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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 30/08/2022

A arte de sacar beleza do trompete.

jaimie branch: voar ou voar

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 30/08/2022

O ano de 2017 mudou muita coisa. Foi esse o ano de Fly or Die, marco indelével na vida de jaimie branch, da editora International Anthem e da cena free jazz de Chicago, que encontrou na trompetista uma nova artéria para lhe pulsar vida — de resto, e felizmente, algo que parece não cessar de existir no género: a liberdade de mutar, de romper com cânones. Fly or Die marcou, volvida uma década na qualidade de engenheira de som e de música de sessão, a afirmação de breezy branch como líder de banda e compositora, a sua estreia na International Anthem e consequente catapultar de ambas para as bocas da crítica especializada.

Fly or Die foi o capitalizar de uma carreira solidamente construída entre apoio a grande da cena de Chicago, como Ken Vandermark, Jeff Parker, Jeb Bishop e Chad Taylor, e não deixa de ter um travo agridoce ler o título do disco à luz das notícias da semana passada. Ainda assim, não há como não admitir que breezy estava cá para voar e fê-lo de forma sublime, elegante e premente. O primeiro tento da série, gravado num contexto live, é ritmicamente interessante e clínico na forma como dispõe a banda no espaço para, de forma simples, preparar os rasgos melodiosos do seu trompete; paralelamente, é também lugar de dissecação de todas as possibilidade sónicas dos instrumentos em jogo, ora em silêncios, ora em dissonância, sempre como atalho para as peças de branch, que soam familiares apesar de não se insinuarem a nenhuma expressão jazz em particular.

Foi, também, o primeiro contexto em que o encontro entre electrónica e orgânica se afirma na música de jaimie branch — um caminho que seria explorado de forma mais profunda, detalhada e arrojada no duo Anteloper, que formaria com Jason Nazary e que recentemente nos deu o álbum Pink Dolphins, sucessor de um EP, Tour Beats, e outro LP, Kudu. Curiosamente, este lugar que desenhou também contrastava com a sua figura de líder de banda, em que o dub colidia com a mais pura forma de improvisação, algo mais medido nos seus discos à frente de uma banda, que eram mais dirigidos (mas não constrangidos).



A série Fly or Die seria ainda revitalizada com uma reacção visceral à realidade americana, fazendo jus a algo que branch havia dito, em entrevista à revista britânica Wire, sobre o que considera ser free jazz e a forma como este parece renovar-se de forma constante: “Free jazz é o reflexo real dos tempos e de tudo o que está a acontecer. Devolve beleza ao mundo, vibra. Eu acho que funciona a um nível anatómico”. Como se o corpo social que habitamos se manifestasse em sublime cacofonia, elegantemente orquestrada e numa boa tensão de expressão individual pura e livre com uma procura incessante por uma ligação ao outro. Tudo princípios audíveis no trompete e nas peças de jaimie branch. Como reflexo, Fly or Die II foi também espelho do que levaria a América à comoção em 2020, algo muito claro na peça “prayer for amerikkka”, em que branch vocifera, “We got a bunch of wide-eyed racists (…) and they think they won this shit”, um claro desafio em que as origens políticas do free jazz, de luta de classes e libertação de minorias se tornam palavras de ordem.

Esta síntese era a zona de conforto de jaimie, onde passado, presente e futuro se encontravam, assim como o digital e o analógico, o orgânico e o electrónico, a sua voz e as suas influências. Não é por acaso que se notam a calma de Miles Davis na sua fase pós-bebop e o desenfreamento de Evan Parker no seu trompete, mas que acima de tudo se ouve a sua voz. E a própria o disse: “cada nota que eu dou é muito intencional. Quando toco, eu coloco tudo na mesa. Quanto maior o risco, maior a recompensa.”

Neste caso, a recompensa que recebemos, na forma de alguma da música mais premente que ouvimos em anos recentes, é imensurável. Também é a perda de jaimie “breezy” branch, que parte aos 39 anos, apenas com 15 anos de contributos numa carreira que parecia apenas ter começado.


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