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Fotografia: CM Barcelos
Publicado a: 15/09/2025

Um duo inédito antes do ensemble endémico.

Jazz ao Largo’25 — dia 4: para uma harmonia final 

Fotografia: CM Barcelos
Publicado a: 15/09/2025

Os domingos e o fazer o que mais apetece sem antever em demasia a semana que virá. Cada qual escolhe o programa que mais se ajusta para preencher as horas, que embora sejam as mesmas de todos os dias, se querem sentir esticadas. O último dia de programa do Jazz ao Largo contou com três propostas. Logo pela manhã se faz maior o dia. Pequenos grandes entusiastas da exploração sonora responderam à chamada de “Sononautas”, no Theatro Gil Vicente. Um par de horas passadas dedicadas às crianças, onde labirintos sonoros trazidos pela equipa da Sonoscopia — com Ana Luísa Veloso, Vicente Mateus e Henrique Fernandes — souberam proporcionar uma viagem pelo espaço do som. Partindo de pequenos experimentos onde o avanço se faz pelo improviso que define o espaço. Um universo em que os astros são feitos de som e os pequenos viajantes operam e definem em partilha um campo novo e momentâneo. Uma actividade na busca da ligação entre pares e na cumplicidade sonora mas que tenta deixar pistas estabelecidas para um caminho rumo ao presente mundo da música exploratória e improvisada. E assim se formam novos públicos, e músicos, para o amanhã também. 

Na esteira da ideia cósmico-sonora podem ser vistas as trajectórias das grandes figuras na cena da música improvisada actual. Onde o rasto luminoso se tem feito de marcas sonoras, em marcantes registos discográficos e em múltiplas passagens de combinatória variável entre músicos em que a composição se converte no lugar efémero do som. O festival proporciona e assume com destaque o primeiro encontro de construção sonora em tempo real da pianista Eve Risser e da trompetista Susana Santos Silva. Duas destacadas improvisadoras, hábeis na capacidade de exploração e criação comprometida com recurso a linguagens próprias de cada uma. Uma identidade que se vai sedimentando à medida que ampliam as possibilidades de diálogos. Interacções colectivas que vão reforçando o eu, em processos de entendimento da expressão com mais propriedade individual. Sem que sejam regras impostas a um qualquer jogo que se possa imaginar, partem para o campo de criação sonora sem combinações ou ensaio prévio. Deu para testemunhar que a preparação é individual, relegando para o campo de acção, através do som, o efectivo resultado em duo. Destaque ainda para o modo — toda a propagação é na acústica natural do espaço. A amplificação é orgânica. Caixa de ressonância do grande piano e campanula da trompete. O processamento do som é resultado de muitos efeitos vindos de obstáculos físicos à notas naturais dos instrumentos. Risser preparou as cordas do piano com múltiplos objectos: esferas, caixas metálicas, massas, superficies ressoantes e baquetas à disposição, lembrando a propósito que o piano é um instrumento de percussão mas também de intensa vibração, e a potenciar isso há e-bows e motores de vibradores. Santos Silva é entre os três pistões e um par de surdinas que vai operando a trompete, do seu sopro sairam as formas e dinâmicas do som. 

O que se torna numa viagem surpreendente de harmonias dá para construir um corpo de dança que se imagina por entre os claustros da Câmara Municipal de Barcelos. Talvez de uns seres volatilizando-se pelos interstícios das ondas sonoras, entre a plateia em semi-circulo, a pianista e a trompetista amparada na curvatura do piano. Texturas de uma, tonalidades melódicas da outra. Seguem por campos em separado. Encantador é o efeito de harmonia sem que haja um real encontro tonal premeditado. Como olhando para lados opostos de um corpo comum — sonoro. Um espaço que cria um habitáculo de cura regenerativa sónica, imaginado-nos pertencentes àquelas ondas propagadas e assim massajadas as auras. Dinâmicas de tensão e libertação são mais frequentes nas teclas enquanto o sopro explana o diálogo. É notável como escutam o espaço que nos envolve enquanto o definem em simultâneo. Entendem-se apontamentos de vasos comunicantes com outros emissores sonoros imprevistos. A improvisação é um sentido sem retorno e aqui desenha uma suspensão do tempo, esse desejo das horas suspensas de um domingo à tarde. O final de caixinha de música a discorrer dentro da grande caixa ressoante do piano foi harmonia em concreto — ampla entre as duas músicas, sempre comunicando nos seus idiomas próprios mas ligadas como que numa só voz. Há vontade de mais, que nunca será de repetição alguma — impossível condição neste modo de criar com forças desta natureza.



Para finalizar o programa, sobe ao palco do teatro — paredes meias com os claustros — o Ensemble Jazz ao Largo. Uma formação meta-estável de músicos locais, formada em 2022 com a finalidade de irem a cada edição do festival apresentando criações e propostas sonoras que assentam na sua prática no campo da música improvisada e exploratória. Para esta edição, na sua quarta apresentação, trabalharam uma interpretação da peça seminal “In C” de Terry Riley, de 1964. Partindo de uma proposta directa de Pedro Oliveira, como curador do festival, os onze músicos do Ensemble propõem-se retomar a peça seminal do minimalismo na música. Uma composição de efeito ondulante e hipnótico. O Ensemble é composto de sopros de metais: trompete, fliscorne, saxofone tenor, soprano e dois altos. Uma secção de percussão alargada, com tímbalos, címbalos, tarola, metalofone e vibrafones. A complementar teclados sintetizadores, uma melódica, flautas de bisel e voz. Ao todo, a peça é composta por 53 fragmentos que se retomam em cadências que, como bem define a música minimal deste compositor e outros seus contemporâneos, deambula num aparente ciclo de repetições. Há no entanto uma matriz assumida de liberdade para as variações e sobreposições na sua execução. Um dos fascínios nestas composições é a passagem, embora sob uma composição escrita e interpretada em pauta, para os domínios do imprevisível efeito — algo de improvisação nisso mesmo. Os músicos souberam levar por diante esta empreitada e foram capazes de devolver com elevado desempenho tímbrico e cadência. Permitiram usufruir dos jogos actuantes da peça e em muitos momentos criar cenários e evasões.

Um festival que termina a sua décima edição em modo de harmonia dos sons, celebrando o novo e o  improviso a par do relembrar a vanguarda que se justifica hoje. Fica a marca deixada pelos que fizeram acontecer dias de música indispensável num ciclo coerente e que se vai prolongar ao longo do ano. Dia  29 de Outubro recebe o trombonista Samuel Blaser junto ao violoncelista Vincent Courtois e ao contrabaixista Bruno Chevillon. Dez anos a pedirem outros mais pela forma e conteúdos de relevância com identidade.


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