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Fotografia: Montse López Cheliz
Publicado a: 09/09/2021

A verdade morreu. Viva a verdade.

João de Nóbrega Pupo: “A chave para a compreensão humana nunca foi e nunca será segredo. É a velha da empatia”

Fotografia: Montse López Cheliz
Publicado a: 09/09/2021

Em Para além d bem e mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro, Friedrich Nietzsche colocava os conceitos de verdade e vontade em conflito. “Todas as coisas estão sujeitas a interpretação”, escrevia o famoso filósofo no livro publicado em 1886. “Qualquer interpretação que se conserve num certo momento, é função de vontade e não de verdade”. É com base nesta tensão, entre o facto e a crença, que João de Nóbrega Pupo parte para o seu novo álbum, The Death of Truth, que o Rimas e Batidas tem o prazer de estrear esta quinta-feira (a primeira apresentação ao vivo acontece no próximo dia 11 de setembro no Cais do Carvão, na Madeira).

Sonified Notations, a estreia do músico e compositor madeirense pelo Colectivo Casa Amarela, foi um ponto de partida. O seu sucessor, que volta a receber o carimbo da editora de Bruno Pereira (aka Aires), dá um importante passo em frente. Pensado inicialmente para uma performance na edição de 2020 do festival Madeiradig, que acabou por ser cancelado devido à pandemia, o segundo álbum do músico e compositor madeirense apresenta seis novas composições de cariz ambiental, planantes e fundamentalmente electrónicas, mas que também fazem recurso ao analógico através do uso de guitarras, pianos e ocasionais monólogos (Teresa Arega contribui com vozes na faixa “Is It an Odd Number”).

A propósito do seu lançamento, que estará disponível em todas as plataformas a partir da próxima sexta-feira, abordámos o artista para uma esclarecedora conversa sobre, entre outros assuntos, o papel da emoção no discernimento entre crenças e factos, o poder da empatia na compreensão humana e o cansaço “ainda muito infantil” da sociedade perante a Internet.



Na nota que enviaste ao ReB introduzes o teu novo lançamento com uma citação de Nietzsche. De que forma é que a filosofia e o pensamento crítico informam a tua música?

Em grosso modo, não tem grande impacto na minha música. Mas neste disco em particular é inegável a sua presença como um dos primeiros pensadores a reflectir sobre a força que a emoção exerce para discernir, ou não, factos de crenças. Por exemplo, no seu livro de 1873, Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne, a certa altura aborda a parcialidade de recolher conclusões condicionadas por conceitos inventados para esse efeito, que deu origem ao título da primeira peça do disco “Oh See, a Mammal”. Possivelmente o autor que mais me inspirou foi Byung-Chul Han. É dos pensadores contemporâneos que melhor ponderam o cansaço desta sociedade ainda muito infantil perante o poder da Internet. Também Michiko Kakutani expõe muito este tipo de questões, mais no contexto político dos USA numa era pós-Trump, cujo título do seu último livro deu o título à última peça deste disco, e posteriormente ao disco em si.

Nessa mesma citação, os conceitos de vontade e verdade encontram-se em conflito. Sentes que — tal como o título do teu álbum indica, e dado o atual panorama de desinformação e manipulação de factos — a verdade tem os dias contados?

Essa é a tendência global. No entanto, o meu lado romântico não me permite deixar de acreditar na educação. É muito fácil ser pessimista e achar que o futuro é um Idiocracy, e viver como se não houvesse alternativa. Mas se deixamos que isso aconteça, mais valia sermos atingidos por um meteorito e acabar já com isto tudo. Tendências em função a crenças sempre existiram, no entanto, o que se passa nos dias de hoje é que a globalização começou antes de a humanidade ter tido a oportunidade de amadurecer nesse sentido, o que fez com que a verdade tenha propriedades cada vez mais plásticas. Desde uma perspectiva genérica, a verdade sempre foi um espectro. Mas agora esse espectro engloba cada vez mais a mentira, dado que a acessibilidade para encontrar reconhecimento como sendo factos aumentou estupidamente devido às redes sociais e ao fácil que é depararmo-nos com pessoas que pensem do mesmo modo.

Neste trabalho recorres ao som para, ao invés da crítica, abordar as falácias e os fenómenos cognitivos como a pós-verdade a partir de uma narrativa explicativa e factual. Achas que o combate ao negacionismo, racismo e “whataboutismo”, entre outras posições que premeiam o discurso público de hoje, passa por uma elucidação clara e paciente dos factos?

Tentemos colocar as coisas do seguinte modo. Se procurarem “flatearther” no YouTube creio que encontrarão mais vídeos de pessoas que estão contra a essas teorias que material feito pelos seus próprios apologistas. Isso e artigos de Facebook com o título “As 10 coisas para dizerem aos vossos amigos terraplanistas” também me fazem rir. São clickbait para os utilizadores que se acham mais inteligentes que tais teóricos da conspiração só porque não acreditam nessas coisas. A chave para a compreensão humana nunca foi e nunca será segredo. É a velha da empatia. As pessoas que estão atulhadas nesse tipo de apofenias colectivas nunca podem ser levadas à razão com factos pela simples premissa que, se pudessem, nunca acreditariam nessas coisas em primeiro lugar. E se nos pomos a atirar pedras, mais razão vão achar que têm. A única forma de lutar contra isso é tentar perceber porque é que passa e educar bem as novas gerações, por mais perigoso que possa parecer deixar estes fenómenos tomarem o seu próprio rumo. Podemos tentar censurar, como inclusive têm andado a fazer nas redes sociais. Mas isso é só um penso na amputação do progresso intelectual humano. Deixem que tenha as suas dores fantasmas e que percebam que lhes falta um membro. É preciso deixar curar.

Podes falar-me um pouco sobre como foi o processo de gravação?

Curiosamente este disco não começou a ser pensado para este suporte. As primeiras ideias apareceram quando surgiu a oportunidade de tocar no MadeiraDIG 2020, que acabou por ser cancelado devido à pandemia. Depois de quase um ano a trabalhar neste projecto achei que merecia ser reestruturado para formato disco, e propus o lançamento ao CCA. Inicialmente era uma colecção de elementos sonoros e visuais que seriam manipulados em direto para estimular pareidolias ao público. Elementos como ilusões auditivas, maioritariamente descobertas por Diana Deutsch durante os anos 80, e algumas visuais para que ao público fosse oferecida a oportunidade de traçar uma ponte entre o visual e o sonoro e deste modo retirar experiências muito pessoais. Após o cancelamento fui obrigado a adaptar-me e decidi, com muitos dos mesmos elementos, criar uma narrativa com uma lógica altamente pessoal a partir do mesmo conceito. Também incluí muitos elementos para representar várias teorias da conspiração, falácias, e conceitos negacionistas. Continua a ser um jogo de percepções, um pouco binaural, e com alguns princípios psicoacústicos, mas resultou mais numa libertação espiritual que propriamente no ensaio prático/experiência cognitiva que tinha planeado a priori.

O que mudou, criativa e pessoalmente, desde o Sonified Notations?

Trabalhar neste disco foi muito terapêutico. Eu acredito piamente que o mal da humanidade é ser demasiado estúpida para a inteligência que tem e desde há muitos anos que tento abordar este tipo de questões. Ainda que a metodologia utilizada não seja onde eu me sinto mais desafiado, cheguei a um ponto de saturação em que havia demasiadas coisas que eu tinha que vomitar cá para fora, e foi esta a estrutura e método que encontrei para narrar a minha investigação neste campo. É verdade que ao traçarmos uma linha temática nos meus trabalhos podemos seguir uma lógica em que depois do Sonified Notations a evolução do estudo sobre perspectivas tenta ir, de um modo nuclear, em busca da distorção da verdade. Mas normalmente sinto-me mais estimulado na procura de novas formas de conversões, e de sonificações. Este disco foi um equilíbrio interno de racionalizar um tema e expulsá-lo com sentimento. Houve muita improvisação, muitos critérios com lançamentos de dados, mas tudo com vários pilares que eu sabia que não podia agitar. Eu gosto de me impor regras não só para não divagar, como também para me limitar e espicaçar ideias.

Como vais ajustar o lançamento do disco ao contexto pandémico?

Esta ideia começou cerca de dois meses antes do primeiro confinamento de 2020, quando ainda sentia que esse ano seria muito forte. De facto, foi, mas não do modo que poderíamos prever. Se falam em termos do lançamento per se, isso já aconteceu. Era para ter sido lançado, mas tem sido constantemente adiado para coincidir com uma época mais realista de apresentá-lo ao vivo. E até a própria existência deste disco já é um ajuste ao contexto pandémico, posto que originalmente era para ter sido uma actuação que foi cancelada pelo senhor Covid. É triste, mas o Corona dá e tira. Por coincidência, e de um modo muito poético, aconteceu a pandemia. De modo que, conceptualmente, não teve que existir grande esforço da minha parte para ajustá-lo ao panorama actual. Tudo o que se passou desde então é uma mina de ouro de justificações teóricas para aquilo que estou a tentar demonstrar no disco. E a narrativa alinhou-se por si própria.


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