[TEXTO] Vasco Completo [FOTOS] Rafael Farias
Depois de uma data que elevou a electrónica experimental, o 3º (e último dia de reportagem do Rimas e Batidas) prezou pela variedade estilística. Sim, manter uma linha condutora faz sentido, mas também “educar” a pista/audiência por via da curadoria que é feita, juntando tudo numa salada cultural que serve para tantos gostos quanto os possíveis neste contexto.
O dia foi mais calmo em termos de eventos inteiramente dedicados à música, pelo que, uma vez mais, começámos o Jardins pelas exposições. E viu-se muita coisa: desde a acção de consciencialização do tráfico de mulheres promovido pelo Movimento Democrático de Mulheres, o relembrar do conceito desta edição com O Meu Corpo é o Meu Campo de Batalha, às mais derivadas formas de expressão artística no nº29 da Rua Direita.
Enquanto esperávamos pelos concertos, pudemos finalmente visitar a residência artística onde se encontravam André Gonçalves – compositor, produtor e criador dos sintetizadores ADDAC – e Casper Clausen – vocalista dos Efterklang e dos Liima. Já tinham colaborado anteriormente, mas esta residência permitiu uma nova abordagem à produção em que a transparência do processo criativo está em evidência, sendo que o espaço está aberto ao público bem no centro da cidade. Os autores, eles mesmos completamente centralizados, revelaram, em conversa com o Rimas e Batidas, que o pequeno estúdio evoluiu em 3 ou 4 dias de residência para um pólo de colaborações e junção entre os artistas que participaram no festival, uma surpresa já que a ideia inicial era apenas servir como laboratório para o trabalho conjunto de Casper e André. No final de cada dia, a ideia foi sempre apresentar na Praça D. Duarte parte do trabalho realizado na residência. E é curioso pensar como uma ideia inicial de programação ganhou progressivamente novas formas através do trabalho desenvolvido em residência. André explicou que não houve mudanças de direcção enormes, mas que a música foi progressivamente ganhando outros timbres, mantendo sempre a cor certa; Casper acrescentou a sua visão, descrevendo a sensação como algo semelhante a querer levar um barco dum porto a outro considerando todas as opções que o oceano tem.
Numa conversa descontraída com duas mentes sintonizadas e inspiradas, a dupla relatou como esta experiência foi reveladora, discutindo o inefável da música e como a música como linguagem pode ligar pessoas que não se entendem pela palavra ou outras formas de expressão. Também contaram a história de Nástio Mosquito e Nicholas Bamberger não se terem falado e terem simplesmente começado uma no piano. “Sem regras”, sublinhou André. Casper repetiu a mesma ideia imediatamente, deixando clara a sua concordância. O que pudemos ouvir no fim da noite de domingo foi algo entusiasmante e tocante, deixando válidas pistas para um possível futuro. Juntar artistas tão diferentes traz coisas novas e a beleza também esteve na variedade tímbrica que integrou um projecto que como o músico dinamarquês fez questão de frisar, necessita de espaço depois do processo criativo para descobrir enfim o que fazer com os 60 minutos de música acumulada nesses dias.
Imediatamente depois da excelente recepção e conversa com os ocupantes da residência artística, juntámo-nos à multidão para assistir ao Viseu Showcase, espaço para as bandas locais. Interessantes escolhas, uma vez mais celebrando a diversidade de vozes.
Os Volcano Skin começaram com uma abordagem interessante entre o rock e a electrónica e propuseram uma criação bastante livre em que o spoken word e a declamação de poesia (claramente evidentes entre as várias propostas artísticas do festival) estiveram muito presentes. Jogaram bem com as dinâmicas e souberam integrar o som do theremin. Ponto claro a favor.
A banda Galo Cant’às Duas tem uma ideia de performance que claramente funciona neste contexto. Energia, experimentação tímbrica com uma dezena de pedais de efeitos e intensidade na entrega. Na mesma linha do post-rock dos Paus, Quelle Dead Gazelle ou Galgo, aliaram a beleza harmónica às várias cores dos sons. A partir dos loops melódico e rítmico, diversificaram muito bem as dinâmicas. Muito bom.
Cru, puro e duro. Mas divertido, também. Os The Dirty Coal Train, inspirados nos anos 60, no cinema de série B e no DIY, vão buscar as raízes do punk e do garage. Sem pretensões, riff atrás de riff, lembraram-nos a espaços os Cramps e até os mais tardios Sonic Youth. Material do recente Portuguese Freak Show marcou a sua enérgica actuação que obteve efusivas reacções da plateia.
Os Basalto encerraram este showcase com instrumentais mais pesados, baseados nos graves. A aplicação da lentidão sempre deu uma ambiência muito interessante no metal. A roçar o groove metal, mas muito mais no doom ou stoner metal, com uma estética crua e boas variações rítmicas, demonstraram que os ingredientes estão no sítio.
Com tempo para viver um domingo com a cidade ainda agitada, embora menos povoada, aguardámos o concerto das Ectoplasm Girls no pátio do Museu Nacional Grão Vasco. Um projecto das irmãs Byrne em formato audiovisual que se baseia nos temas da morte e do onírico. Tocaram no chão, por cima dum manto que basicamente protegia os sintetizadores, sequenciadores, pedais de delay e leitores de cassetes, ferramentas que utilizaram durante a sua performance. A componente visual de cores psicadélicas e formas abstractas, na qual surgiu constantemente a cara duma criança que se assemelhava a um eclipse. Navegaram bem próximo do universo minimal repetitivo, entre o abstracto e a imperceptibilidade de sons reais, expressando precisamente o lado dos sonhos que as inspira. Ao jogo de repetição com o trabalho tímbrico juntaram o processamento de voz em tempo real, que eleva a estética sonora das Ectoplasm Girls a um nível técnico muito considerável. A influência do cinema, no entanto, não se encontra só na imagem, mas pressente-se também no dramático design sonoro de excelência destas irmãs suecas . Quem nos diz que se The Shining fosse feito em 2018 não teria as Ectoplasm Girls na banda sonora? Bem… na ausência de Kubrick, chamem Alex Garland ou Denis Villeneuve. Eles precisam de ouvir isto.
Antes de ouvirmos a apresentação rotineira de fim da noite de André e Casper, ainda nos faltava aquele que prometia ser um grande concerto. Os Mehriyan são um grupo iraniano que toca música típica do seu país. Compostos por Pedram Bolourchi, Soroush Kamalian e Mohammadamin Jahangiri, a banda foi uma das mais bem recebidas por todo o festival. Como já foi dito, o Jardins também foi bem representado neste dia, não só pela interacção entre estilos, géneros e formatos artísticos como na aproximação de culturas. Com Pedram no Tonbak (espécie de tambor) e na voz, Soroush no Kamancheh (semelhante mais próximo sendo o violino) e Mohammadamin no Santur (próximo do dulcimer) deram um excelente espectáculo à frente do Adro da Misericórdia, onde as pessoas os aplaudiram fortemente. A curiosidade aguçou o entusiasmo do público que se deixou levar por novos timbres e escalas musicais, pouco comuns no ocidente. O protagonismo foi dividido entre os músicos, demonstrando sem excepção mestria na execução dos seus instrumentos. Entre momentos bonitos de contemplação e outros mais dançáveis, a audiência rendeu-se ao espectáculo dos Mehriyan.
Para o ano as coordenadas serão certamente diversas, mas, temos a certeza, igualmente exigentes. Até lá.