As palavras movem montanhas, começam e acabam guerras, alteram o rumo da História, das nossas histórias. Por vezes, uma só palavra pode valer mil imagens. As palavras que Moor Mother ontem entoou — “I hope you never have to see” — tiveram o peso das incontáveis imagens horríficas a que a poeta/declamadora/pensadora/agitadora de corpos e mentes certamente se referia, remetendo para o flagelo colonial com um stream of thought que soava a grito de revolta, lamento, desabafo, alerta e tudo o mais em simultâneo.
Moor Mother, Camae Ayewa de seu verdadeiro nome, passou em dose dupla pelo festival Jazz em Agosto da Fundação Calouse Gulbenkian, em Lisboa, em 2022, quando se apresentou à frente dos “seus” Irreversible Entanglements e em duo com Nicole Mitchell, em duas prestações muito diferentes que dão bem conta da amplitude do seu registo. Ontem, depois da actuação que co-protagonizou ao lado dos igualmente fantásticos MC Dälek e MOPCUT, uma amostra dessa amplitude pode constatar-se quando foi ao encontro do público para vender cópias em vinil da versão de The Great Bailout que fez com a London Contemporary Orchestra (que, para já pelo menos, parece estar indisponível em qualquer outro lado em formato físico) e também um livro de poemas, American Equations In Black Classical Music: Counting The Beat – Blues Time & Temporal Alchemy, num exemplo prático de hustle que parece fundado na particular ética do hip hop — os DJs e MCs sempre venderam mixtapes no final das suas actuações, contornando a indústria e o capitalismo de uma forma muito directa.
A apresentação dos MOPCUT do guitarrista Julien Desprez, do baterista Lukas Konig e da vocalista Audrey Chen na companhia de Dälek e Moor Mother — uma estreia mundial — era uma das que a redacção do Rimas e Batidas mais esperava e as expectativas, é lícito dizer, foram ultrapassadas. Importa ainda mencionar que o cruzamento de Desprez e Konig com a DJ Mariam Rezaei na tarde do passado domingo, apesar dos dois músicos de MOPCUT terem sido tenicamente irrepreensíveis, não resultou em pleno, mas ontem o caso mudou completamente de figura.
Os músicos optaram pelo método “Stop Making Sense” (criado pelos Talking Heads, pois claro) de entrada em palco, ou seja, um de cada vez, num crescendo de intensidade que, na verdade, se manteve até ao final do espetáculo. Audrey Chen foi a primeira, extraindo de um pequeno sintetizador ruídos circulares de textura insectóide a que juntou a sua voz em modo de instrumento adicional, soltando todo o tipo de sons possíveis sem dizer uma única palavra. Foi nesse registo que Moor Mother também primeiro se fez ouvir quando se juntou em palco a Chen, soltando diferentes tipo de sons, estalidos, ruídos guturais.
Como é óbvio, a presença em palco de Dälek e Moor Mother deixava antever o recurso abundante à palavra, de que são, cada um à sua especial maneira, exímios utilizadores. Mas o concerto começou com sons não verbais, onomatopaicos, quase como se a ideia fosse dizer que a linguagem é uma coisa poderosa, preciosa, e que demorou a ser desenvolvida.
O baterista Lukas Konig foi o terceiro elemento a chegar ao palco, mas num primeiro momento quase nem se fez ouvir, abordando o seu kit de uma forma radicalmente oposta à que tinha usado no concerto com Rezaei, ultra-contido e minimal.
Dälek e Desprez foram os últimos a juntarem-se à performance e só então se escutaram as primeiras palavras na voz de Moor Mother: “The many tones of language” (também poderia ser “the many tongues of language”), frase que inverteu, retorceu e manipulou durante um bom bocado. Nesta altura, já a banda avançava rumo ao desconhecido em full swing, com Dalek de rosto obscurecido pelo seu “cap” adornado com o símbolo de Nova Iorque de volta da sua MPC e outros módulos, contribuindo para a fluída massa sonora que resultava da interligação da voz e sintetizador de Chen, com a percussão de Konig e a incrivelmente original e espasmódica guitarra de Desprez, que usa quase como módulo de sons que depois manipula com os seus pedais, tocando-os mesmo — aos pedais, bem entendido — como um pequeno teclado de que extrai frases repetitivas plenas de groove.
E a partir daí foi sempre a abrir, com Dalek a assomar ao microfone e, de repente, o que era um registo de improvisação livre algo disforme resolveu-se em hip hop exploratório, angular e ultra-entusiasmante. O carácter abrasivo da guitarra e os graves fundos como o Grande Canyon que Dalek roubou à Roland TR 808 forneceram a base para um longuíssimo improviso em que Moor Mother falou da Tesla e da world wide web, da inteligência artificial, num solilóquio do caos tecnológico absolutamente arrebatador: “bombs, Hiroshima, Nagasaki, religion, democracy” — Mother parecia estar a condensar notícias dos últimos dias num novelo de palavras que trazem cada uma mil imagens agarradas.
Konig revelou-se um metrómeno humano, um criador de batidas à altura das rimas que Dälek e Mother foram largando, deixando claro ter estudado a particular síncope hip hop afro-americana com total atenção. Mas Desprez foi um espanto, um imaginativo punk que ama o hip hop, um free-jazzer que entende o pulsar da electrónica, capaz de uma invulgar expressividade na sua Stratocaster, recordando por vezes alguns dos gloriosos ruídos que Sonny Sharrock era capaz de gerar.
Uma apresentação de cortar o fôlego, intensa, carregada de imaginação, original. Com palavras que valem muitas mais imagens. Com sons que parecem capazes de mudar o mundo. E mudaram mesmo, ainda que só durante o tempo em que até os aviões foram capazes de silenciar.