O mês de junho em Matosinhos ficou marcado pela tripla apresentação da sua Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), naquela que foi a 6ª edição do ciclo de concertos Jazz na Real Vinícola. Foi o momento para a OJM, nas instalações junto ao CARA (Centro de Alto Rendimento Artístico) — que é sua casa —, celebrar a meio do ano a dimensão multifacetada que a caracteriza. Como vai sendo habitual, é a altura escolhida para apresentar obras em que convida compositores a trabalharem a sua música com a orquestra — como que dias abertos. Este ciclo teve a música de Perico Sambeat no primeiro dos sábados e a de Antonio Loureiro no último, sendo que a meio reviu-se parte da matéria escrita em Portugal propositadamente para big bands.
[Perico Sambeat e OJM: Boreal]
Dia de estreia, do lançamento em palco da música escrita por Sambeat para a OJM. Naipes de sopros que conferem a dimensão de expressivas vozes: 5 trompetes, 4 trombones e na frente 5 madeiras repartidas por 3 saxofones altos, 1 tenor e 1 barítono. Na secção rítmica: piano vertical, guitarra eléctrica, contrabaixo e bateria. Na frente e na direcção de orquestra, Sambeat em 3 sopros distintos: saxofone alto, soprano e flauta. Que se ouça então Boreal a ter lugar. Um disco que levou ano e meio a compor para Sambeat.
Abrem com “Circle”, em que Sambeat se assume num solo em alto, até que surge a guitarra em meio abrasivo-ondulante de André Fernandes. Tema incontornável para uma abertura perfeita, como a ideia de um círculo em igual modo, determina esse desenho o piano de Meirinhos. Seguem com “Cidade do Paraíso” — bem que pode ser a de Matosinhos servida por esta melodia, mas ficou-se a saber que a fonte de inspiração é Málaga. “Ample” é anunciado como o mais experimental do alinhamento. Surge discreto no avanço, como que em sussurros entre as flautas e trompetes de surdinas. O amplo solo de bateria de Diogo Alexandre, feito em ideia de amparo a pingos de água, dá um vigor em seguida e torna o entorno magnifico, remete para a luz que nasce do outro lado do mundo. Também os trombones surgem ensurdecidos. Há em Sambeat, no alto, um agitar do andamento convocando ao desprendimento.
Mais dois temas ligados — “Mãe D’Água” e “Limbo”. Muita madeira a começar, uma linha da frente dos sopros feita de clarinetes e Sambeat em saxofone soprano. Enche-se, à nascente, a balada como embalo, que leva ao solo de tenor redondo e seguro. A ligação entre temas é garantida pelo cromatismo lírico de Meirinhos no Steinway vertical. Para um abeirar de cheiro, numa passagem a outro lugar imaginado, tempero dado pelo solo de trompete tema adentro. Cabe a Sambeat a condução seguinte no saxofone alto, num tema mais a explicar a sua música com a orquestra em causa-efeito. “Estigia” é uma balada que se ouve nostálgica. Traz, assumido pelo compositor, a dedicatória a dois desaparecidos: o pianista português Bernardo Sassetti e Toni Belenguer, trombonista valenciano. Um tema propulsado a vassouras nas peles e saxofone alto de Sambeat por entre centelhas de piano, em que a junção das amplas vozes dos metais se assumem melódicas pelos trombones. Sambeat sublinha o carácter melancólico até final no alto. Ouve-se “Snow Hope”, de que se retém, a meio, o solo do saxofone alto para depois e ficarem as arcadas terminais do contrabaixo de Filipe Louro.
“Boreal” é tema-título do disco, desfecho também do concerto, mas servido como extra. Assim é tocado sem excepção toda a obra em palco — apresentação integral. E dessa ideia musicada é intuída a luz de final dos dias claros a norte, conferida desde o solo do alto de Sambeat, onde se implanta um saboroso trio de piano, contrabaixo e bateria. Convite feito às pinceladas nos céus dos metais — veja-se como condiz a capa do disco uma vez escutada a música.
[OJM ao serviço da história]
No sábado intermédio das três apresentações na Real Vinícola, a OJM mostra-se modificada na constituição dos músicos. No contrabaixo está José Carlos Barbosa, na guitarra Rui Catarino, em estreia absoluta com esta orquestra, nas madeiras acresce João Pedro Brandão e na bateria volta Marcos Cavaleiro. Na condução da orquestra de jazz, um dos timoneiros que a viu nascer — Pedro Guedes. É dia de revisitar o repertório escrito propositadamente para big bands em Portugal entre 1986 e 2005, a que se dará um salto quase ao presente — carregado de futuro —, com uma peça de 2025 encomendada a João Pedro Brandão. Um programa com o acrescido interesse de se ouvir uma revisitação das composições para grandes orquestras.
Começo apontado a 1988 com o tema “Divertimento para Saxes”, composto por Jorge Costa Pinto para a orquestra com o seu nome no programa de televisão Um, Dois, Três. Desta vez não se ouviriam os solos de saxofone de Carlos Martins em tenor, nem de Edgar Caramelo em alto. Mas contou-se com a presença de Costa Pinto, não na bateria mas na plateia — um pedaço de história revisitado. Passo curto até 1988 para voltar a tocar “Rimas” de Zé Eduardo, ele que em 1978 forma a primeira big band de jazz em Portugal. “Rimas” foi terminado de compor precisamente neste mesmo dia 21 de Junho, mas desse longínquo ano — continua a ser história revisitada. Ouviu-se “Abertura” do próprio Pedro Guedes, tema inscrito em 1997, a que se seguiu “Labirinto” de Carlos Azevedo, de 1998. Ambos os compositores mentores e cultores desta ideia tão bem sucedida e que hoje é uma referência — a Orquestra Jazz de Matosinhos. Nesses anos, Azevedo era o pianista da Héritage Big Band, dirigida e criada por Guedes, formação alargada de jazz que viria em 1999 a dar lugar à OJM como primeira orquestra municipal de jazz do país.
Em 2001, a cidade do Porto era Capital Europeia da Cultura, e para o programa de encerramento o pianista e compositor Mário Laginha foi convidado a escrever uma peça para a OJM. Surgia com um nome compartimentado de “A Segunda Gaveta a Contar de Cima”. Laginha que fora o pianista convidado no ciclo de 2021 do Jazz na Real Vinícola com a OJM. Parte-se para a história mais recente, numa musicalidade que se vai aproximando dos dias de hoje. Precisamente com a inclusão do tema “A Festa” de Marco Barroso, de 2003, escuta-se outra musicalidade. A inclusão do baixo eléctrico, uma esteira como que pela estrada fora, que termina em rodopio e dá lugar a um rolo de uníssonos de trombones. Barroso é o pianista e um compositor arrojado da big band LUME (Lisbon Underground Music Ensemble). A primeira década deste milénio fica revisitada com “Para Lá Do Cenário” de Paulo Perfeito, outro nome de compositor de relevo para big bands em Portugal, um dos directores da Orquestra de Jazz de Espinho.
Mas a história ficaria mal contada se não surgisse ligada ao presente da composição para grandes orquestras de jazz. Como uma surpresa que se revela ainda mais surpreendente em si, João Pedro Brandão foi convidado a compor para a OJM em 2025 e surge com “Fuga Para Dentro”. Brandão como intérprete nas madeiras e flauta da OJM assume o protagonismo musical com uma ideia de fuga. No seio das formações do universo Porta-Jazz, sabe-se do seu arrojo autoral. Em CORETO, Brandão vai revelando uma escrita audaz e experimental para a formação alargada onde se encontram muitos músicos presentes da OJM. Lá constam além de Brandão, José Pedro Coelho no saxofone tenor, Rui Teixeira no barítono e clarinete baixo, Andreia Santos e Daniel Dias nos trombones ou José Carlos Barbosa no contrabaixo. Para todos eles, o que tocam e escutamos é certamente uma menor surpresa, mas não deixa de trazer o surpreendente. É uma peça feita de pulsares que decompõem em partes a linguagem dos sons e dos tons, numa assumida veia contemporânea e experimental. Uma tríade de sopros de flauta, clarinete e clarinete baixo. Um rodopio para uma orquestra que se ouve em palpos, não de aranha mas de fluxos. Uma peça que viaja por dentro, de frente para trás, em diversos momentos dos sopros. São aspirações nos trombones, abstracções conjuntas no ritmo do piano, bateria e contrabaixo. Uma acção soporífera que (de)termina em modos de urgência pelos fluxos com timbres graves. Ao mote do programa deste ciclo, “O que faz falta”, fica demonstrada uma certeza com esta arrojada composição virada para o futuro. Farão falta outras mais que tais.
[Antonio Loureiro e OJM: Pelas Águas]
Antonio Loureiro ama esta orquestra e a OJM adora a música deste compositor. É uma relação que transparece logo ao primeiro acorde do primeiro tema e que ali permanece até final — não some, assume-se. Loureiro, que se fez músico de palco em Portugal, hoje conta com vários álbuns editados. A OJM é como uma casa para a música de Loureiro e com isso acresce voz e canção à orquestra, que se ajusta à passagem de João Pedro Coelho para a condução. Com isso, entra Hristo Goleminov para o naipe das madeiras e no baixo eléctrico dá-se a estreia de Francisco Brito.
“Reza” é tema de abertura de programa porque tem essa aura de encantamento, em que Loureiro, ao piano vertical, vai desferindo vozeares como cânticos de harmonias. Instala-se uma onda serena na orquestra, que a flauta de João Pedro Brandão transparece em solo, e fica definida a atmosfera cândida que vai prevalecer até final. Loureiro, que intervala o piano com o teclado eléctrico, dele se ocupa para cantar “Me dê a Mão”, tema composto nos tempos duplamente difíceis do vírus pandémico e da virologia humana que detinha o poder e foi altivez no seu país. É por isso que Loureiro canta as palavras e que definem a canção “o ódio nunca vencerá o amor”, tema onde se ouviu também bem alto André Fernandes na guitarra eléctrica.
“As emboscadas de Oxóssi / As ferramentas de Ogum / Os espelhos de Oxum / Os mantos de Iemanjá / Exu que tira e que dá / Ventos e raios de Iansã / Xangô, Ibeji, Nanã / Oxalá que em tudo manda […]” assim começa “Cabe Na Minha Ciranda”, com letra do pernambucano Siba, que a pedido de Loureiro coube na métrica em perfeição da sua música. Estamos voltados para o maracatu rural e as suas divindades religiosas indecifráveis neste distanciamento. Contudo, permanece o encanto vindo nesse mistério. “Intensidade” traz o poder dos trombones em surdinas, faz instalar um certo groove que leva por diante, e onde a cadência dada pelo saxofone barítono desagua num pianismo bucólico, em que a bateria vai buscar mais fôlego para fazer ligar toda a orquestra num devolver dessa maior intensidade. Um tema revelador da ligação entre compositor e orquestra — absoluto e belo.
O tema-título do programa, que se assume até como tema-título da música de Loureiro, dá pelo nome de “Pelas Águas”. Um fluxo entre a ancestralidade e resistência, que canta a certa altura assim: “Toda a Tribo é um ser / Todo o povo brasileiro é um misto de ancestrais”. Uma visão de Loureiro partindo de um grito de revolta do Cacique Raoni — porta voz do povo Kayapo e um dos porta-estandartes da luta ambientalista pela Amazónia. Um tema verdadeiramente colectivo, que se leva pelo ritmo literal nas palmas das mãos. Peça que Loureiro e a OJM tocaram na sua última passagem há dois anos, mas lá fora ao sol. Tema sobre um assunto em nada fechado, matéria densa, sobre um Brasil pré-colonial — aldeão. Depois de “Será”, de co-autoria com Rafa Castro, seu parceiro de Minas Gerais, houve “Lindeza” até se ouvir “Aldeia Coração”. É por aqui que se encontra o estado actual da música de Loureiro. Aldeia Coração, editado em Junho último, é um disco a escutar de perto. Aqui com a OJM, os seus temas assumem uma dimensão invariavelmente orquestral, onde o solo de barítono de Rui Teixeira sublinha em grande as palavras trazidas do baiano Tiganá Santana: “Olhos que miram o sol a dentadas / Entrar nos caibros de mãos repensadas / Descalejadas e pós destinadas / Mãos de vingança jamais alcançadas / Que o medo é tudo e as mãos podem nada”. Tema nascido de uma enorme indignação, como assume Loureiro, uma certa violência que remonta há mais de 500 anos e que retira o lugar de aldeão ao povo. Um fardo que pesa, o tal “saco de muitos” que a letra refere, mas que também apela a um sentido de união: “A morte pede que vivamos juntos”.
No tema extra programa, “Algum Lugar”, contaram os arranjos para orquestra feitos por Carlos Azevedo. Onde se cantam as palavras a contar de Makely Ka: “Tudo que eu peço agora / é uma pausa e um silêncio / Sigo em frente pelo mundo afora / Eu perco o senso”. E se isto não é uma poética maneira de dizer adeus, o que será? Partir para um outro lugar — haverá um lugar.