São 10 os dias e 14 os concertos do Jazz em Agosto, festival que teve início há exactamente uma semana e que só termina no próximo domingo, 10 de Agosto, com a apresentação do septeto de Patricia Brennan no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O mundo demorou muito mais tempo a fazer. Uma casa demora mais tempo a fazer. Uma criança demora muito mais tempo a nascer. Uma árvore ainda mais até atingir a sua maturidade. Mas só é necessário um instante para que tudo pereça ou seja destruído.
Na verdade, o Jazz em Agosto já leva mais de quatro décadas de nascimentos e renascimentos, de crescimento. É natural que nas muitas centenas de concertos que este grande palco recebeu haja os que se podem descrever como indiscutíveis triunfos e outros a que só o classificativo “fracasso” fará justiça. Mas a verdade é que os primeiros precisam dos outros para se agarrarem à memória. E não é menos verdade que “triunfo” e “fracasso” são conceitos limitados, sobretudo quando os tentamos aplicar à arte.
Vem isto a propósito do singularíssimo concerto/performance/acontecimento de ontem. No Grande Auditório juntaram-se em palco Billy Steiger (Celesta, violino), Crystabel Riley (bateria), Pat Thomas (piano, eletrónica), Paul Abbott (bateria) e Seymour Wright (saxofone) e ainda Edward George (voz, gravações). É quase como se a ideia de colagem ou assemblage das artes plásticas fosse aplicada à organização de um colectivo, já que estes músicos têm origens, práticas e visões muito diferentes: Pat Thomas e Seymour Wright integram os absolutamente incríveis (Ahmed), que assinaram no Jazz em Agosto de 2022 uma das melhores prestações que este festival recebeu nos últimos anos; Seymour e Paul Abbott criam juntos como XT, entidade que assinou uma poderosa colaboração com RP Boo; lll人 é o trio que Abbott e Wright mantêm com Daichi Yoshikawa; e @xcrswx é a dupla de Wright com Crystabel Riley; Wright, Abbott e Billy Steiger também já trabalharam juntos enquanto integrantes do Creeking Breeze Ensemble. E com todas estas inquietas e irrequietas mentes criativas trabalha nestes X-Ray Hex Tet o radialista, escritor, pensador e agitador Edward George, membro fundador do mítico Black Audio Film Collective e metade do duo de dub-techno Hallucinator. É importante referir esta intrincada rede colaborativa para melhor se entender a natureza profundamente invulgar destes X-Ray Hex Tet.
Como qualquer raio-x, este é o projecto que permite a estes músicos examinar o âmago de uma série de ideias, conceitos e práticas: desde logo a natureza do próprio som, do ritmo, das frequências, da ressonância da voz humana, da elasticidade da atenção, da rigidez das estruturas musicais, dos limites da própria música. Para estes X-Ray Hex Tet, o que separa o ruído desconcertante do silêncio absoluto é apenas uma respiração, um gesto sobre um teclado, um movimento muscular. E há uma ideia performática de quase imobilidade com que cada músico procura concentrar no som a atenção, como se este fosse um produto mais cerebral do que físico. Thomas ensaia algumas melodias de enorme beleza ao piano, mas nunca as resolve, preferindo ir adicionando ruído electrónico à massa sonora, de maior ou menor volume, a partir dos seus controladores digitais; Abbott não toca ritmos, antes parece usar a bateria como fonte de quebras de fluxo, ao passo que a sua companheira de instrumento, que estava montado sem quaisquer pratos, ensaia pulsares quase tribais, mas descompassados, criando uma confusa e hipnótica tapeçaria rítmica. Do teclado Celesta, Steiger arranca ocasionais faíscas, que rompem a escuridão sónica geral. E o tão expressivo Seymour Wright limita-se a sons atonais, breves, estridentes ou quase inaudíveis, desconcertantes.
E sobre tudo isso paira a voz de Edward George, lacónica, radiofónica, ocasionalmente modulada e portanto capaz de relembrar o seu alinhamento com as manipulativas práticas do dub. Esse tom adoptado pelo experimentado radialista pretende retirar qualquer peso interpretativo aos textos que lê e que se referem a documentos da Universidade de Edimburgo do século XIX devotados ao tráfico de escravos, ao pendor capitalista do colonialismo e às pseudo-justificações científicas para a barbárie. Mencionam-se os crânios estudados para procurar um atestado amparado pela “ciência”, como a frenologia, para a inferioridade intelectual dos povos escravizados, por exemplo. Lista-se os anos do tráfico no século XVIII como quem enumera itens numa qualquer lista anódina. O choque é inteiramente da audiência, profundamente interior e mexe com a culpa europeia colectiva. A música (?) que acompanha a leitura é assim porque quer igualmente perturbar, manter-nos num qualquer lugar de profundo desconforto. E nesse sentido, de acção política e de protesto, este concerto é um triunfo claro. Quem abandonou a sala antes do final teria diferentes razões, mas a natureza “não musical” da performance, o espicaçar dessa funda culpa europeia e o desconforto que a combinação desses dois vectores gerou terá certamente justificado essa opção.
“This has nothing to do with Gaza”, repetiu George a dada altura com o mesmo tom desprovido de emoção. A Europa, matriz da mais “avançada” civilização, último resguardo de uma suposta superioridade moral quando o mundo inteiro parece colapsar à volta, até pode acreditar nisso enquanto mergulha a cabeça na areia. Ao tocarem uma quase “não música” combinando-a com textos que mexiam no baú do mais abjecto colonialismo (também temos um, ou vários…), os X-Ray Hex Tet deixaram claro que tudo tem que ver com tudo. Um festival como este dura 10 dias e faz-se de “triunfos” e “fracassos”. Talvez. As guerras demoram mais tempo. A morte ainda mais porque é para sempre. Em Gaza sabem isso. Os X-Ray Hex Tet sabem isso.