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Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 10/08/2025

Shane Parish e Thumbscrew na penúltima jornada da edição deste ano.

Jazz em Agosto’25 — dia 9: guitarras americanas biológicas e trasmutadas

Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 10/08/2025

“Esta máquina mata fascistas”. A frase inscrita na velha guitarra acústica de Woody Guthrie não tinha sentido literal. O bardo folk, mestre de Bob Dylan e por isso mesmo ascendente mais ou menos remoto de boa parte dos cantautores modernos, queria antes dizer que ao tocar a música das gentes mais pobres e menos instruídas, as que sobreviviam entre os picos dos Apalaches e as lamacentas margens do Mississippi, contribuía para uma espécie de empatia universal, defendia a humanidade e por isso mesmo contrariava a mais cruel barbárie. A música, acreditava Woody Guthrie, era uma ferramenta de resistência e empatia.

Depois da performance de ontem de Shane Parish, que desligou a corrente que o electrificou na véspera durante a intensa prestação dos Ahleuchatistas 3, só podemos acreditar que o que ele fez naquela Taylor de cordas de aço tem o mesmo exacto propósito: o de gerar harmonia, inspirar a paz e derrotar as energias malignas que vão manchando o mundo. Só assim se entende a escolha de reportório que percorreu a distância incomensurável que separa os ecos medievais da folk britânica do mestre Davey Graham (dele escutaram-se a eterna “Anji” e também um tema a que se entregou sempre, “She Moved Through The Fair”) do jazz elevadamente espiritual de Alice Coltrane (tocou imaginativos arranjos para “Ptah, The El Daoud” e “Journey in Satchidananda”); a pop nordicamente alternativa dos Sugarcubes (“Birthday”) do hardcore de ressonância emocional dos Minutemen (“Cohesion”); os blues de Geeshie Wiley (“Last Kind Words”) do jazz de Charles Mingus (“Pithecanthropus Erectus”) e Ornette Coleman (“Lonely Woman”); e até a electrónica oblíqua de Aphex Twin (“Avril 14th”) do jazz criativo e livre de Rahsaan Roland Kirk (“Serenade to a Cuckoo”).

Será mero pormenor que lhe exalta o profissionalismo e capacidade técnica, mas o facto de ter tocado daquela forma, agarrando desde o primeiro acorde o público que quase esgotava o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, numa guitarra com que apenas contactou nesse dia ou na véspera (foi alugada em Portugal pela produção) é algo de extraordinário uma vez que quem não estivesse na posse de tal (irrelevante, na verdade) informação poderia naturalmente acreditar que Parish e aquela guitarra sempre caminharam juntos, sempre mataram fascistas.

Ao reportório de vasta amplitude panorâmica que em muito ultrapassa a paisagem americana há ainda que adicionar ainda as colorações: claro que o guitarrismo de Parish é indissociável do de John Fahey e de outros mestres americanos, mas no seu fingerpicking há para lá dos blues e dos modos folk que conduziram ao country ecos de flamenco e de música clássica e, obviamente, uma sensibilidade jazz muito particular. Tudo junto: o estilo, a técnica que se estendeu ao uso imaginativo do bottleneck ou à adição de um objecto de metal junto da ponte da guitarra e que lhe acentuou o carácter metálico do som, a capacidade de tocar em simultâneo bases rítmicas com a mão direita e linhas melódicas no braço da guitarra com a mão esquerda, o reportório e — uma vez mais — o humor (“Isto é o sítio mais cool em que já toquei”) foram igualmente factores decisivos para que tivesse arrebatado o público que generosamente o ovacionou de pé. Faz sentido: assinou um dos melhores concertos desta edição do Jazz em Agosto.

O espectáculo da noite no Auditório ao Ar Livre com os Thumbscrew da guitarrista Mary Halvorson, do contrabaixista Michael Formanek e do baterista e vibrafonista Tomas Fujiwara foi algo que se posicionou nos antípodas — foi bem mais cerebral do que emocional, mais contido do que expansivo. Este concerto gerava alguma expectativa depois de Wingbeats, o oitavo álbum que o trio lançou em 10 anos de intensa actividade, ter sido amplamente aplaudido em 2024. E por isso mesmo aconteceu perante uma plateia esgotada preenchida por um público expectante.

Halvorson levou para o palco a sua Guild Custom que toca com soberba técnica e cujo natural cromatismo é acentuado com o recurso a um pedal Line 6, que além de lhe oferecer possibilidades de delay que lhe permitem duplicar linhas ainda lhe dá margem para dobrar o pitch das notas criando um efeito sonoro alienígena que lhe oferece uma muito expressiva angularidade. A isso respondem os seus companheiros com peças muito estruturadas que não foram pensadas para grandes voos de invenção espontânea.

O trio ontem soou algo contido, com Fujiwara a revelar um subtil e imaginativo trabalho na tarola mas a nunca “descolar” realmente e Formanek a segurar as pontas com classe, mas limitado pelas margens das próprias composições. A música ganhou outra vivacidade nos momentos em que Fujiwara trocou a bateria pelo vibrafone, com o contraste cromático a revelar-se bem-vindo e os uníssonos que fez com a guitarra a imprimirem uma mais vibrante dinâmica à prestação. Mas o concerto não foi daqueles capazes de nos agarrar pelos colarinhos e sacudir-nos até às entranhas, como outros que já tiveram lugar nesta edição do festival.

Do dia de ontem ressalva-se por isso o contraste guitarrístico nas avançadas técnicas de Shane Parish e Mary Halvorson, dois lados de uma brilhante medalha musical americana que é impossível não admirar.


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