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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 19/01/2022

Não há como saber. Mas tenta-se.

Joana Gama e Luís Fernandes: “Sucesso? Nem temos página do duo no Facebook…”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 19/01/2022

Joana Gama e Luís Fernandes têm, individualmente, intensas agendas de trabalho, facto que, no entanto, não os tem impedido de criar avultada obra em conjunto. A estreia da dupla, em disco, aconteceu em 2014 com a edição, através da Shhpuma, do álbum Quest. No mesmo selo, a dupla lançou, um par de anos mais tarde, o resultado do seu primeiro encontro, assinando Harmonies conjuntamente com o violoncelista Ricardo Jacinto. At The Still Point of The Turning World (editado em 2018 na Room40 de Lawrence English) encontrou-os a trabalhar com a Orquestra de Guimarães respondendo a uma encomenda do Westway Lab. E, finalmente, mantendo a cadência de um novo projecto a cada dois anos, Textures & Lines (lançado na Holuzam, em 2000) foi o trabalho que assinaram com o colectivo Drumming GP. Confirmando a mesma intensa e criativa cadência bienal, Gama e Fernandes regressam em 2022, desta vez sem companhia, para o lançamento de There’s no Knowing, de novo pelo selo lisboeta Holuzam.

O novo álbum, dissecado em reveladora conversa que poderão conferir mais abaixo, encontra Luís Fernandes aos comandos (ou a ser comandado?…) do seu sintetizador modular enquanto Joana Gama se debruça sobre o seu Steinway de cauda inteira, tomando, pontualmente, igualmente o pulso a um MS 20. O disco expõe a intensa empatia da dupla, que por esta altura, beneficia já de uma vasta experiência em diferentes contextos que lhes permitiu conjurar uma linguagem própria em que a acústica natural do piano e a granular electrónica do sintetizador convivem num harmonioso (ainda que por vezes assumidamente dissonante…) diálogo que estimula a imaginação.

O novo projecto resulta de um trabalho inicial para Cassandra, uma série que deverá em breve estrear na RTP 2 e para a qual a dupla foi convidada a criar a banda sonora. There’s No Knowing parte desse acervo de material, mas, como Luís e Joana nos revelam, vai mais longe. A consequência directa dessa ambição artística será agora apresentada ao vivo, em concerto que terá lugar já amanhã na Culturgest, em Lisboa. O Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, recebe depois o espectáculo a 22 de janeiro, com o Cineteatro Louletano, em Loulé, a ser igualmente palco deste concerto a 29 de Janeiro. Intensa agenda de trabalhos, de facto. Um reflexo de uma outra agenda, de criação livre, tão ou mais intensa e que agora se discute por aqui.



Sou atento à simetria e estava a reparar como, entre o Quest, a vossa estreia como dupla, e este novo disco, em que voltam a trabalhar nessa qualidade, existem outros três projectos em que ambos vão ao encontro de pessoas, de orquestras. Ao voltarem a encontrar-se os dois, sozinhos num projecto, vêem algumas semelhanças entre este There’s No Knowing e o Quest? Ou são coisas de natureza muito diferente?

[Luís Fernandes] Não fugindo à tua questão, quero começar por falar nessa parte do trajecto. Temos até alguns amigos nossos que costumavam comentar e brincar connosco. Diziam que estávamos a evitar voltar a fazer um disco enquanto duo, por estarmos sempre a arranjar projectos diferentes. Na verdade, acho que isso se deveu ao facto de termos a felicidade de, consecutivamente, sermos desafiados para projectos especiais e marcantes. Nós encaramos isso com muito entusiasmo. Mas isto nunca quis dizer que nós não quiséssemos voltar a fazer coisas em duo. Nesse sentido — e agora para responder à tua pergunta — acho que existem similaridades do ponto-de-vista formal. Estamos a fazer a “mesma coisa”, no sentido em que usamos quase os mesmos instrumentos e nos apresentamos quase no mesmo formato. Ao nível musical parece-me que a linguagem, dentro daquilo que é o universo da nossa música, foi encontrando um espaço mais particular. Isso aconteceu graças ao período de oito anos que já levamos a trabalhar juntos. Foram muitos concertos, muitas colaborações. Acho que isso se traduz na música que fazemos agora, que eu espero que pareça mais madura a quem a ouve.

[Joana Gama] O que eu posso acrescentar é que, se calhar, houve um depuramento neste trabalho, que eu acho que é o resultado deste percurso que temos vindo a fazer durante estes anos todos. Hoje estava a ver fotografias, nas pastas que tenho das nossas colaborações, e vi imagens da nossa primeira sessão de trabalho, em Agosto de 2013, no Theatro Circo. Eu tinha ebows e sabia que queria usar cerdas. Queria, no fundo, explorar o piano por dentro. Era uma linguagem que eu andava a usar também nos grupos de música contemporânea com os quais ia trabalhando. Havia esse lado de trazer artefactos para explorar o piano de forma não limpa. Isso estava muito presente. E depois das várias colaborações, voltamos ao ponto de partida, em duo, e eu já praticamente que não uso mais nada no piano. Quem não souber, nem nota que existe uma peça em que eu uso uma pequena preparação mas que é muito simples. Ou seja, fomos a esse lado mais depurado, sem ter esta vontade de explorar o piano de uma forma que ele nunca tenha soado. Agora o piano nem é processado. No Quest, o piano era super processado praticamente em todas as músicas. Aqui está na sua versão límpida. Outra coisa que também acontecia e sobre a qual fomos falando é que, no início, se calhar, a base era o piano e a electrónica, no fundo, desconstruía o som do piano. Agora, nós afirmamo-nos cada vez mais como dois instrumentos, com o Luís já a explorar outras possibilidades nos modulares e nos sintetizadores. Fomo-nos afastando. Lembro-me de, no at the still point of the turning world, o piano já praticamente não ser processado. Eu já estava a ficar viciada no piano a ser processado pelo Luís. Tendo em conta as outras coisas que vou fazendo, esta sonoridade era diferente e eu não tinha este processamento no restante repertório que tocava.

[Luís Fernandes] É isso. A lógica acabou por mudar um bocado. Agora somos dois instrumentos distintos e, com isso, acontecem coisas particulares. No fundo, o piano acaba por estar no centro de tudo, mas de uma forma diferente. Lembro-me de existir uma frase de piano da Joana, do qual eu, através de um modular, consegui criar uma espécie de loop assíncrono que tinha interesse musical. Em vez de usarmos esse loop assíncrono, a Joana imitou esse gesto musical alterado pela máquina e tornou-o algo orgânico e acústico. Esse tipo de contaminação dupla é algo que acontece mais agora. Para nós, pelo menos, é muito interessante do ponto-de-vista processual.

Estamos aqui os três a conversar, cada um a partir de uma cidade diferente. Como é que foi o processo de criação para a encomenda que receberam para a banda sonora da série Cassandra? Isso aconteceu igualmente à distância ou trabalharam juntos em estúdio?

[Luís Fernandes] Na verdade, foi híbrido. O início foi à distância e fez um ano há pouco tempo. Foi em Dezembro de 2020 que começámos a trabalhar. Foi à distância, mas lembro-me de termos feito uma ou outra sessão presencial, aqui em minha casa. Quando o completámos, aí sim, já tivemos umas quantas sessões em conjunto e também uma residência na Covilhã.

Trabalharam por cima da obra já montada ou apenas tiveram acesso ao guião?

[Joana Gama] Tudo o que envolve cinema é para ser trabalhado para ontem [risos]. O que nós fizemos foi criar algumas bases musicais que pudessem ser usadas no filme. Há uma questão com a Cassandra, que é o facto de todos os episódios terem realizadores diferentes. Portanto, cada realizador faz as coisas de forma diferente. Uma das coisas que nós propusemos logo à partida é que queríamos dar unidade à série. Apesar dos episódios serem muito diferentes entre eles, não poderia ser uma música completamente díspar. A partir daí, criámos alguns ambientes musicais, que depois foram adaptados a cada cena. Só para clarificar um bocado: a série já devia ter estreado no ano passado mas, com isto da pandemia e outras questões à parte envolvidas, acabou por não estrear. A ideia era que isto viesse depois das pessoas conhecerem a música fragmentada na série. A série acabou por não estrear mas, como são episódios independentes e que funcionam, no fundo, como curtas-metragens, há coisas que já foram mostradas em sala e em festivais. Os filmes, no fundo, já andam por aí. Só ainda não foram mostrados como um todo. Neste momento ainda não temos notícias de quando é que irá para o ar. Portanto, nós começámos por compor uns trechos como base e, depois, foi-se adaptando à série. Foi tudo fechado em tempo recorde. “Isto tem de ser fechado rapidamente!” Terminámos, para aí, em Abril do ano passado. Foi um trabalho hercúleo. Entretanto tem estado em pós-produção e acabou por ainda não estrear. Nós pensámos na possibilidade de utilizar esse material para fazermos um trabalho novo enquanto dupla. Há vários elementos que surgem na série, outros que criámos de raiz. Isso torna-se claro na audição. O disco tem cinco faixas mas, na verdade, é uma grande viagem do início ao fim. Isso é algo que será tido em conta quando passarmos isto para o concerto. Nós nunca fizemos muita questão de seccionar os concertos e sempre foram concertos sem palmas. Aqui torna-se mais claro de que existe um grande arco entre onde começa e onde acaba.

[Luís Fernandes] Há uma outra coisa que, para nós, foi nova. Já tínhamos feito algumas experiências em música para outros formatos, como dança e cinema. Quando fazemos esse tipo de música, há sempre uma espécie de cariz funcional que a música deve de ter. Apesar de ser um elemento válido por si só, ela está sempre subjugada a um outro meio. Por isso é que, ao termos a ideia de usar isto como mote para um disco novo, achámos que nunca poderia ser algo exactamente igual ao que tinha sido feito para a série. Essa dimensão de funcionalidade, se calhar, tornaria menos interessante a música de forma isolada. Pareceu-nos um bom exercício para algo que, por vezes, é difícil de fazer, que é olhar para a música que fizemos já com algum tempo de distância e voltar a ela, trabalha-la para outra finalidade. Isso era algo que, a mim, me interessava muito. Foi a primeira vez que fizemos isso. E agora, quando as pessoas virem os episódios, vão claramente perceber os elementos similares. Mas espero, também, que apreciem a forma diferente como eles foram trabalhados aqui, como peça única.

A Joana mencionava aí a questão da pressão em relação a deadlines. Como é que vocês lidam com isso em termos criativos? É um estímulo ou é um obstáculo?

[Joana Gama] Acaba por ser um estímulo. Estamos aqui em duo passados oito anos e trabalhamos bastante bem em conjunto. Sendo que a parte da mistura, que é um trabalho considerável e que tem um impacto enorme na finalização dos discos, é o Luís quem assume. Pensando agora, o interessante é que havia muito material da série que nós gostávamos mas que percebemos que não fazia sentido em concerto. E também fizemos material novo, que inicialmente não estava previsto. Há um tema que não aparece sequer na série. Eu a tocar MS20 era algo que não acontecia, ainda [risos]. Foi muito bom ter esse tempo de maturação para poder olhar para o material e ter ideias novas. É algo que, na verdade, tem acontecido sempre. Passado todo este tempo, os nossos processos têm sido sempre semelhantes: juntamo-nos, improvisamos em conjunto — um dá uma ideia, o outro dá outra ideia —, gravamos sem grandes preocupações — ficamos sempre com muitas horas de gravação para ouvir —, cada um vai para sua casa ouvir e, depois, vamos discutindo e percebendo o que é que daí pode dar temas para desenvolvermos em conjunto. Em geral, não discordamos. Se há uma coisinha que um gosta mais e o outro gosta menos, acabamos sempre por chegar a um consenso facilmente. Foi mesmo bom termos tido esse tempo, que na verdade foram bastantes meses. Fechámos a música em Março/Abril e só gravámos em Agosto.

Há algo que vos quero perguntar acerca do som do piano e que me intrigou no disco. A ideia que me deu é que o piano está com um som muito natural. Ou seja, o que nós escutamos no disco parece a sala onde o piano foi captado. Não sei se é assim ou se são “pós de perlimpimpim” da mistura. Esclareçam-me: onde é que aquele piano foi captado e até que ponto é que o que estamos a ouvir no disco é real?

[Joana Gama] Isto foi tudo feito com a máxima qualidade [risos]. Nós somos, de facto, uns sortudos. Porque o Centro Cultural Vila Flor, que é co-produtor do disco e do projecto, emprestou-nos o grande auditório. Portanto, o disco foi gravado no grande auditório do Vila Flor, em Agosto, numa altura em que a maior parte das pessoas estava de férias e o ambiente era silencioso, e tocado num Steinway de cauda inteira. Um belo auditório, um belo piano e óptimos microfones, também.

[Luís Fernandes] A ideia foi essa, Rui. Que o piano soasse completamente natural. Aquilo foi gravado numa sala muito grande e havia microfonia tanto perto do instrumentos como também havia microfonia um pouco mais distante, para termos aquele som de sala. Assumimos isso como um elemento importante da mistura e do disco. Queríamos que o piano fosse, de facto, natural. Às vezes até muito cristalino, assumindo a sua natureza. A Joana toca com umas baquetas dentro do piano naquele que eu diria que é o único momento mais “cavernoso” do disco.

Estamos a falar apenas da gravação de um piano e de um modular? Há pouco a Joana mencionava também um MS20… O que é que escutamos mais no disco?

[Luís Fernandes] Dependendo, obviamente, dos andamentos, acho que escutamos um pouco de tudo. Conseguimos ter uma paleta de cores e instrumentos bastante diversa, apesar de partir tudo do mesmo universo. O MS20 aparece duas vezes e numa delas é a Joana que o toca. Foi gravado live, também lá no Centro Cultural Vila Flor. Depois das gravações, a parte da finalização é é feita em duas vertentes. Uma delas é puramente técnica, que é algo que é muito cansativo — o certificarmo-nos de que aquilo está a soar bem, que certas frequências não podem estar naquele instrumento porque bloqueiam um outro, limpar ruídos… Depois, há a questão da parte criativa, que é um trabalho que é meu mas que também tem o input da Joana, obviamente. A mistura molda a interpretação que tu tens daquela música. Pode transformar a maneira como tua a vês. Aí há muitas decisões que são feitas, muitas coisas a serem acrescentadas, outras retiradas. Esse trabalho é feito paralelamente ao da parte técnica mas também exige muito distanciamento. Porque quando a música é nossa, tendemos a ter um viés perante ela. Nós imaginamo-la de uma certa forma e nem sempre essa forma é a melhor.

Tal como na generalidade dos teus projectos, tu aqui usas dois chapéus — um artístico e outro técnico. Dão-se bem essas duas personalidades dentro de ti ou há algum momento, quando estás nesse processo de mistura, em que te apetece voltar ao início e refazer tudo outra vez? Como é que funciona?

[Luís Fernandes] Acho que tenho um bom equilíbrio. Não é à toa que o meu instrumento agora é o sintetizador modular. Podia ter escolhido uma guitarra ou uma coisa mais simples. Sou um bocado geek. E, como sou um bocado geek, também gosto desta questão das técnicas de gravação e de mistura, do trabalhar o áudio de uma forma crua. Mas também não sou… Acho que uma pessoa, quando é extremamente perfeccionista, tende a não ter resultados. Perde-se ali no processo daquilo que é o objectivo. O Brian Eno dizia uma coisa muito interessante, que é “o carácter é um desvio da perfeição”. Esta frase é super fixe. Quando uma pessoa quer ser muito perfeita, acaba por ser tipo uma onda sinusóide: é perfeita mas não há harmónicos, não tem vida, não tem cor. É um pouco isto. Atrai-me esta questão dos gadgets e de perceber como é, tecnicamente, que se fazem as coisas.

Outra coisa: não há dúvidas de que a Joana toca piano. Mas diz-se por aí, em relação a quem trabalha com sintetizadores modulares, que o sintetizador é que toca a pessoa, que a dinâmica funciona no sentido inverso [risos]. Vocês sentem esse jogo de espelhos na forma como cada um de vocês aborda o respectivo instrumento?

[Luís Fernandes] Sim. A Joana completará a questão. Mas há uma coisa interessante. O piano, enquanto instrumento, está à espera de ser tocado por alguém. Ele não produz surpresas autonomamente. O sintetizador modular é um conjunto de circuitos que não estão ligados a priori. Nós temos de os conectar de alguma forma. Por mais cerebrais que sejamos ou por mais planeamento que tenhamos, há sempre um outro factor que nos vai escapar. Quando nos escapa, nós, por vezes, temos surpresas agradáveis e que são desencadeadores de ideias musicais. Ideias musicais quer no piano, quer na electrónica. E quando a Joana falava há pouco em ouvir as gravações e ouvir coisas, às vezes essas coisas são algo que eu nem pensei em fazer, aquilo calhou e soou bem. É quase um processo de auscultação. “Temos aqui uma forma bruta e vamos moldá-la”. Não é tão cerebral, no sentido de especificarmos a receita que vai produzir o resultado. Nesse sentido, estes bichinhos [aponta para os patches] são espectaculares para nos mostrar caminhos de uma forma autónoma.



Qual é o teu método? Fotografas os patches para os recordar?

[Luís Fernandes] Fotografar não dá muito resultado [risos]. São tantos cabos…

Tens algum sistema de notação?

[Luís Fernandes] Sim. Uma notação para perceber que patch usei, de que forma liguei as coisas, mais ou menos. Também há aqui um certo grau de improviso.

[Joana Gama] Eu gostava de acrescentar que, neste disco, por isto ser tão depurado, nós partimos para a mistura já a saber como é que o disco ia ficar, à partida, com aquilo o que já tínhamos gravado em Agosto. Quando foi com o at the still point of the turning world, que foi o Lawrence English a misturar. O que ele fez com a matéria prima foi incrível. Foi mesmo importante ter alguém de fora a fazer um disco que nós não faríamos. Foi muito interessante essa possibilidade, de saber que para aquele disco em específico era assim, mas que em concerto já era um alinhamento diferente. Isso é o que não tem acontecido com os outros discos. O que nós fazemos em concerto é mais ou menos o que está gravado no disco. Tem espaço para alguma improvisação mas, em geral, o concerto e o disco são bastante semelhantes. Por outro lado, esta questão de nós organizarmos estas sessões de trabalho — “olha, agora vamos pegar neste elemento e desenvolver” — às vezes funciona e daí até pode sair alguma ideia. Já nos aconteceu uma coisa, não para este disco, que foi nós estarmos uma hora à volta de uma ideia — gravamos, gravamos, gravamos — e antes de desligarmos tudo decidimos gravar um excertozinho, que foi o que ficou melhor [risos]. Tínhamos estado imenso tempo à volta de uma coisa que não era nada aquilo que queríamos. É importante ter esse espaço também, para não termos tanta pressão para que as coisas saiam. Até porque nós não temos esse hábito, como têm algumas bandas, de nos juntarmos só para ver no que é que dá, sem ter nenhum objectivo. Em geral, quando nos juntamos é porque temos algum projecto que vai acontecer. Temos esse objectivo, normalmente. Não quer dizer que não exista alguma pressão. E também acontece ficarmos com algum material extra, que vamos provavelmente usar uns meses a seguir, quando nos pedirem alguma coisa, ou podemos até nós desenvolver a ideia. Fica sempre material por desenvolver. E, lá está, quando voltamos a pegar no material já com algum distanciamento, ouvimos de outra forma e, se calhar, vemos coisas que não veríamos a priori.

A frase que escolheram para título do disco não é de fácil tradução. There’s No Knowing. Estava aqui a pensar… Não Há Saber? Como é que vocês o traduzem e porque é que o escolheram?

[Joana Gama] É interessante. Nós nunca tínhamos falado sobre isto, Luís.

[Luís Fernandes] Ou ainda ninguém nos perguntou, pelo menos [risos].

[Joana Gama] Há gente que implica com o nós usarmos títulos em inglês. Para nós, como duo, é instintiva a escolha dos títulos em inglês. Inicialmente, acho que pensámos em, eventualmente, escolher um título em português. Mas pronto. Nós andámos muito à volta desta ideia da Cassandra, que adivinha o futuro e que ninguém acreditava. É a ideia de não se saber.

[Luís Fernandes] Isto já foi definido há algum tempo. Nós andámos a ver termos em inglês que pudessem representar esta ideia da Cassandra. Para começar, nós não quisemos usar o nome Cassandra, por ser demasiado colado à encomenda original. Mas queríamos encontrar uma forma indirecta de transmitir o mesmo sentimento. Lembro-me da Joana ter feito aí umas incursões no dicionário inglês. Até falaste com um amigo teu que é inglês.

[Joana Gama] Sim, sim.

[Luís Fernandes] Demos voltas e voltas até chegarmos àquilo. Eu já nem sei como é que surgiu. Penso que foste tu. Eu não fui. There’s No Knowing. Parece quase um inglês arcaico, que já não se usa. Mas era elegante. Ambos achámos muito elegante. E foi uma escolha instintiva. “Olha, fica este”.

[Joana Gama] Depois partimos pedra durante bastante tempo, porque não queríamos que fosse uma coisa catastrófica. Quando penso neste disco, penso em algo cinzento, que não se percebe bem. É uma neblina. É o desconhecido. A própria música, que se vai repetindo. Isso vai também ser visível no concerto. É o que estamos a explorar para levar para o palco. A capa também é cinzenta. É como estes tempos que vivemos. Mas, regressando à tua pergunta, nós ainda não pensámos em tradução. À letra, se calhar é “não há conhecimento”. Mas é esquisito como título em português, não é? Acho que devíamos de falar com um tradutor para termos uma tradução [risos].

A expressão pode fazer sentido dentro de uma frase. “There’s no knowing what she will say” — não há forma de saber o que ela dirá. Assim, como vocês a escolheram, fica muito intrigante e eu acho isso interessante.

[Joana Gama] Era esse o objectivo. Também podemos traduzir como “não sabemos”.

[Luís Fernandes] Ou “não há como saber”.

Fora as vossas as carreiras a solo e os vários projectos em que estão envolvidos, vocês têm, enquanto duo, uma produção assinalável em oito anos. Diria até que é algo muito raro neste contexto de — à falta de melhor termo — música contemporânea, experimental e instrumental. Sentem-se uma dupla de sucesso nesse âmbito?

[Luís Fernandes] Há diferentes formas de o medir. Aquilo que nós entendemos como sucesso artístico — que é, na verdade, aquilo que nos move para continuar a trabalhar e explica essa produtividade — é o facto de continuarmos a sentir que faz sentido esta colaboração e que encontramos novos caminhos para a desenvolver. O facto disso acontecer prova que existe sucesso artístico, pelo menos intrínseco. Sentimo-nos muito honrados por termos tido oportunidades que são espectaculares, desde encomendas para instituições, para filmes, peças de dança… O próprio interesse na nossa música, porque nos convidam para espectáculos. Sabemos que muitos colegas nossos não têm essa possibilidade e não é por não serem talentosos ou piores que nós. Sentimo-nos afortunados e isso quer dizer que a nossa música está, de certa forma, a chegar a algumas pessoas. Dadas todas estas ressalvas, acho que sim, que somos uma dupla de sucesso [risos].

[Joana Gama] Há uma outra coisa, que é o nós não termos nenhuma pressão em cima de nós. No sentido em que ambos temos outros projectos, temos muito para onde nos virarmos, e vamos fazendo isto, o trabalho em duo, porque vão surgindo óptimas oportunidades. O trabalho do at the still point of the turning world foi uma encomenda do Westway Lab. Quando fizemos o Harmonies, com o Ricardo Jacinto, foi de uma encomenda do Pedro Santos, que estava no Maria Matos para trabalhar a partir do espólio do Erik Satie e fazer algo novo. O álbum com os Drumming GP veio de um convite deles. O Vitor Pontes também nos convidou para fazer a música para uma peça dele e já nos convidou para uma outra, que vai acontecer em breve. As coisas vão acontecendo. É bonito estarmos aqui hoje, até porque quando nos juntámos para um concerto pela primeira vez, em Agosto de 2013, era para ser só isso. Era só para tocarmos juntos daquela vez. Até mal nos conhecíamos [risos]. Era mais no sentido exploratório. De repente, daí percebemos que conseguimos fazer um concerto. Depois percebemos que conseguimos fazer um disco. Fomos dando um passo de cada vez, sem aquela pressão do “temos de editar discos. Temos de estar presentes e fazer coisas”. Tanto é que nós nem sequer temos uma página do duo no Facebook [risos]. É uma coisa que vamos divulgando. Nós nem temos fotografias juntos [risos]. Tudo acontece, de facto, em torno da música. E surgiu por brincadeira. Nós, quando lançámos o terceiro disco, apercebemo-nos que estávamos a lançar discos de dois em dois anos. Calhou agora ter acontecido novamente. Este ano vamos lançar outro disco, na verdade. Vamos lançar um vinil.

Falem-me sobre os concertos que aí vêm. O que é que vai acontecer de especial em palco? Até porque isto foi, originalmente, música criada com o objectivo de seguir imagens e uma narrativa. De alguma forma essa dimensão vai estar também traduzida nestes espectáculos?

[Joana Gama] Nós pensámos nisso. Mas depois percebemos que a música tendia para algo muito mais abstracto. Aquelas imagens eram muito fortes e tinham uma componente narrativa muito forte, que nós não queríamos de todo. Desde logo percebemos que isso não iria acontecer, o transpor imagens da série para o concerto. O espaço cénico será feito pelo Frederico Rompante, da Side Effects, que está connosco desde o primeiro projecto e fez também o espaço cénico do Quest. Quando pensámos nesse espaço, pensámos nesta ideia de ser algo abstracto, que não vai ter nada de projecções de vídeo ligadas à música electrónica, aqueles clichês que parecem screen savers [risos]. O que nós queremos e continuamos a desenvolver é um espaço cénico que engloba o piano e a electrónica quase como que objectos ou uma escultura. É esse o trabalho que estamos a desenvolver e é um trabalho muito delicado, também devido ao tipo de música que é. Não é a música a fazer a banda sonora para aquilo que se está a passar em palco, é mesmo o contrário. O espaço cénico servirá totalmente a música.

Antes de terminarmos, o que eu gostava de saber é se já fazem ideia daquilo que vão fazer a seguir? Falavas há pouco, Joana, que vai haver mais do que um projecto este ano e falavas num vinil.

[Joana Gama] É verdade. Este ano até vou lançar dois. Não há fome que não dê em fartura [risos]. Há uns meses, fomos desafiados pelo MAAT para fazer um concerto original, que nasce de um projecto que eles estão a fazer à margem da exposição do Carsten Höller. É a exposição de luz, que está agora no MAAT. Eles vão ter três momentos de peças sonoras feitas com base num texto de um filósofo. Haverá esses momentos ao vivo e haverá, depois, a edição em vinil. Não desse concerto, porque o concerto será longo, mas de uma versão mais curta.

[Luís Fernandes] O vinil tem o tal texto em forma de meditação lida, como se tivesses a meditar ao ler o texto.

Esse vinil não terá apenas material vosso? É uma compilação de todos esse projectos musicais que participam na encomenda?

[Luís Fernandes] Vai existir um vinil para cada projecto.

E, além disso, haverá mais algum projecto em que vocês vão estar envolvidos?

[Joana Gama] Sim. Faremos a criação da música para uma nova peça do Vitor Hugo Pontes. São estes os próximos episódios.


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