O baterista e compositor lisboeta João Lencastre chega agora a um novo capítulo na sua carreira com o lançamento do álbum This is Not a Jazz Record, uma proposta audaciosa com que o músico pretende libertar-se das convenções do género com que até aqui o seu trabalho foi normalmente associado — como acontece no seu novíssimo Parallel Realities II. Após mais de duas décadas de trajectória, em que gravou mais de uma dezena de discos como líder e acumulou distinções importantes no panorama do jazz português — entre elas o prémio de “Músico do Ano” atribuído pela RTP/Festa do Jazz — Lencastre decide romper com expectativas e explorar uma paisagem sonora que abraça a electrónica, a improvisação livre e a interacção em tempo real.
Na conversa que se segue, Lencastre explica por que razão escolheu o título “This is Not a Jazz Record” para este registo lançado no final do mês de Outubro, como encara os limites ou a ausência deles no jazz contemporâneo, e como o uso de instrumentos electrónicos, samplers e processamentos — associados à liberdade rítmica e à improvisação — marcam esta viragem criativa. Aponta-se também ao seu método de criação e, em termos mais gerais, ao seu sério pensamento sobre o trabalho criativo e o seu posicionamento em cada momento do seu percurso. Esse percurso e essa transição — de baterista “orgânico”, enraizado no jazz, para explorador de territórios electrónicos e livres — tornam este álbum numa proposta diferenciada e significante na carreira de João Lencastre. Aqui, mais do que nunca, o artista assume que faz música porque tem necessidade de a fazer e não para satisfazer expectativas alheias.
O título do álbum, This is Not a Jazz Record, é uma afirmação provocatória. O que quiseste dizer com essa declaração? É uma simples negação, uma ironia, ou uma tentativa de libertar o disco das categorias de género?
Este título foi a forma que encontrei para poder editar o disco em meu nome e não ser um “choque” para quem o fosse ouvir. Porque, até agora, todos os discos em meu nome são mais ligados ao jazz, à música contemporânea ou à improvisação livre, e este disco explora um universo musical bastante diferente.
Ao dizeres “isto não é um disco de jazz”, estás a questionar o próprio significado do termo. Para ti, onde começa e acaba o jazz hoje?
O jazz não tem limites, desde que se mantenha fiel a alguns pontos que eu considero serem a essência do jazz: a espontaneidade, a improvisação e a interação em tempo real. A partir do momento em que existe uma pós-produção, essa essência, a meu ver, deixa de existir.
Apesar do título, sente-se no disco um forte sentido de improvisação e liberdade — dois pilares do jazz. Em que medida achas que o espírito jazzístico ainda atravessa este trabalho, mesmo sem o formato tradicional?
Seja em que contexto for, a minha visão da música é a mesma, e estarão sempre presentes elementos de diferentes géneros musicais, da mesma forma que nos meus discos de jazz também se podem ouvir influências do rock, metal, música clássica… Aqui naturalmente isso também acontece e o jazz poderá ser uma delas, apesar de nunca ter sido uma escolha consciente.
A exploração electrónica é central no álbum. Acreditas que é possível fazer jazz exclusivamente com instrumentos electrónicos — sem qualquer elemento acústico — e ainda assim preservar a essência do género?
Claro que sim, e não só acho possível como até pode ser uma boa ideia para explorar no futuro. Mas para isso acontecer da forma como eu vejo o jazz teria que ser uma coisa que mantivesse aqueles pontos que referi anteriormente — o ser tocado em tempo real, sem pós-produção, em que cada músico ouve e reage no momento.
Ao longo da tua carreira tens sido associado à improvisação acústica e à bateria “orgânica”. O que te motivou a mergulhar neste universo electrónico? Foi curiosidade, necessidade de ruptura, ou algo mais pessoal?
Foi o gosto que tenho por explorar diferentes universos musicais. Desde muito cedo que tive o fascínio e a necessidade de conhecer diferentes tipos de música, e a música electrónica é um deles. Já no tempo em que tocava com os Blasted Mechanism, explorávamos muito uma sonoridade electrónica, mas aí tocada totalmente acústica. Eu tinha um kit com um bidon e vários objectos metálicos, para procurar simular um som maquinal. Mais tarde, com um grupo que tinha com o Jesse Chandler e o André Fernandes, os Eurobotz, também explorávamos uma vertente electrónica, e foi aí que comecei a usar uns pads da Roland. Uns anos mais tarde adquiri um Roland SPD-SX e um pedal de loops, e comecei a incorporar isso com o kit acústico nalguns projectos como EEL SLAP! (duo com Pedro Branco), no duo com o André Fernandes, no trio No Gravity (com Rodrigo Pinheiro e João Hasselberg), e no mais recente Parallel Realities II. No duo com o Albert Cirera usava para além disso alguns synths, o Korg Monologue, e o Roland JD-XI, tudo ligado ao looper, que me permitia ir construindo camadas em tempo real em paralelo com a bateria acústica.
Alguns bateristas contemporâneos, como Gerald Cleaver, também têm desenvolvido trabalhos paralelos com electrónica. O percurso desses músicos serviu-te de inspiração ou referência neste projecto?
Sou grande fã do Gerald Cleaver e conheço alguns dos trabalhos dele com electrónica, mas neste caso não sinto que tenha tido alguma influência para este disco.
Sentiste algum tipo de resistência interior — ou até receio — em apresentar um trabalho que desafia as expectativas da comunidade jazzística? Preocupa-te a forma como o meio do jazz poderá reagir a este disco?
A única dúvida que tive foi como apresentar o disco, se em meu nome, ou se arranjava um nome artístico… Isto por causa do que já referi anteriormente, não queria que as pessoas que seguem o meu trabalho mais ligado ao jazz fossem apanhadas de surpresa por uma coisa completamente diferente. De resto, nada me preocupa, faço música porque tenho a necessidade de o fazer, seja que género musical for, e gosto de partilhá-la com quem a quiser ouvir. Aprendi com a experiência a não criar grandes expectativas, nem me preocupar com o que os outros vão achar. Desde que eu me identifique com o que estou a apresentar e sinta que retrata bem a minha identidade musical, estou tranquilo.
O álbum tem uma forte componente rítmica. Que tipos de padrões rítmicos e métricas exploraste aqui? Há polirritmias, subdivisões irregulares ou estruturas mais livres que procuraste desenvolver?
Toda a parte rítmica surgiu de forma muito natural. À medida que os temas foram ganhando forma, fui imaginando diferentes ritmos que se pudessem complementar ou contrastar uns com os outros, que é algo que adoro explorar já há vários anos também na bateria acústica. É um processo mais intuitivo do que matemático, apesar de conseguir analisar e saber ritmicamente o que está a acontecer. Neste caso as possibilidades são infinitas, porque não há uma limitação técnica, tudo o que penso consigo executar. E não há também a limitação de só ter dois pés e duas mãos…
Do ponto de vista técnico e criativo, que ferramentas usaste neste álbum? Que tipo de hardware, software, sintetizadores, samplers ou processamentos estiveram envolvidos no processo de composição e gravação?
O software que uso é o Ableton Live. Depois uso diferentes synths, caixas de ritmos, etc. Usei essencialmente o Korg Monologue, Korg Volca Modular, Korg Volca Drum, Arturia Drumbrute Impact, Roland JD-XI, Behringer Crave e vários plugins do Ableton.
Podes descrever um pouco o teu método de trabalho? O álbum nasceu de improvisações gravadas e depois editadas, ou foi composto com um plano e estrutura definidos desde o início?
Normalmente a ideia inicial surge da improvisação com um dos synths ou drum machines, e quando encontro alguma coisa que goste, gravo-a. Depois adiciono um groove base ou uma linha de baixo e a partir daí vou experimentando diferentes melodias, harmonias, e todo o tipo de sons. Em seguida faço uma seleção do que eu acho que funciona e não funciona. E por fim, chega a parte de criar uma estrutura, um princípio, um meio e um fim, onde trabalho também mais detalhadamente a parte rítmica.