Os cartões de bingo de boa parte das pessoas que seguem o Jazz em Agosto provavelmente não contemplavam um quadradinho com as palavras “math rock” ou “prog” e no entanto foi exactamente com isso que se depararam quando os Ahleuchatistas 3 de Shane Parish (guitarra), Trevor Dunn (baixo) e Danny Piechocki (bateria) subiram ao palco do Auditório ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, na passada sexta-feira. Na verdade, e já que se dá início a esta crónica com um intuito classificativo, nada como usar a descrição da própria banda que, revelando um subtil humor (aliás ecoado pelas intervenções de Parish durante o concerto), se vê como um “avant-technical, post-Beefheart, improv-core, math-metal, art-damage, punk-rock power trio from Asheville, North Carolina”. Assim não subsistem quaisquer dúvidas.
Quando se programa um festival, tendo em conta o seu propósito, contexto, orçamento, etc., devem ponderar-se várias opções: afunilar uma determinada direcção poderá ser uma via válida, mas tomar riscos, explorar novas ideias e ampliar o âmbito de noções de género musical pode trazer inesperadas recompensas. Esse último tipo de opção programática há muito que ajuda a distinguir o Jazz em Agosto e terá como um dos seus notórios e notáveis resultados um claro rejuvenescimento de públicos, algo que parece evidente a quem observe com olhar mais clínico a massa de gente que noite após noite tem marcado presença nesta 41ª edição do Jazz em Agosto, que vai vendo os cartazes espalhados pelos diferentes espaços da Gulbenkian crescentemente adornados com a palavra “esgotado” por cima de boa parte dos espectáculos aí anunciados. Não foi o caso do concerto dos Ahleuchatistas 3, mas pouco deve ter faltado.
Shane Parish, a única peça constante ao longo de todo o percurso dos Ahleuchatistas, tem uma série de bandas de breve duração no seu currículo, incluindo o trio de folk de câmara Library of Babel que já esta década lançou o álbum Sing to Me Of…. O guitarrista integrou também o quarteto de guitarras que Bill Orcutt o ano passado apresentou neste mesmo festival. Já Danny Piechocki tem vida paralela no duo experimental Terms que editou em 2023 All Becomes Indistinct. Outro tipo de notoriedade possui Trevor Dunn, o baixista que passou por inúmeros colectivos, incluindo um quarteto liderado por Darius Jones, os bem conhecidos Mr. Bungle e Fantômas de Mike Patton, os Electric Masada de John Zorn ou os Nels Cline Singers com quem gravou, em 2020, o álbum Share the Wealth para a Blue Note.
Juntos, Parish, Dunn e Piechocki, são, de facto, um power trio de evidente poderio técnico, todos capazes de seguir com absoluto rigor as intrincadas notações inscritas nas pautas que tinham diante de si. O que deu logo esse sinal de “matemática” diferença para os mais convencionais trios de rock. Este é o trio que gravou Expansion para a Riverworm Records em 2022, o mais recente registo na discografia dos Ahleuchatistas e a fonte de boa parte do material apresentado na Gulbenkian.
Com intrincadas e ultra-rápidas frases, uníssonos de fraseados muito complexos que expuseram de forma clara a perfeita sintonia entre os elementos do trio e estruturas rítmicas capazes de nos obrigarem a suster a respiração, o trio apresentou um som límpido e pouco processado, com Shane e Trevor a quase oferecerem dispensa aos seus pedais. É nas estruturas e na precisão da execução das composições que está o carácter distintivo destes Ahleuchatistas 3 e não nalgum desígnio de exploração mais textural. É na complexidade extrema das formas e não nas cores que as preenchem que reside o âmago da música deste trio.
É verdade que a prestação quase sempre “no vermelho” e a pouca variedade cromática do trio pode cansar um pouco os ouvidos de alguma audiência e que nem a curiosa distracção dos gatos que ao fundo do palco executam as suas rondas nocturnas é suficiente para mitigar essa eventual fatiga eléctrica, mas os Ahleuchatistas são super-competentes e um espanto de ouvir. E Shane Parish tem bastante humor, como quando anuncia o tema que dá título ao último álbum do trio, “Expansions”, como o derradeiro da noite, ironizando logo de seguida: “Mas não se preocupem porque dura uma hora e meia”.
Não foi o último, na realidade, porque quando voltaram ao palco após merecido e se calhar um pouco mais ruidoso do que habitual aplauso (efeito rock and roll), Parish explicou que já tinham tocado “toda a música escrita” e que já que se trata de um festival de jazz o trio ia aproveitar para esticar as pernas e improvisar. De facto, essa última peça soou bem menos formulaica e mais viva e livre. Uma cereja biológica em cima de um bolo cozinhado com rigor de cozinha molecular.