[TEXTO] Vasco Completo [FOTOS] Rafael Farias e Fernando Carqueja
A avaria no autocarro não permitiu que assistíssemos à talk com Félicia Atkinson e Pedro Santos (Culturgest), nem ver muito da cidade que alberga o Jardins Efémeros. Foi pena, mas ainda temos o fim-de-semana pela frente. Mesmo assim, e depois de recebidos pela atenciosa equipa da organização do festival de Viseu que já vai na 8ª edição, explorámos um pouco do que se vai passando numa festa que puxa pelos cinco sentidos do corpo humano, com workshops, concertos, exposições e outros que integram música, cinema, culinária e artes visuais.
A corrida, consequência do elevado interesse na dinâmica dos Jardins Efémeros, deixou, ainda assim, tempo para observar exposições como Idade Maior da Vanda Rodrigues, que pretende retratar a 3ª idade vivida nos lares, e A Penny For Your Thoughts, organizada pela Amnistia Internacional e motivada pela consciencialização do mundo da prostituição. Ainda passando pelo Mercado de Sons e Letras e pela loja de apoio do festival, é difícil não gastar dinheiro numa qualquer revista, disco ou t-shirt dos Jardins Efémeros.
Antes de jantar ainda encontrámos Nicholas Bamberger. Durante os 5 dias do festival, o pianista e compositor suíço estará em diferentes espaços da cidade a tocar piano a solo. A necessidade de jantar não permitiu perguntar se tinha tocado uma adaptação de “Everything In Its Right Place” dos Radiohead. Fica para a próxima.
Bonito momento: ver um público tão diferente a sentar-se e a apreciar a serenidade e o virtuosismo na performance de Bamberger, que anda com um pé na música clássica e outro na electrónica.
Na pausa entre os eventos pré e pós-jantar, reflectimos sobre o conceito do festival nesta edição. A reflexão sobre o corpo num contexto cultural que está “cercado” pelo mundo virtual. Por estes dias, a tensão entre a presença física e online sente-se cada vez mais.
Félicia Atkinson, artista visual, música experimental e parte editora Shelter Press, apresentou um concerto a solo no Claustro da Catedral de Viseu. Com um pequeno sintetizador alemão (informação que obtivemos através de uma conversa informal com a artista no final), um controlador MIDI, uma mesa de mistura e um microfone, que é utilizado para instrumentos ou sons acústicos que são posteriormente samplados ou para cantar e falar, numa junção entre monólogo e spoken word. Falou na língua materna, o francês, e em inglês entre sons sintetizados, glitchs, algumas percussões e sons de ambiente, que tornam a sonoridade de Félicia bastante envolvente e quase de meditação. O seu trabalho de síntese associa-se facilmente ao do trabalho de fita da música concreta dos seus conterrâneos em meados do século XX e a disposição do som – 4 colunas viradas para o centro do Claustro – é completamente relacionada com a da música electroacústica. Além de nos dar uma total sensação de espacialização e de movimento do som, relembrou-nos como a presença do corpo é importante.
A performance foi única pela disposição peculiar da amplificação sonora, não passível de ser repetida. Nem precisamos de falar sobre a improvisação para pensar na presença física do corpo no consumo cultural. Nem este deve ser dado sem a componente do mundo real, nem a performance deve desconsiderar a possível criação de um momento irrepetível. A aposta em timbres sedosos, na componente harmónica, criou uma interessante tensão com a irregularidade e o inesperado da música da artista francesa. Fez lembrar uma guia de uma viagem espiritual ou meditação. A audiência observava com curiosidade o concerto, apesar de parcialmente alienada com a performance contínua de Félicia.
Uma pequena pausa antes daquele que viria a ser um dos concertos da noite. Entrámos na Catedral de Viseu, mesmo ao lado do Claustro, que se encontrava esfumada para receber os visuais de Marja de Sanctis. A lotação estava limitada aos primeiros a chegar, sendo que, tal como a organização avisou, este seria um dos concertos mais desejados do festival – existiam muitas pessoas que tinham percorrido muitos quilómetros só para ver Abul Mogard. Pedem-nos que respeitemos esses aficionados numa performance que se avistava emocional, intimista — palavras da organização. O compositor sérvio, que apresenta uma carreira curta mas importante, toca com sintetizadores criados por si, mas não o vemos: esconde-se por trás duma cortina escura, onde se concentra na criação de camadas glaciares de sons. O jogo entre dinâmicas e intensidades dá-se na junção entre timbres sintetizados, que fazem lembrar Valentin Stip e Moderat, por vezes. Mas a harmonia é o centro, o espectro sonoro dado pela aglutinação de camadas fez-nos receber as vibrações acústicas da Catedral sem qualquer possibilidade de ficarmos indiferentes. Efémero, sim… mas também inesquecível. Arrebatados por um concerto que expressava a transcendência – aliás, havia nos visuais um holofote que apontava para o tecto continuamente, como se de uma divindade se tratasse – não sabíamos como seria daqui para a frente…
Mesmo à saída da Catedral, Nástio Mosquito aguardou a conclusão do concerto do sérvio. O luso-angolano fez-se acompanhar de uma banda pequena, mas com muita qualidade. A DZZZZ Band é constituída por um baterista, um baixista – que varia entre o contrabaixo e o baixo eléctrico – e um teclista, acompanhado de dois Nord, um Korg e ainda o clássico Fender Rhodes. Responsáveis por trazer ritmos sincopados, o grupo segurou Nástio, que demonstrou a intenção declarada de fazer música com raízes angolanas mas sem descurar do experimentalismo nos instrumentais, na electrónica, sempre empurrando os limites entre géneros musicais. O artista multifacetado vai beber a várias fontes, não se prende à raiz e varia muito entre canções. Sim, o seu acompanhamento foi de luxo: grande qualidade técnica dos três músicos, sem qualquer excepção – em evidência aparecem os teclados virtuosos de João Gomes, teclista dos Orelha Negra. Mas a verdade é que Nástio Mosquito é o centro das atenções. A sua performance irrequieta, expressiva e intensa vem da dança, dos movimentos, da voz – que é executada livremente, aparecendo cantada, a fazer rap, spoken word, ou declamação – mas também do que diz. Carismático e teatral, não esqueceu a crítica social, o amor, a beleza literária, a comédia, assim passando a quem o ouve e vê uma grande porção dos espectros da condição sentimental humana. Não esqueceu o espírito utópico que se vive no Jardins, proferindo “hoje é para esquecer o telejornal. Hoje é para esquecer o dia-a-dia. Hoje é para sacudir o pó”. Vimos um dos melhores concertos da noite. Tem sido premiado e nomeado em eventos em espaços de renome pelo mundo, e agora é fácil de compreender o porquê.
E estávamos a chegar ao fim. A proximidade entre espaços ajudou-nos a assistir na íntegra a todos os concertos possíveis. O Jardins ganha muito pela forma como expõe os artistas: JASSS tocou nas costas da Catedral, no alto das rochas que fundam um dos principais monumentos de Viseu. Dando uso ao palco megalómano (merecido), Silvia Jiménez iniciou o seu live act com graves em crescendo. A sua electrónica agressiva vai buscar timbres ao glitch, com um design sonoro obscuro e abrasivo. Surge, entre os instrumentais ruidosos mas cativantes, a sua voz algo tímida, mas muito humana. É fácil associá-la a Arca e Nine Inch Nails na sonoridade, mas JASSS aglutina diferentes influências e universos sonoros. Entre os ritmos de club scene, africanos e sul-americanos, as raízes do punk e do hardcore, JASSS também procurou outros caminhos como o industrial, o experimental e o dub. Já com faixas lançadas pela Anunnaki Cartel, pela italiana Mannequin Records, pela Red Bull Music Academy ou até misturas para a Ninja Tune, a produtora é uma “filha” do metal e da electrónica que merece mais protagonismo e uma nova “casa”. Flying Lotus, queres o contacto da JASSS?