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Publicado a: 17/04/2017

J. Cole: Há espaço para profetas no hip hop

Publicado a: 17/04/2017

[TEXTO] Samuel Pinho [FOTO] Direitos Reservados

Jermaine Cole encabeça a lista de grandes artistas que padecem de um fenómeno bem actual, talvez típico do imediatismo que tudo assola: o subvalorizar. É certo que nunca existirá um medidor de qualidade universal, nem instrumento que quantifique o sucesso de forma unânime. Embora existam sinais que nos permitam balizar o reconhecimento conferido a um ou outro artista, o pleno consenso em torno de alguém é uma meta de dificílimo alcance.

No trono do hip hop, tem-se sentado um rei que não dá mostras de querer largar o ceptro: Kendrick Lamar reforça a sua posição a cada single que liberta e a cada álbum que lança. É, arrisco dizer, o rapper que mais concórdia gera em torno de si próprio, gozando hoje de uma harmonia que há muito não se via no género.

 



Porém, não há quem me demova da crença de que fosse K. Dot rei numa outra era, J. Cole teria direito a um trono só seu. Mas isso são favas para outra refeição. Ao que sabemos, então.

Filho de mãe alemã e pai americano, corria 1985 quando Jermaine Cole nasce num hospital de campanha americano, em Frankfurt. Antes de completar um ano, e depois de abandonado pelo pai, move-se com a mãe para Fayetteville (Carolina do Norte). Consta que aos 12 anos já articulava rimas e aos 15 tinha cadernos cheios: não de desenhos, mas de versos. A transbordar lírica por cada poro, faltava a Jermaine a cama onde deitar os versos: os ritmos, as sonoridades, a música. É aqui que a coisa começa a pautar por diferente: sem medos, expõe a questão à mãe. Depois de muito debate, é-lhe oferecida uma drum machine e daí nunca mais parou, passando todo o tempo livre a criar melodias e a moldar o estilo característico que é hoje só dele.

A passagem pelo mundo universitário deu-se – pode dizer-se – de forma estrondosa: ingressou na St. John’s University (Nova Iorque) com bolsa, tendo-se graduado magna cum laude (com menções honrosas). A escolha da universidade não é inocente, tendo recaído sob Nova Iorque por ser este o coração da indústria musical.

 



Em 2009, é o 1º artista a ser recrutado pela Roc Nation de Jay-Z, que se rendeu ao rapper depois de ter escutado o single “Lights Please”. No ano seguinte, já contava com 3 mixtapes: The Come Up (2007), The Warm-Up (2009) e Friday Night Lights (2010). Aos LPs já lá vamos. Diz-se influenciado por lendas como Nas, Tupac ou Ice Cube, e mesmo que não assumisse tais referências, o storytelling é – indubitavelmente – o ponto de contacto mais manifesto entre Cole e os rappers que aponta como exemplos.

A verdade é que já o classificaram de ser dono de um estilo chato, mesmo enfadonho e isso explica-se bastante bem: o flow em que Jermaine muitas vezes embarca, é pouco dado ao groove a que o género nos vem habituando, sendo isso fatal para um rapper que é famoso, embora se recuse a assumir o estatuto de celebridade. Não que a sonoridade seja mais importante que o conteúdo: não é. Mas Cole é dono e senhor de um estilo muito próprio, nem sempre agradável à primeira audição.

O tom profético, quando não se faz acompanhar por uma sonoridade igualmente cativante, pode comportar um peso e dimensões nem sempre desejáveis; menos ainda para quem espera que o hip hop se assuma como exercício de libertação, que atinja o intelecto com a mesma facilidade com que atinge as ancas. Ao basear os versos única e exclusivamente nas próprias experiências, Cole engrossa as fileiras de uma tendência que pauta por escassa actualmente e que, por isso mesmo, tem coleccionado cada vez mais seguidores: o realismo lírico, o só-relatar de experiências pessoais, efectivamente vividas e nunca puramente inventadas.

 



Tomemos “Neighbours”, faixa inscrita no último trabalho 4 Your Eyez Only, como exemplo: a música é inspirada num incidente ocorrido no ano passado, mais concretamente envolvendo a casa que o rapper havia alugado para utilizar como estúdio, na Carolina do Norte. O espaço foi alvo de busca por parte das forças de intervenção (S.W.A.T.), depois de alguns vizinhos terem denunciado que a casa servia para produção e venda de droga. Depois das devidas buscas, nada foi encontrado.

“I guess the neighbors think I’m sellin’ dope, sellin’ dope

Okay, the neighbors think I’m sellin’ dope, sellin’ dope

Sellin’ dope, sellin’ dope, sellin’ dope

Yeah, I don’t want no picture with the president

I just wanna talk to the man

Speak for the boys in the bando

And my nigga never walkin’ again

Apologize if I’m harpin’ again

I know these things happen often

But I’m back on the scene

I was lost in a dream as I write this

The team down in Austin

I been buildin’ me a house

Back home in the South, ma Won’t believe what it’s costin’ And it’s fit for a king, right?

Or a nigga that could sing

And explain all the pain that it cost him

My sixteen should’ve came with a coffin

Fuck the fame and the fortune

Well, maybe not the fortune

But one thing is for sure though

The fame is exhaustin’

That’s why I moved away, I needed privacy

Surrounded by the trees and Ivy League

Students that’s recruited highly

Thinkin’ “You do you and I do me”

Crib has got a big ‘ol back ‘ol yard

My niggas stand outside and pass cigars

Filled with marijuana, laughin’ hard

Thankful that they friend’s a platinum star (…)”

Para os mais atentos ao seu percurso, o estilo utilizado não surpreende: a construção de narrativas coesas é o traço predominante no jogo lírico de Cole. Porventura, também é esta a principal característica da forma de fazer música de outra grande referência: Kendrick Lamar. A renúncia ao braggadocio em prol da transmissão de mensagens emocionalmente fortes, com elevado teor social, visando sempre um acontecimento passado, presente ou futuro, do qual devamos retirar lições.

Em fabrico, parece estar um álbum conjunto entre Cole e Kendrick. Os rumores remontam a 2011 e vêm sendo alimentados por um sem número de outros artistas ao longo do tempo, com a última manifestação a estar inscrita declarações de Ab-Soul, proferidas em Dezembro passado: “There is (an album). They got it. They got something in the works. They been working on that motherfucker for awhile”.

E no que a álbuns e palmarés concerne, J. Cole é dono de um invejável cardápio: o último álbum (4YEO), em que também produz 5(!) faixas, foi o 3º maior lançamento de 2016. Na primeira semana, vendeu 492,000 unidades, só ultrapassado por Lemonade (Beyoncé; 653,000) e Views (Drake; 1,040,000). Como se tal não bastasse, o álbum atingiu platina há uns dias, o que nos Estados Unidos é o equivalente à venda de 1 milhão de cópias. De resto, é a 4ª vez que o talentoso rapper e produtor oriundo de Fayetteville atinge tal meta, já o tendo conseguido com todos os anteriores álbuns. Porém, fazê-lo por duas vezes com álbuns sem colaborações externas (2014 Forest Hills Drive e 4 Your Eyez Only), só lhe atribui o lugar que é dele: o de excepção à regra.

Para a História, já consta o registo de um artista que tem desafiado as lógicas da indústria, contrariando prognósticos e combatendo estereótipos. A meu ver, mais que o desejo de atingir do reconhecimento pessoal – e da posição de mero ouvinte – quase é possível antever um propósito mais nobre: sopra um bafo de introspecção, essencial a toda a progressão.

Convida-nos a olhar para dentro, com a humildade de quem não se vê maior que os seus semelhantes. E no mundo do hip-hop, tomado de assalto por fenómenos efémeros e egos inflamados, sabemos o quão raro é encontrar um storyteller de excelência, com a qualidade que Jermaine nos garante.

Podem ver o documentário no site da HBO e ouvir o último álbum de J. Cole em baixo:

 


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