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Fotografia: Ariel Pedatzur
Publicado a: 07/10/2022

"Dipus di sabura, morte i ka nada".

Jesualdo Lopes: “As pessoas não estão habituadas a que não tenhamos de entrar nos espaços delas e estejamos a criar os nossos”

Fotografia: Ariel Pedatzur
Publicado a: 07/10/2022

O que a geografia separa, a comunidade une. Existe um ditado iorubá, grupo étnico-linguístico da África Ocidental, que diz: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”; The Blacker The Berry rege-se exactamente pela mesma linha de pensamento: destrói legados coloniais no presente munido com saberes ancestrais, pega no tecido que são as vivências da negritude e cose um tecto comum para quem debaixo dele se precisar de abrigar.  

Jesualdo Lopes, um super-herói dos nossos dias, é o responsável por este colectivo: carrega nas costas a responsabilidade de lutar contra um mal mais antigo que ele, de reescrever a história entre a tradição e a modernidade, faz das origens a sua arma e do propósito o seu combustível, provando que mais importante do que gente que sabe o que quer é gente que sabe de onde vem e do que já não precisa.

Os domingos sempre foram dias de família e o de 18 de Setembro para celebrar o evento Sabura de The Blacker The Berry, na Casa Independente, não foi excepção. A confirmá-lo tivemos Stella, artista emergente que actuou por lá e cujo primeiro contacto com as suas inspirações musicais veio (e é partilhado) com o seu irmão e produtor Ricardo. Também aconteceram performances de Killian e Niiko, passando-se ainda por DJs como Oseias., UMAFRICANA e Tako.

Naquele momento, a Casa Independente transformou-se numa casa-museu da cultura negra e queer, no reavivar de uma memória que muitas das pessoas que por lá passaram guardam com carinho dos convívios familiares em que cresceram. Mas desta vez, como Mário, uma das friendly faces na festa, reconhece com a valorização da interseccionalidade como factor-chave. Entramos no espaço e deparamo-nos com olhares que conhecemos e nos quais nos reconhecemos. Há um senso de pertença de quem sabe que “comunidade é imunidade”: imunidade às microagressões e à sensação de caminhar sobre gelo que se quebra numa luta por direitos que tardam em ser reconhecidos. As regras são claras sobre tudo aquilo que connosco não pode entrar: os preconceitos ficam à porta, há novos modos de estar que são mais amigos de toda a gente.

As escadas estão decoradas com arte de pessoas negras e queer, que são muitas e com múltiplas existências desde a música ao cinema que como Sandra Baldé, DJ e escritora, afirma “expressam-se através de mundos que se cruzam” – o que pode ser surpreendente para quem circule em eixos em que os subalternos são somente “os outros”. Elevam-nos até ao avesso de um mesmo lugar, uma Lisboa invisível para quem por ela passa e não quer olhar, desta vez num lugar que é nosso onde como Liana, artista, declara “é um espaço de liberdade onde não temos de nos conter”. De nós para nós – onde ouvir falar crioulo, ter a gastronomia, as bandeiras dos PALOP e corpos que dançam semba, kizomba, kuduro ou amapiano são sinais de resistência e continuidade. Alguns de nós esperaram a vida toda por isto.



Quais são as tuas origens? 

Guineenses. A minha família toda é praticamente de lá. Nascido e criado em Odivelas.

 Viveste sempre cá?

Morei em Odivelas até aos 18 anos e depois fui para a faculdade em Leeds, no Reino Unido. Recentemente licenciei-me em cinema e agora estou a navegar entre Portugal e o Reino Unido.

Como foi para ti regressar a Lisboa com o contributo das tuas vivências lá fora? 

É engraçado porque sinto que eu crescendo em Odivelas vivia numa bolha. De casa até ao metro via pessoas brancas, obviamente, mas Odivelas tem uma comunidade guineense enorme, então nunca me senti como “a única pessoa negra na escola”. Depois fui para Leeds e, quando regressei, aí sim notei o choque. Embora eu sempre tenha tido a noção de que o centro de Lisboa era maioritariamente branco e não tão acessível para quem tivesse menos condições. No boom da gentrificação de Lisboa, conheci pessoas de diferentes países, com experiências semelhantes de negritude e isso deu-me esperança. Fez-me perceber como temos uma comunidade tão grande ou maior do que pensávamos. Lisboa está a ser o que Londres era há uns anos, talvez daqui a 50 anos se chegue ao que Londres é agora.

Como surgiu a ideia do The Blacker The Berry?

O colectivo começou quando eu estudava em Leeds. Havia um coletivo semelhante e o dono licenciou-se e mudou-se pra Londres, então ficámos sem um espaço para nós em Leeds. Tive a ideia de lançar uma revista que abrangesse pessoas que morassem em África, nas Caraíbas e da diáspora, mas focando-nos nelas porque se aqui não temos recursos imaginemos quem está lá. Começámos a operar em Leeds. Vim para Lisboa e nem sequer estava nos meus planos fazer algo aqui – o evento nem era para ser assim. Era suposto ser um podcast e uma loja no Depop e com as vendas o dinheiro iria reverter para ajudar colectivos. Foi-me dada a oportunidade de fazer uma curta através dum financiamento que uns amigos tinham e pensei “porque não usar esse dinheiro para fazer o evento e depois o dinheiro do evento para o filme?” e foi o que fiz. Lançámos o Back2Black disponível no Instagram e fizemos o primeiro evento que acredito que tenha sido o primeiro evento black queer em Portugal, introduzimos safer space policies e notei o quão urgente [isso] é aqui em Lisboa.

Passado um ano, com mais visibilidade vem também mais responsabilidade. Como estás a lidar com isto? 

Há pessoas que não querem compreender. A informação está toda disponível e sinto que há quem queira vilanizar o nosso trabalho como, por exemplo, quando me questionam sobre existirem preços diferentes para pessoas racializadas e queer comparativamente com os preços para pessoas cis e não-racializadas. Parece-me que o que não entendem é que sempre foi ao contrário. Repara: se eu fosse assim vestido como estou agora com camisola tradicional africana e estes calções, N discotecas não me iam deixar entrar. E atenção que não são racistas, nem homofóbicas, mas continuam a ir a esses espaços que barram imensas pessoas negras e a dar o seu dinheiro sem se queixarem, isso só contribui para que esses sítios continuem a operar como operam. É difícil lidar com isso porque estou a começar. Às vezes é complicado não deixar que isso me atinja porque eu sei que não estou a fazer nada de mal, estou a tentar criar algo para os meus. O que me faz acreditar no que faço é: nada disto seria necessário se os vossos antepassados não tivessem feito o que fizeram, se a supremacia branca não fosse real isto até podia ser só uma festa normal com todos em harmonia. Mas, pronto, o mundo é como é e estamos a tentar adaptar-nos. As pessoas não estão habituadas a que não tenhamos de entrar nos espaços delas e estejamos a criar os nossos. Temos os recursos e estamos a reescrever a nossa história do melhor modo possível. Claro que às vezes é desmotivador e eu nem publico nem metade dos comentários negativos que recebo — nem respondo. A melhor resposta é o meu trabalho. Ninguém me paga para educar pessoas fora da minha comunidade, já ultrapassei isso. Prefiro educar a minha comunidade que ainda tem muito que fazer no que toca à aceitação de pessoas queer e trans, é preciso desconstruir certas tradições.



O conceito de segurança para ti foi para lá do teu projecto e criaste um Lisbon Black Guide. Sendo um evento comunitário com um público-alvo que, tendencialmente, não se sente seguro em muitos espaços. Como é a segurança assegurada?

Morar em Inglaterra alargou-me os horizontes, principalmente sobre criar espaços nossos e não forçar a nossa entrada noutros. Muitos não nos querem e outros tantos querem-nos por tokenismo. Baseei-me noutros colectivos como a Rat Party ou a Love Muscle. Tenho noção de que nenhum espaço é 100% seguro e isso é uma maneira de reforçar a nossa política. E houve uma clara mudança: os mesmos espaços que nos negavam entrada, agora têm safer spaces policies. É muito fácil escrever, mas no que diz respeito à prática e manter essa consistência falham. Contra mim mesmo falo porque posso falhar também. Tento ter sempre quatro pessoas, as friendly faces — eu incluído, enquanto faço a gestão do evento — a assegurar que ninguém está desconfortável e caso algo falhe ou venham falar comigo depois tento tomar nota e pensar como posso melhorar numa próxima vez.

A missão do The Blacker The Berry é bastante específica e recente em Portugal, como sabes que os espaços estão alinhados com o que o colectivo representa? 

Baseio-me em feedbacks pessoais ou de amigos, é mais um “boca a boca”. A maior parte dos espaços em que já realizámos eventos foram eles que se disponibilizaram para nos receber. Claro que já tive problemas com esta questão. Recentemente um dos espaços no qual íamos fazer um evento revelou não estar alinhado com a nossa missão, o foco era somente o lucro, então tive de cancelar o evento porque não fazia sentido. Eu sou bastante claro quanto à minha posição.

Costumas ter medo de falhar?

Sempre. É exaustivo. A quantidade de vezes que já pensei em acabar com o coletivo porque sinto não ter a capacidade emocional ou física para lidar com tudo… Os meus amigos ajudam muito, em eventos chamo pessoas que me são próximas. Por exemplo, o Rafael como fotógrafo, o Mário, a Ju, a Elôise e o Herlander. Eles sabem a dificuldade que é porque sinto estar a quebrar muitas barreiras. Tenho o suporte da comunidade, mas sinto que isto não se está a reflectir numa vertente financeira para o coletivo, para financiar eventos, por exemplo. Tenho a agradecer a pessoas da Rádio Quântica e do Planeta Manas como, por exemplo, a Violet. Geralmente quando têm dinheiro à parte perguntam-me sempre se quero fazer algum evento e quando não são eles é o dinheiro que angariamos em eventos. Os preços dos eventos são sempre bastante acessíveis, quase simbólicos, logo os valores não vêm para mim, ficam na conta bancária do colectivo para que eu possa investir mais. Sei que é o início e há esta ideia de termos de nos sacrificar no início para depois notarem o nosso trabalho, mas depois sinto que em Portugal é nadar contra uma maré. Quanto tempo mais vou ter de fazer isto? Passou um ano e continuamos no mesmo patamar… é bom, mas nem tudo é um mar de rosas.

Isto está a acontecer tudo numa Lisboa que ainda tem problemas em confrontar o seu passado colonial e as mazelas que deixou. Estás a ser pioneiro mas educador também como se pode ver pela junção de elementos cinematográficos como forma de expressão e divulgação do talento negro. Tens noção do papel histórico que estás a ter?

Tenho noção só quando vêm falar comigo. Quando publico informação no Instagram do The Blacker The Berry a esclarecer conceitos como apropriação cultural ou tokenismo é mais numa de educar os meus do que as pessoas que perpetuam os motivos que nos continuam a fazer ter de protestar.

O que te tem inspirado?

São claramente os meus amigos. Para este evento em específico, o Sabura, foi a minha família. Foi bué engraçado porque eu estava em Londres no sofá de uma amiga minha e estávamos a ter uma conversa profunda e depois a ver videoclipes guineenses antigos, dos tempos em que ainda filmavam no Parque das Nações – nomes como o Justino Delgado, Dulce Neves, Rui Sangara. Sempre quis criar e recriar um espaço, uma espécie de sentada, mas onde pudéssemos coexistir dentro da nossa negritude e da nossa queerness. Normalmente, nesses meios familiares quando te assumes, és excluído. Eu quero uma réplica, mas para nós. Eu como pessoa queer não me sinto confortável a ir para esses ambientes porque já sei que vai haver comentários e olhares. Mas a sensação de se estar ali… Era outra coisa… Ver os meus primos, tios, tias, só comer e ouvir música, pessoas a falar crioulo bué alto… foi isso que quis recriar e espero conseguir fazer numa escala ainda maior duma próxima vez.

Para ti, o que reserva o futuro para o The Blacker The Berry? E para a comunidade? 

Quero espaços nossos e não ter de me submeter a regras de espaços alheios, apoiar artistas além da exposição porque isso não paga contas. Quero descentralizar Lisboa e chegar às comunidades. Sempre me questionei porque é que os eventos supostamente inclusivos não abrangiam locais como a Amadora, Odivelas e etc. Sei que o acesso ao centro da cidade não é igual para toda a gente – há que ter em conta a questão sociocultural e económica. Assim fica mais fácil amplificar as vozes e talentos das zonas mais marginalizadas. Quero ver a comunidade a crescer e a fortalecer-se. Acima de tudo, que todos os colectivos negros reganhem aquilo que lhes foi tirado.


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