Antes de se atirar a “We Inside Now”, peça que Darius Jones afirmou ser muito tranquila e que por isso mesmo convidava a uma escuta mais próxima, o saxofonista norte-americano instou o público que esgotou a lotação do Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a acercar-se do palco e sentar-se à volta do trio — “come inside”, disse ele. Ao início ninguém respondeu ao convite, mas quando Darius Jones e os seus companheiros Gerald Cleaver e Chris Lightcap já se encontravam embrenhados na sua meditativa prestação, eis que uma alta e esguia figura entrou em palco pela zona lateral e de forma muito tranquila sentou-se à beira de Jones. Esteve ali uns bons momentos antes de outra pessoa lhe seguir o exemplo. E depois mais uma, mais duas e mais três, num fluxo humano que formou um semicírculo com algumas dezenas de pessoas posicionadas diante do trio, que de forma respeitosa aproveitaram o generoso e inesperado convite que lhes tinha sido endereçado vários minutos antes. Um momento muito especial de partilha e entrega que marcou o fabuloso concerto em torno de Legend of e’Boi (The Hypervigilant Eye) de Darius Jones na terceira jornada do Jazz em Agosto.
Legend of e’Boi (The Hypervigilant Eye), álbum lançado em 2024 pela AUM Fidelity, é a sétima parte de uma série iniciada em 2009, que se prevê estender-se até aos nove volumes e que Jones designou como Man’Ish Boy, um amplo fresco que cobre profundas, complexas e dolorosas questões de identidade, trauma, saúde mental, violência, encarceramento, negritude. Uma grande autobiografia expressa musicalmente que é também um olhar sentido sobre a experiência afro-americana. Legend of e’Boi foi justamente nomeado entre os melhores registos do ano e cimentou o estatuto de Jones como uma das mais criativas, originais e robustas vozes do saxofone contemporâneo.
Ontem, no seu regresso à Gulbenkian depois de por ali ter apresentado no ano passado o magnífico fLuXkit Vancouver, Darius Jones assinou uma prestação capaz de convencer até os mais cépticos, com um registo profundamente espiritual, comovente até, que expôs o tutano blues que existe dentro dos seus ossos jazz (na véspera, o saxofonista, na companhia do seu contrabaixista, relaxava no bar da esplanada do Jardim das Rosas ostentando uma t-shirt com o rosto de John Lee Hooker).
Jones, Cleaver e Lightcap tocaram na íntegra o alinhamento de Legend of e’Boi, embora por uma ordem distinta da que o disco apresenta. O trio entrou a pés juntos com uma intensa leitura de “We Outside” — porque, na verdade, encontrávamo-nos no exterior —, uma peça que evolui em crescendo e onde as ricas bases ritmicamente circulares proporcionadas por Gerald Cleaver e Chris Lightcap ofereciam um contraste às mais livres e abstractas deambulações de Darius Jones. Seguiu-se “Another Kind of Forever”, composição em que Lightcap e Cleaver aprofundaram a sua orgânica coesão, com um acentuado e deveras elegante groove fundado no rhythm n’ blues, mas bem mais sofisticado nos seus imaginativos desenhos rítmicos. Seguiu-se “We Inside Now”, a peça que levou uma pequena multidão até ao palco, com as pessoas a terem o privilégio de observar de perto não só o exercício de introspecção musical proposto por Jones, mas também a meticulosa e delicada filigrana sonora que interliga os três músicos.
Curiosamente, num gesto de aparente humor, após apresentar os seus companheiros dizendo os seus nomes, Jones optou por referir que se chamava algo como Henry Davis, Jr. (pode ter sido um nome ligeiramente diferente, mas não foi, decididamente, Darius Jones…). Esse aparte, tal como, mais tarde, a introdução a “Motherfuckin’ Roosevelt” — em que explicou ser um tema dedicado a um tio: “saxofonista, esteve preso e foi uma pessoa complicada que aos 5 anos me meteu o saxofone na boca e disse ‘sopra’, coisa que tenho feito desde então” — podem ser lidos como momentos em que de forma subtil Darius Jones sinalizou as questões do foro da saúde mental que inspiram a série Man’Ish Boy e que são foco especial de Legend of e’Boi.
A música que Jones apresenta não esconde a dor, mas também não a sublima, usando-a antes como uma energia própria, o ponto de partida para uma catarse que o seu maravilhoso tom no alto traduz em discursos de pendor poético ou em gritos de carácter mais primal. Como nos blues. O trio ainda se atirou à maravilhosa “No More My Lord”, um tema de Henry Wallace, aka Jimpson — recluso da notória Parchman Farm, a instituição prisional do Mississippi conhecida por um repressivo regime de trabalho que fazia lembrar os tempos da escravatura — que foi gravado em 1947 pelo lendário folclorista Alan Lomax. Darius Jones introduziu essa peça como “uma das mais assustadoras músicas de sempre”, algo corroborado pelo ambiente sombrio sugerido pelo drone que Lightcap desenhou com o seu arco e a que Cleaver respondeu com uma lenta cadência de marcha fúnebre e que permitiu ao saxofonista desenvolver um pungente solo de humanidade absoluta e dor plena. “Affirmation Needed”, a composição que abre Legend of e’Boi, foi o tema escolhido para encerrar o concerto com um encore exigido por uma massa humana incondicionalmente rendida à prestação do trio. Um triunfo para Darius Jones, sem a menor sombra de dúvida.
Antes da performance do trio comandado por Darius Jones, o programa propôs a apresentação de Mariam Rezaei que subiu ao palco do Auditório 2 para uma prestação que começou em modo solo, com a artista a usar dois pratos de gira-discos e um sistema Serato para assinar uma sessão de noise, altamente livre e abstracta, de graves profundos e abrasão máxima. Juntaram-se-lhe na segunda parte o guitarrista Julian Desprez e o baterista Lukas Konig, ambos membros de Mopcut (que têm concerto marcado no Anfiteatro ao Ar Livre para as 21h30 de próxima quarta-feira, dia 6, na companhia de Moor Mother e MC Dalek) que carregaram para o palco o seu mais pesado arsenal de riffs e duplos tempos no bombo, acentuando a tonelagem decibélica que levou a que várias pessoas fossem abandonando a sala, derrotadas pelo ruído. Deste concerto não ficará grande memória: ao contrário de Darius Jones, que na sua profundamente criativa música nunca deixa de expor o seu âmago blues, Mariam Rezaei abdica completamente da raiz hip hop da sua prática gira-disquista e embora se socorra de técnicas há décadas desenvolvidas pelos pioneiros DJs do Bronx, como o scratch ou o beat juggling, não sobrevivem na sua proposta musical quaisquer ecos dessa vibrante raiz. Fica o assalto sonoro total que até poderia servir para despertar consciências numa era em que é importante estarmos alerta, se não tivesse gerado o absoluto efeito contrário ao entorpecer todos os sentidos.