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Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 11/08/2025

Mais um par de concertos para encerrar a edição deste ano.

Jazz em Agosto’25 — dia 10: entre a escuridão e as estrelas

Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 11/08/2025

A 41ª maratona jazz de Lisboa chegou ontem ao final com um belíssimo concerto do septeto de Patrícia Brennan no Anfiteatro ao Ar Livre dos jardins da Gulbenkian. O balanço desta edição do Jazz em Agosto é necessariamente positivo já que o festival voltou a explorar novos caminhos e presenteou o seu público — ou talvez seja até mais correcto falar em públicos — com uma programação variada e desafiante. Das exploratórias ressonâncias espirituais ao jazz firmemente enraizado na tradição, da folk à electricidade planante, do nervo rock ao pulso hip hop, da experimentação electrónica ao rigor acústico, houve generoso espaço para muitas manifestações criativas, triunfos absolutos, experiências intensas e um par de — para estes ouvidos, claro — apresentações menos conseguidas que, no entanto, não beliscaram a intenção declarada pelos programadores do Jazz em Agosto de alinhar em palco músicos “conscientes e informados da tradição” que ainda assim “recusaram ficar presos ao passado” e que são, portanto, “curiosos, abertos ao novo e ao desconhecido”. Confere. Foi exactamente dessa classe de artistas que se fez esta 41ª edição do Jazz em Agosto.

Na sua derradeira etapa, o cartaz do Jazz em Agosto propunha dois concertos. O primeiro teve lugar num Grande Auditório sem o belíssimo quadro natural do fundo de palco exposto, já que o espaço foi transformado numa caixa negra preparada para receber as projecções e desenhos de luz que acompanharam boa parte da performance da dupla formada pelo cravista, pianista e manipulador de electrónicas Elias Stemeseder e o baterista Christian Lillinger.

A apresentação de Antumbra foi, porventura, a mais exigente de todo o programa: a música toma de assalto todo o espectro auditivo com um volume propositadamente elevado que em conjugação com o jogo de iluminação estroboscópica e de imagens abstractas e geométricas parece redundar numa sessão de tortura digna de um moderno filme de espionagem. Stemeseder e Lillinger não subiram ao palco para nos entreter e a altamente complexa música que executam não foi composta para nos deleitar, antes para nos perturbar, fazer pensar, arrebatar e retirar de qualquer zona de conforto que possamos ter. Essa também é uma função possível da arte e tendemos a esquecer-nos disso até sermos confrontados com este tipo de performances.

O baterismo altamente esquemático, maquinal, espasmódico e desconcertante de Lillinger é fonte de constante sobressalto, mas também nos prende a atenção porque é completamente imprevisível, arrítmico, não linear e francamente estranho. Como se se pedisse a um robot que tocasse uma peça ultra complexa e de repente um pico de energia provocasse na máquina uma qualquer avaria. A isso corresponde Stemeseder com equivalente estranheza, de braços divididos por um cravo e um piano, com um arsenal de artefactos electrónicos pelo meio, incluindo um sintetizador modular usado como interface para manipular o som dos teclados acústicos. 

A massa sonora que daí resulta, impecavelmente apresentada à sala pelo engenheiro de som Marco Pulidori, assalta-nos o corpo tanto quanto a mente e mantém-nos com as costas esmagadas contra as cadeiras, como se de repente aumentasse a pressão atmosférica dentro do Grande Audițório, sensação só atenuada quase no final do concerto quando o fundo de palco se abriu para nos expor à luz do dia e à benigna natureza exterior algo que, revelou Stemeseder, terá sido a primeira vez que sucedeu no Grande Auditório — a cortina de fundo ser aberta durante uma actuação. Em condições normais, uma apresentação destas exigiria um período subsequente de absoluto repouso, desprovido de quaisquer estímulos aurais ou visuais, porque este é mesmo o tipo de experiência de que é preciso recuperar animicamente. 

De certa maneira, o concerto que encerrou este 41º Jazz em Agosto foi o perfeito antídoto para a sobredose aural de Antumbra.

Em palco, com Patrícia Brennan (vibrafone, direcção), estiveram John Irabagon (saxofone alto e sopranino), Mark Shim (saxofone tenor), Adam O’Farrill (trompete), Kim Cass (contrabaixo), Dan Weiss (bateria) e Keisel Jimenez (percussões), ou seja a quase totalidade do septeto que gravou o espantoso Breaking Stretch (nas sessões de estúdio a bateria foi entregue a Marcus Gilmore e as congas e demais percussões ao mestre Maurício Herrera). A vibrafonista não escondeu a alegria por estar a estrear-se em palcos europeus enquanto líder e logo à frente de um colectivo tão poderoso quanto este. E essa alegria foi realmente transposta para a energia do grupo.

Interpretando boa parte das diversas peças que sublinharam em Breaking Stretch o profundo talento composional e orquestral de Brennan, o colectivo mostrou-se bem oleado e pronto para deslumbrar audiências europeias com um inteligente híbrido de tradição e modernidade com os balanços das claves latinas a suportarem inventivas derivas da célula de sopros, que tanto brilhou enquanto unidade capaz de gerar luxuosas passagens harmónicas de refinamento absoluto como quando permitiu que as atenções se ficassem nas personalidades individuais que assinaram solos de expressividade máxima, com O’Farrill, que aditivou o seu trompete com electrónica, e Shim a mostrarem-se particularmente intensos nesse departamento.

A secção rítmica mostrou-se igualmente em forma, com Weiss e Jimenez a trocarem cadências de vincado balanço como se toda a vida tivessem tocado juntos e Cass a exibir toda a sua enorme classe numa soberba introdução a “Palo de Oros”, uma prova de que a capacidade de swingar com alma e subtileza é uma arte que permanece relevante. 

A isto tudo, Brennan contrapôs uma expressividade de elegância máxima, colorindo com as mil cores reflectidas no som de cristal do seu vibrafone composições tão exuberantes quanto sofisticadas, com qualidade cinemática e plenas de vívida vibração, tudo fruto de um toque muito particular e sabedor, com as suas marretas a interagirem com as lâminas do instrumento com uma precisão de mestre. 

A líder não escondeu a emoção quando falou da saudade que sente das praias da sua Verá Cruz natal antes de “Sueños de Coral Azul” — “Sei que os corais se encontram mais para os lados da Austrália, mas gosto tanto dessa cor que dei este título à peça”, explicou. Mais adiante revelou-nos que é uma astrónoma amadora e que gosta de observar as estrelas com o seu telescópio: no tema “Earendel”, que se refere à estrela individual mais remota jamais identificada, essas qualidades cósmicas do seu instrumento foram colocadas em evidência com máximo efeito encantatório. Uma absoluta delícia.

E foi assim que se encerrou o 41º Jazz em Agosto, com olhos e ouvidos atentos às estrelas — as mais remotas e as que hoje garantem que jazz é um verbo que se conjuga no futuro.


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