O elemento decorativo no topo do doson ngoni de que William Parker extrai rítmicas e circulares frases carregadas de groove parece um cravo vermelho estilizado, o que não deixa de ser uma feliz coincidência já que a música que ontem se ouviu na abertura da 41ª edição do festival Jazz em Agosto, no Auditório ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, é um autêntico hino de libertária ressonância. Parker ocupava o lugar central no palco, sendo ladeado por Cooper-Moore e Hamid Drake, dois músicos com que tem uma relação de décadas, mas com quem só o ano passado gravou enquanto trio. Heart Trio, o belíssimo registo desse encontro, foi o ponto de partida para a hipnótica música ali conjurada a partir das suas experiências e memórias, individuais e colectivas. No final da apresentação, Parker puxou dos seus poéticos galões para falar à audiência que esgotou a lotação desta noite inaugural do festival. “The heart to resist, to be yourself… the heart to listen and to share and love one another. That’s what’s it all about. Follow your heart, follow your dreams. Never, ever give up”.
Na verdade, Parker poderia estar igualmente a falar da arte de resistir e de escutar, e talvez estivesse mesmo — aos ouvidos portugueses, as palavras “heart” e “art” podem soar muito semelhantes. A resistência não é só ao mundo de absoluta loucura em que parecemos viver hoje e de que os aviões em constante aproximação à pista nos vão lembrando a um infernal ritmo, mas também ao insustentável peso do ego, algo de que os três veteranos artistas parecem ter abdicado há muito em favor de uma claríssima harmonia colectiva. E isso faz imediatamente pensar na ideia de sociedade musical orgânica que Don Cherry tão bem professou, recolhendo pulsares e texturas de várias pontes do globo para criar uma música leve e densa que parecia elevar-se acima dos tempos e dos lugares para nos apontar um outro caminho. Foi Cherry, aliás, quem mostrou na década de 70 a Parker o doson ngoni que parece adornado com o cravo da liberdade. Foi ele quem apontou esse tal caminho. E foi dele que inevitavelmente nos lembrámos quando William Parker pegou num trompete de bolso para solar durante uma das passagens.
Cooper-Moore socorreu-se em primeiro lugar da sua ashimba, um xilofone de 11 notas que ele mesmo construiu a partir de pedaços de madeira encontrados na rua. Os seus padrões rítmicos parecem muito naturalmente casar-se com o coaxar dos sapos do lago do jardim, o que nos lembra que nem o rugir de motores a jacto nos pode fazer esquecer a natureza que nos rodeia, mesmo nas cidades de concreto. Ao longo do concerto, Cooper-Moore usou outros instrumentos peculiares, mas foi a sua magnífica prestação numa singular harpa que ele também concebeu, cujas cordas (ou corda singular?) faz vibrar com um arco, modulando depois o som com a boca, como num berimbau de boca — o que leva alguém a comentar que “parece um alien a falar” — que realmente se destacou pela elegância das linhas produzidas, pela capacidade de encaixe harmónico com os discursos de Parker, tanto nos cordofones como nas diversas flautas shakuhachi ou duduk a que foi recorrendo.
E a sustentar as planantes tapeçarias sonoras tecidas pelos seus companheiros esteve sempre o incrível baterismo de Hamid Drake, músico gigante que é dono de um groove infinito e de um toque de absoluta elegância, capaz de debitar padrões propulsores de brilho metalizado até quando se concentrava exclusivamente nos pratos de choques. O swing de Drake é um tesouro do mundo, um repositório fundo de cadências pan-culturais que carregam ecos de diásporas arcanas, uma espécie de linguagem universal que se faz do som dos passos que os povos fazem enquanto caminham ao longo das suas histórias.
Durante hora e meio de concerto em que se escutaram três longas peças improvisadas, houve espaço para recuar aos blues e à verdade abstracta que encerram, para passagens longas de maior abandono libertário, para viagens demoradas aos próximos, médios e extremos orientes, para a desconstrução de cadências de marcha militar que trouxeram ali outro espírito, o de Albert Ayler, e até — pode-se jurar deste lado — para uma subtil citação (talvez inconsciente) ao “Psycho Killer” dos Talking Heads, num arremedo de funk orgânico em que o trio se envolveu por um bom pedaço, fazendo as cabeças da plateia ondular como o trigo nos campos quando sopra uma brisa suave.
Quando deixou a bateria e se acercou dos companheiros pegando num instrumento de percussão circular, Drake também cantou, vocalizando de forma tocante um lamento numa língua imperceptível, talvez inventada, talvez recordada de vidas passadas, mas que todos entendemos. Na entrevista que ontem publicámos, Parker refere que podemos falar línguas diferentes, mas que rimos e choramos numa língua universal. Percebeu-se bem porque chorou naquele momento Hamid Drake. Afinal de contas, todos choramos assim.