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Fotografia: Ebet Roberts / Redferns
Publicado a: 28/10/2025

Partiu aos 83 anos um dos grandes gigantes da história do jazz.

Jack DeJohnette (1942–2025): um músico completo

Fotografia: Ebet Roberts / Redferns
Publicado a: 28/10/2025

Jack DeJohnette, que morreu a 26 de outubro de 2025, aos 83 anos, foi mais do que um baterista extraordinário: foi uma figura central do jazz moderno, um músico que desafiou limites, um criador de mundos sonoros que atravessou seis décadas de música sem nunca abdicar de uma funda inventividade. Pianista de formação, improvisador nato, compositor e líder, conquistou um lugar raro na história, não apenas pela técnica, mas pela forma como soube tornar a bateria num instrumento de diálogo, de cor, de arquitetura e até de contraponto e resistência. A notícia da sua morte em Kingston, Nova Iorque, vítima de insuficiência cardíaca congestiva, encerra a vida de alguém que nunca aceitou rótulos fáceis. “Sou um músico completo”, corrigiu ele, certa vez, quando um jornalista se referiu a si simplesmente como baterista. Hoje, essa frase soa como apropriado epitáfio.

Nascido em 9 de agosto de 1942, no South Side de Chicago, cresceu numa cidade em ebulição, marcada pela herança dos blues, pelo gospel das igrejas, pela soul emergente e pela modernidade do jazz. Filho de Jack DeJohnette Sr. e de Jeanette Wood DeJohnette, foi criado em grande parte pela avó, Rosalie Ann Wood, que obteve legalmente a sua custódia. Aos quatro anos começou a receber aulas de piano clássico, instrumento que nunca abandonaria e que moldou o seu sentido de harmonia e de estrutura. “Tive aulas formais de piano e ouvia ópera, country, rhythm and blues, swing, jazz, o que fosse. Para mim, era tudo música e tudo era grande”, explicou o músico na biografia que consta do seu site oficial. Em casa ouvia os discos do tio Roy, e ficava fascinado: “Eu era atraído pela música muito cedo… ouvia aqueles discos e ficava fascinado pela música mesmo antes de saber que aquilo era jazz”, relembrou DeJohnette numa entrevista em 2008. Na adolescência, descobriu a bateria e depressa percebeu que aquele instrumento podia ser mais do que um mero “metrónomo”: podia ser melodia, textura, argumento comático, ferramenta de improviso. Em Chicago absorveu também o espírito de liberdade da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), entendendo cedo que improvisar era como viver: “A ideia de improvisação está ligada à própria natureza da nossa existência. Não esperamos que a vida evolua sem mudanças e nunca sabemos o que está à esquina — porque haveria a música de ser diferente?”, questionou um desafiante Jack DeJohnette em conversa com Phillip Clark, do britânico The Guardian, no Verão de 2000.

A mudança para Nova Iorque, em 1965, foi quase acidental. Viajava para um fim-de-semana, entrou no histórico Minton’s Playhouse, em Harlem, e foi contratado de imediato pelo organista John Patton. Nunca mais regressou. Decidiu que o seu lugar era ali, no centro do jazz, e que a bateria seria o seu destino. Rapidamente ganhou espaço no circuito nova-iorquino, tocando com Jackie McLean e outros músicos do hard bop e da vanguarda. Um ano depois, Charles Lloyd convidou-o para o seu quarteto, ao lado de Keith Jarrett e Ron McClure. O grupo tornou-se um fenómeno inesperado: jazz misturado com psicadelismo, concertos em festivais de rock, uma legião de jovens que descobria na improvisação a mesma energia que no rock, como tão bem demonstrado no classico Forest Flower, editado no mesmo ano em que os Beatles coloriram o mundo com Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Para DeJohnette, foi a primeira plataforma internacional e, sobretudo, o início da parceria com Jarrett, que se prolongaria por meio século de prolífica actividade discográfica.



Foi nesse contexto que DeJohnette chamou a atenção de Miles Davis. Em 1968, Tony Williams abandonou o quinteto de Davis e DeJohnette foi chamado a ocupar a cadeira da bateria. A sua entrada coincidiu com um momento de viragem radical liderada pelo visionário trompetista: Miles procurava fundir jazz, rock e funk, abrindo caminho a uma nova era elétrica. Foi nesse contexto que o então recentemente contratado baterista participou em discos fundamentais, entre eles Bitches Brew (1969), reconhecida obra-prima do que viria a ser descrito como “jazz de fusão”. “Jack DeJohnette dava-me um groove profundo sobre o qual eu adorava tocar”, afirmaria mais tarde o próprio Miles Davis. O New York Times resumiu, no seu obituário, que DeJohnette foi “um baterista de adaptabilidade ilimitada, que trouxe tanto poder trovejante como nuance pictórica a cada conjunto de que fez parte”. O seu estilo era propulsivo e melódico, inventivo em timbre e textura, espalhando os ritmos por todo o kit, criando ostinatos inesperados e um estalo inconfundível na caixa, reiterou igualmente a DownBeat no seu recentemente publicado texto de homenagem. Ele próprio explicava: “Quando toco, entro num estado alterado, num modo de cabeça diferente. Ligo-me ao meu eu superior, à biblioteca cósmica de ideias”. Essa dimensão quase espiritual fazia dele mais do que um sideman: era parte da arquitetura da música qualquer que fosse o contexto em que se inserisse.

A sua carreira a solo começou cedo, com The DeJohnette Complex (1968), álbum que já mostrava a sua recusa em separar papéis: bateria, piano e melodica conviviam como se fossem extensões de uma mesma voz num registo em sexteto em que colaboraram outros gigantes como Bennie Maupin, Stanley Cowell, Miroslav Vitous, Eddie Gómez e Roy Haynes. Nos anos 1970, DeJohnette liderou os ensembles Compost, New Directions e, sobretudo, Special Edition, projecto que se tornaria central na sua vida durante décadas. Era um grupo em constante mutação, por onde passaram músicos de elite como Chico Freeman, David Murray, Arthur Blythe, entre outros. “Special Edition tornou-se o seu veículo principal como líder… e um modelo para a mistura de progressismo e groove intenso que caracterizaria a sua música”, garante a DownBeat. Como líder, era exigente mas generoso, criando uma verdadeira escola. Muitos jovens músicos encontraram em DeJohnette não apenas uma oportunidade, mas uma orientação estética: aprender a respeitar a tradição e, simultaneamente, a ousar ultrapassá-la.



Na mesma década de 1970, Jack DeJohnette também cimentou uma sólida relação com a ECM Records. Manfred Eicher reconheceu nele um explorador incansável de espaços sonoros. Álbuns como Pictures (1976), em que tocava também piano e órgão, ou Oneness (1997), onde a música adquiria dimensão quase ambiental, mostraram como a sua estética se encaixava na perfeição no universo contemplativo da ECM. “The DeJohnette Complex demonstrou que a estética de DeJohnette era, de facto, deliciosamente complexa… e, depois de deixar Davis, foi contratado pela ECM”, sublinhou agora o The Guardian. Para esse justamente celebrado selo discográfico gravou com John Abercrombie, Jan Garbarek, Bill Frisell, Pat Metheny, e construiu uma obra em que a bateria era voz mas também silêncio, cor e espaço. A ligação com a ECM, no entanto, não foi meramente contratual: Eicher foi cúmplice e parte activa de uma parceria que moldou para DeJohnette uma imagem de compositor e improvisador de largo espectro.

Nos anos 1980, a consagração de DeJohnette veio com o Standards Trio, formado com Keith Jarrett e Gary Peacock. Durante mais de trinta anos, o trio percorreu o mundo e gravou dezenas de discos, mostrando que o repertório clássico do jazz é uma fonte inesgotável de invenção. Em Standards Live (1986), Changeless (1987) ou Tokyo ’96, pode ouvir-se como DeJohnette transforma cada standard em território novo. “Eu tinha de tocar com a subtileza que a música exige”, explicava. E essa subtileza convivia com explosões rítmicas, com silêncios que davam espaço aos companheiros, com uma troca de ideias incessante com Jarrett e Peacock. Não era simples acompanhamento: era mesmo uma criativa conversação. O trio tornou-se quase uma instituição e, ainda assim, manteve sempre uma genuína frescura. Para muitos, foi o ensemble que melhor exemplificou a arte da improvisação colectiva.



Mesmo com a estabilidade desse trio, DeJohnette nunca parou. Continuou a liderar, criou o selo Golden Beams Productions, gravou como pianista e lançou-se em novas colaborações. Um trio com Gonzalo Rubalcaba e Ron Carter rendeu-lhe um Grammy em 2018 por Skyline. Reuniu-se com Ravi Coltrane e Matthew Garrison, filhos de John Coltrane e Jimmy Garrison, em formações que cruzavam gerações e que resguardavam o peso da história. No quarteto Hudson, ao lado dos seus vizinhos no vale do rio que atravessa Nova Iorque, John Scofield, John Medeski e Larry Grenadier, explorou o legado da música popular americana. Trabalhou ainda com Wadada Leo Smith, George Colligan e Joel Harrison. Essa abertura constante prova que nunca se quis fechar num cânone. “Ainda estou a aprender”, dizia em entrevista ao Jazz Weekly já neste milénio, sublinhando que a música lhe exigia sempre humildade e reinvenção.

Os reconhecimentos oficiais chegaram: Grammys, o título de NEA Jazz Master em 2012, e a eleição para o Hall of Fame da DownBeat já em 2025, como o 176.º membro, distinção que será oficializada no número do próximo mês de Dezembro da vetusta revista americana. Mas mais importantes foram os reconhecimentos implícitos: a reverência dos pares, a gratidão de sucessivas gerações de músicos. “Ele era mais do que um baterista de jazz — a sua impressionante amplitude fazia dele uma força quase sobre-humana na música”, afiançou ainda Philip Clark, do Guardian. Essa definição resume todo o seu profundo impacto.

Jack DeJohnette manteve-se ativo até praticamente ao final. Gravou discos meditativos, colaborou com jovens músicos, apresentou-se em público sempre que a saúde permitiu. Morreu rodeado de família e amigos próximos. E deixa uma discografia vasta, que vai de Bitches Brew às gravações com Keith Jarrett, dos discos na ECM às aventuras como líder, um legado que não se mede em números mas em influência vasta. Para DeJohnette, cada peça da bateria era “um ser musical em direito próprio”. Cada improviso era reflexo da vida.

O baterismo de Jack DeJohnette também transcendeu o universo estrito do jazz para exercer uma influência marcante no hip hop e noutras vertentes da música dita urbana. No site WhoSampled constam diversos exemplos em que o seu particular jogo rítmico serviu de matéria-prima para produtores atentos à textura, ao groove e à imprevisibilidade. Alguns exemplos, o tema “Minya’s the Mooch”, do álbum New Rags de Jack DeJohnette’s Directions editado pela ECM em 1977, foi samplado pelos A Tribe Called Quest no clássico “Buggin’ Out” (1991). Há outras faixas que aparecem como fonte de samples, reflectindo como os grooves e acentos únicos de DeJohnette capturam a atenção de produtores de hip hop que procuram algo mais do que simplesmente um som de bateria genérico. Essa transferência de linguagem — do jazz ao hip hop — reflecte a permeabilidade entre os géneros e como elementos rítmicos “jazzísticos” se incorporam na cultura do beatmaking: DeJohnette tornou-se fonte de inspiração para artistas como Erykah Badu, J Dilla ou The Gaslamp Killer, que encontraram “combustível” rítmico, mas não só, na sua vasta discografia. Madlib também samplou Time & Space, trabalho de 1973 de DeJohnette com Dave Holland. Que o produtor visionário tenha ido ao encontro da música do baterista num álbum da sua aclamada série Medicine Show a que chamou Advanced Jazz já diz tudo sobre o impacto que o histórico baterista teve na última grande invenção musical da América negra.



Para além das evidências de sampling propriamente ditas, a influência de DeJohnette sobre a geração de produtores e bateristas de hip hop pode também ser vista através da sua abordagem performativa. Questlove, o icónico baterista dos The Roots, definiu DeJohnette como “uma força imprevisível e altamente criativa”, garantido que conseguia provocar em si “uma reação única e empolgada”, e afirmando ainda que o baterista veterano o fazia reagir de modo diferente e o entusiasmava de tal forma que tocar com ele era “como conduzir a 130 km/h de olhos vendados”. Questlove declarou igualmente que percebe na bateria de DeJohnette uma conexão “africana” no modo como respondia instrumentalmente — “posso dizer que ele consultou muitos bateristas africanos”, comentou —, e que os acentos que DeJohnette colocava por detrás do que tocava o obrigavam a tocar de forma diferente. Essa leitura revela porque os produtores de hip hop, que utilizam sampling como ferramenta de diálogo com o passado, encontraram no baterismo de DeJohnette não matéria simples para repetir em loop, mas um gesto rítmico carregado de tensão, de cor e de possibilidade. A imprevisibilidade rítmica de DeJohnette — quase como se ele tocasse o oposto do que estamos a pensar — transformou-se numa qualidade valorizada no hip hop, onde a surpresa e uma relação particular com o tempo rítmico são elementos centrais. 

A verdade é que ao escutá-lo com máxima atenção não se ouvia apenas um baterista. Escuta-se sobretudo uma filosofia. Escuta-se a Chicago dos anos 50, a Nova Iorque de 1969, o silêncio lírico da ECM ao longo de décadas, o lirismo indomável do trio com Jarrett que reenquadrou incontáveis standards. Escuta-se um homem que acreditava que improvisar era existir. E que provou, ao longo de mais de seis décadas de insuperável carreira, que a música pode ser tradição e invenção, raiz e cosmos, memória e futuro. A sua distinta voz ressoará sempre que alguém ousar tratar o jazz não como fórmula, mas como vida em movimento.


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