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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/09/2024

Duas vezes dois.

Jazz ao Largo’24 — Dia 3: sessão feliz, com lágrimas

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/09/2024

O Largo Dr. Martins Lima, como seria de esperar, encheu-se na noite do passado sábado, 14 de Setembro, bem para lá das muito cobiçadas cadeiras disponíveis para receber a dupla-estrela desta edição do Jazz ao Largo, evento que ontem terminou em Barcelos, Maria João e Mário Laginha. Uma alargada moldura de gente enquadrava a compacta plateia sentada e havia ainda pessoas nas janelas e varandas circundantes, uma espécie de privilegiados camarotes com vista desafogada para o palco montado em frente à Igreja de São Francisco. No final da noite, uma muito comovida Maria João e o seu visivelmente feliz companheiro musical de tantos anos eram premiados com uma chuva de aplausos que coroou uma actuação sem mácula, perfeita até nos interlúdios conversacionais — entre os dois artistas e entre os artistas e o público.

A terceira jornada do barcelense Jazz ao Largo, no entanto, começou bem mais cedo, com a apresentação de outra dupla, a do baterista Jim White e da guitarrista Marisa Anderson que decorreu no intimista espaço dos Claustros dos Paços do Concelho de Barcelos. De certa maneira, o programa do festival para sábado colocava em prática um jogo de absolutos contrastes — dupla nacional vs. dupla internacional; jazz instrumental vs. jazz vocal; música exploratória vs. música de amplo alcance. Os aspectos diametralmente opostos existentes entre a música que White-Anderson e João-Laginha propõem são múltiplos, o que não significa que a música de uns se sobreponha à dos outros. São “bichos” de espécies diferentes e mostrá-los a um mesmo público no mesmo dia é gesto que mostra coragem, por um lado, mas também confiança, por outro. Funcionou, e isso é que importa enaltecer.

Jim White, australiano, é músico experimentado, constante da lista de contactos rápidos de gente como Cat Power, PJ Harvey ou Bill Callahan, parte dos celebrados Dirty Three com Warren Ellis e Mick Turner. E Marisa Anderson é uma guitarrista particular, dona de um léxico vasto que se alarga naturalmente do rock aos blues e à folk. Juntos, assinaram o belíssimo Swallowtail, com selo da Thrill Jockey, já este ano, trabalho que agora os carrega na estrada. Trata-se do sucessor de The Quickening, de 2020, sinal claro de que o lugar a que chegaram com esse primeiro registo conjunto teve suficiente interesse para merecer nova visita.

Há um tom “conversacional” na música de White e Anderson, facto que os leva a apresentarem-se muito próximos um do outro, hábito talvez desenvolvido nos palcos dos pequenos clubes que costumam frequentar, mas que também se pode atribuir à óbvia empatia que desenvolveram. As faíscas do rock mais exploratório nunca andaram distantes dos seus diálogos, mas a música que ambos criam vive de uma clara busca de êxtase, com lentos crescendos, cascatas de harmónicos na guitarra e tremores constantes na bateria. Jim usa a totalidade do kit — peles, pratos, aros, faz longos arcos com os braços, como que a desacelerar o tempo, e deixa as baquetas rolarem em cima da tarola com uma elegância calculada e uma gestão do tempo rítmico perfeito. O concerto terminou com uma barragem de notas, com Marisa a explorar as cordas mais graves do seu instrumento, em busca do traço grosso com que se desenham as suas vastas paisagens. Bonito a sério.



Horas depois, um outro tipo de beleza foi exposto com o concerto de Maria João e Mário Laginha, histórica e incontornável dupla do jazz nacional que, como já referido, convocou a maior multidão deste festival. Ao longo de cerca de hora e meia, Laginha e João desfiaram temas de álbuns como Iridescente (2012), Chocolate (2008), Tralha (2004) ou Chorinho Feliz (2000), revisitando com classe uma história discográfica conjunta de várias décadas. Numa das suas várias intervenções — sempre carregadas de ternura, de muito humor e de gigante capacidade de gerar empatia com o público — a cantora explicou que já conhece Mário há quatro décadas: “Sou a cantora que sou por causa dele”, afirmou. A “troca de galhardetes” soou sempre franca e honesta: a dupla redescobriu o prazer de tocar música em conjunto e isso sente-se na entrega de cada um. Mário, por seu lado, sublinhou o quão rara é uma artista como a sua companheira de aventura, elogiou o seu invulgar sentido rítmico e a coragem artística que a leva em permanência a buscar o inusitado. E, de facto, tudo isso se sente na sua prestação.

O facto de gozarem de muita atenção do público, no entanto, não levou a dupla a seguir o caminho mais fácil: o concerto abriu com a complexa “Parrots and Lions” e depois, seguindo por peças como “Fidegity”, “7 Facadas”, “This Time”, “Bêbado e Equilibrista”, “Cair do Céu”, “Paredes Que Nos Rodeiam”, “Um Amor” ou “Iridiscent”, a ideia com que se ficava era que, tecnicamente falando, o par ia elevando a fasquia, com cada vez maiores amostras dos respectivos génios. Mário Laginha tocou ao seu melhor nível, com momentos em que a sua mão esquerda assumia uma toada mais sombria, quase fúnebre até numa das peças mais tardias do alinhamento, e a direita a escrever poesia sem parar. Do choro aos blues, do fado ao jazz, não faltaram no seu pianismo múltiplas tonalidades que o confirmam como um poliglota consumado. E Maria João é aquele monstro que vai do quase silêncio ao trovão, que tanto é trompete como theremin, que ri e chora na mesma frase, por vezes até na mesma palavra e sílaba, tamanho o alcance das suas particulares nuances expressivas. Tudo no sítio, sem uma nota que seja deslocada. Ouvir esta dupla é estar condenado ao arrebatamento. Impossível a indiferença. E a ovação no final, de pé, que levou a cantora a emocionar-se, ainda rendeu uma belíssima “Lua Partida ao Meio”, temperada com lágrimas de felicidade que, julgo que diz a ciência, têm uma composição química diferente das outras, as de dor ou desespero. A mim souberam-me a beleza pura.


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