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Publicado a: 08/07/2018

Jardins Efémeros 2018 – Dia 2: a afirmação feminina em noite de electrónica experimental

Publicado a: 08/07/2018

[TEXTO] Vasco Completo [FOTOS] Fernando Carqueja e Rafael Farias

Menção honrosa de ontem para a Sementeira, iniciativa do Bloco de Esquerda de Viseu que juntou vários artistas visuais de tipologias distintas, um alfarrabista local e ainda nos traz a possibilidade de assinarmos a petição para salvar o cinema de Viseu. Enquanto aguardávamos pelos concertos, aproveitámos para conhecer uma cidade muito activa por iniciativa do Jardins Efémeros. No Largo Pintor Gata ouvimos Mafalda Pais nos pratos com os primeiros rasgos de soul e funk desde que chegámos. Voltámos a apanhar Nicholas Bamberger no piano (que nos confirmou ter tocado a versão de Radiohead no dia anterior), desta vez acompanhado de duas dançarinas e um homem a declamar poesia. Excelente junção de valências, num momento evidentemente sentido e apreciado pela audiência que cruza festivaleiros, turistas e locais. Também é para isto que a arte serve.

O dia que sofreu alterações de última hora — pelo cancelamento das ESG e consequente adição de Anika – foi também compreendido como um dia de afirmação para as mulheres, apresentando um alinhamento predominantemente feminino. Sandra Oliveira, responsável pela organização do festival, apresentou-nos a intenção de afirmar a mulher numa indústria ainda infelizmente machista. Para uma maior equidade caminhamos e os Jardins Efémeros dão mais um passo nessa desejada direcção.

 



Iniciámos o circuito de concertos com Lucrecia Dalt, vinda da Galeria ZDB, onde actuou na véspera. O concerto ocorre no Claustro, em moldes semelhantes aos de Félicia no primeiro dia do festival, em que o ambiente é visualmente guiado pela monotonia de tons de azul dos holofotes espalhados pelo espaço, e ouvido num formato quadrifónico, com quatro colunas voltadas para o centro. Numa mesa antiga de madeira está a artista colombiana que já colaborou com Julia Holter, fez instalações de design sonoro e para performances em museus e que iniciou a sua carreira musical com a sua mudança para a Europa – era engenheira civil na Colômbia. Propício ao espaço, Lucrecia expressou as suas experimentações surrealistas a partir duma estética de música ambiente electrónica, na qual combina a síntese, o sampling e harmonização vocal, pelo uso de loops. A sua sonoridade algo contemplativa, de desenvolvimento lento, recorre a timbres esbatidos (com samples revertidos, por exemplo) mas com uma sonoridade muito multicolor, jogando com os sons e camadas. Para alterar o som em cada compasso, a artista usou incessantemente as mãos para carregar ou rodar um qualquer botão, assim criando uma evolução gradual, mas lentamente. Foi dos concertos em que o artista melhor jogou com as dicotomias entre a harmonia e a dissonância, a regularidade e a irregularidade, havendo espaço para o corpo sonoro se construir e dissolver-se de forma repetida. A estética fez por vezes lembrar Ex-Machina, que tem banda sonora composta e produzida por Ben Salisbury e Geoff Barrow, o que é muito interessante: ao falar de temas como a consciência, o éter e a percepção – elementos concebidos pelo ser humano, inacessíveis sem a vida – constrói também instrumentais robóticos e aborda a inteligência artificial e a tecnologia, jogando com mais uma dicotomia, homem vs. máquina. À saída, os aficionados das máquinas e de música aproximaram-se da mesa de Lucrecia para ver a mesa cheia de cabos, os sintetizadores, teclados e espantoso gear da artista.

É pena, sim, assistir a espectáculos deste tipo com pessoas que falam incessantemente; a iniciativa de juntar públicos diferentes e manter a entrada livre é muito boa no sentido de dar a conhecer este tipo de artistas mais inacessíveis da maneira mais acessível. A falta de interesse – ou de noção – de parte da audiência é, infelizmente, desgastante. Desenganem-se quem acha que só acontece aqui: os públicos andam cada vez mais faladores.

 



Por falar em Geoff Barrow, passámos para Anika, apresentada pela organizadora pela sua vertente e background do jornalismo, evidentemente influenciador na maneira como se expressa ao nível lírico e musical, também. A artista, que já assinou projectos pela Stones Throw, apareceu num registo um pouco mais electrónico do que o conhecemos da sua discografia. Os seus instrumentais passam claramente por uma sonoridade vinda de Bristol, relembrando dub por vezes. Principalmente conseguimos sentir a influência de uma figura como o produtor dos Portishead, com quem Anika colaborou. Entre os beats em loop, com kicks muito fortes e linhas de sintetizador muito interessantes, a produtora e cantora trouxe um dos poucos concertos em que o formato canção foi privilegiado, visto que a maioria têm performances sem paragens, em que a música se desenvolve e passa progressivamente. Anika reavivou o interesse na parte visual, passando vídeos ao longo do espectáculo, com uma estética analógica, onde aparece na curadoria duma qualquer exposição que preparou, numa tela branca mesmo atrás de si. Mantendo a sua linha tímbrica/estética, entre as suas batidas, parece querer relatar histórias ou sentimentos naquele que deve ser o concerto mais poética, de maneira literal, do festival. Chegou a abordar directamente o conceito da edição deste ano do festival: o corpo. No registo mais lento e electrónico de Anika, pudemos sentir alguma distância dela, por vezes, mas não da sua música. A sua música assemelha-se por vezes à canção de protesto numa versão alternativa e actual. Termina com uma canção a voz e guitarra, e problemas na mão direita, pelo que interrompeu a performance e timidamente despediu-se.

 



Cindytalk é um dos projectos com actividade mais duradoura entre os convidados do Jardins Efémeros, já formado em 1982. Detentora de uma longa linhagem de colaborações e edições, experimentar está no seu ADN, passando pelo post-punk, electrónica ou música concreta.

Gordon Sharp apresentou-se apenas com computador e voz. Entre sons de samples e sintetizadores, o instrumental tratou-se de uma camada harmónica constante, que vai variando pelo constante uso de efeitos e sons electrónicos em movimento. Por cima encontrava-se Cindy que explorou os timbres que da voz pode retirar, pela alteração de posição do microfone, ou do trato vocal, ou da boca, expressando o desfasamento do diálogo e da razão. Assim, apareceu entre o caos do instrumental, em toda a sua teatralidade completamente ligada à sua experimentação e procura entre sons. A performance foi marcante. Apesar da longa duração da mesma, Cindytalk representou muito bem o que Sandra Oliveira nos confidenciou numa conversa informal pelo espaço de organização do festival: o Jardins Efémeros ganha muito – de maneira intencional – por trazer a um contexto urbano, de espaço público, artistas de nicho, normalmente fechados ou impostos a determinados espaços e eventos.

 



Group A fizeram, também, jus ao palco que lhes serviu de laboratório de experiências sonoras por pouco menos de uma hora. A complexidade dos sons e a profundeza dos mesmos fez-nos pensar na relevância e influência que o espaço tem na nossa percepção do que consumimos: pensar neste concerto num espaço pequeno seria bastante mais claustrofóbico que no Largo de São Teotónio, onde o duo japonês sediado em Berlim tocou de costas para a Catedral. De um desenvolvimento misterioso em que reinou a síntese sonora, o processamento de instrumentos em tempo real e, uma vez mais, a experimentação, a performance de Tommi Tokyo – nos sintetizadores, drum machines e voz que apareceu raramente e maioritariamente para sampling — e Sayaka Botanic – que toca violino, sampler e gravador de cassetes — quase se poderia dividir em duas partes. Uma mais suspensiva e obscura, sem ritmo, com incidência no ambiente; e outra na qual o ritmo é o centro e a adição e subtracção de percussões é que ditam o groove e movimento da música. Os instrumentais maximalistas (pela intensidade e complexidade tímbrica) sentiram-se e dançaram-se pelo público. Motivadas pelas correntes avant garde e a conceptualização artística central na produção, não se limitam criativamente e isso sentiu-se pelas várias correntes que abraçam na sua música.

Para fechar a noite de ontem, Nídia, uma das principais figuras da Príncipe, trouxe um set com a sua impressão digital lá espalhada, com batidas sincopadas a ditar os passos dados no NB, discoteca local, e samples relativamente variados a lembrar dancehall e kuduro.

 


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