musical, mas onde há sempre um espaço para uma incerteza do que vai acontecer.
Há uma tensão constante no disco entre momentos de grande densidade e outros quase silenciosos. Essa relação com o silêncio é algo que sentes ter ganho mais peso no teu pensamento musical recente?
Os contrastes na música sempre me fascinaram e são algo que sempre gostei de explorar. Há infinitas formas de explorar isso e talvez o silêncio e espaço sejam tenham sido mais bem conseguidos neste disco, apesar de não ter sido uma coisa premeditada, a música assim ditou que isso acontecesse.
Tens projetos muito distintos entre si, alguns mais próximos da canção, outros da electrónica ou do jazz mais reconhecível. Onde colocas Parallel Realities II nesse mapa pessoal que tens vindo a construir?
Diria na improvisação livre/avant-garde/experimental.
Diz-se a propósito dos filmes que as sequelas quase nunca são tão boas quanto os originais. Eu, por exemplo, gosto mais do Padrinho II do que do primeiro filme da saga. Como olhas tu para estes dois trabalhos em específico?
Acho que os discos se complementam e que podem ser vistos como uma só história, como um primeiro e segundo capítulo. Obviamente que haverá quem prefira o I e quem prefira o II, mas, como se costuma dizer, gostos não se discutem.
Enquanto baterista, muitas vezes és associado à energia e à intensidade. Neste disco, sentes que o teu papel passa mais por empurrar a música ou por saber quando sair completamente do caminho?
Quando toco, seja em que estilo for, dou sempre prioridade à música sobre a técnica ou a parte individual. É a música que dita a minha forma de tocar, tento reagir de uma forma instintiva e não racional, e a maneira como toco neste disco é o resultado disso mesmo.
Quando pensas nesta música em palco, o que te interessa mais: a fidelidade ao que ficou registado ou a possibilidade de cada concerto desmontar completamente o disco?
Acho que é importante manter a personalidade do grupo, mas espero que cada concerto seja diferente. Essa é a essência do jazz, seja ele mais mainstream, avant-garde ou free jazz: é a interpretação, o tocar o momento. Como um exemplo disso a um nível muito alto, temos o Complete Plugged Nickel do Miles Davis: é incrível como a interpretação dos mesmos temas varia de noite para noite, sem nunca perder a magia.
Já disseste noutras ocasiões que alguns projectos existem sobretudo para te desafiarem. Este ensemble continua a desafiar-te da mesma forma ou obriga-te agora a outros tipos de perguntas?
Sim, continua a desafiar-me da mesma forma e ainda bem. É sempre uma surpresa e é isso que me dá vontade de continuarmos a tocar.
Olhando para Parallel Realities II no contexto do que tens feito nos últimos anos, sentes que este disco fecha um pensamento que vinha de trás ou abre um território novo que ainda queres explorar?
Acho que é mais um conto da minha história. Não consigo agora dizer se irei fazer mais discos com este grupo ou do mesmo género, mas muito provavelmente sim. Mas não penso nisso agora, se for para acontecer, na altura certa hei de o sentir.