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Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 20/06/2023

Toque para toda a obra.

Iúri Oliveira: “Sou um amante de cenas graves, sons amadeirados. Pele e madeira faz-me mesmo tremer a espinha”

Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 20/06/2023

“Na dúvida, mais vale seguir os sonhos.” A frase não nos é dita por Iúri Oliveira em nenhum momento, mas resume bem a hora e meia de conversa que nos concedeu em Janeiro passado, por alturas do lançamento de “Casa”, o seu segundo tema em nome próprio. O single que contou com Manuel Rocha na voz sucedeu a “Habitat” e oferece continuidade a essa canção inaugural, que teve Edu Mundo enquanto convidado.

Antes de se atirar à edição das suas próprias composições, o percussionista passou alguns anos a ajudar outros artistas a atingirem patamares de excelência, no que a secções de ritmo diz respeito, quer fosse ao vivo e em cima dos palcos, quer fosse dentro de estúdio durante gravações. Sara Tavares, Dino D’Santiago, Branko, Ana Moura, Lura, Criatura ou até mesmo Madonna são apenas alguns exemplos de uma longa lista de nomes com quem Iúri já colaborou, depois de, em 2015, se ter despedido da empresa onde trabalhava para passar a viver exclusivamente da música. Ou a viver a música. O músico não esconde a paixão que o move, nem a determinação que o guia quando conversa longa e detalhadamente sobre o seu incrível percurso.

Nesta entrevista, o multi-instrumentista de Caldas da Rainha fala-nos sobre as cores que encontra no som e recorda alguns episódios marcantes de um trajecto recheado, mas que parece ter ainda muito mais para dar. Se estão a ouvir um disco de produção nacional neste momento e algo na camada rítmica vos chama a atenção por estar executado com alma e de forma imaginativa a probabilidade de ter sido tocado por Iúri Oliveira é muito alta.



Tu tocas um instrumento — ou um conjunto de instrumentos — muito específico. Como é que chegaste até aí? Foste tu que escolheste a percussão ou foi a percussão que te escolheu a ti?

Começaste logo com uma pergunta daquelas peculiares [risos]. Eu nasci nas Caldas e, na altura, lembro-me de haver… É aquele clássico, sendo eu filho de pai angolano e mãe portuguesa. Eu estive a tocar com o Bonga na Passagem de Ano e aqueles clássicos traziam-me à cabeça memórias de estar na carrinha do meu pai — ele é pedreiro — e de ouvir aquelas cassetes clássicas do Bonga. Para mim, aquilo era o normal da música. Ouvia as cassetes dele, do Rui Mingas, da Cesária… O instrumento da percussão, veio daquela coisa de querer percutir em algo. Depois, “Tu devias começar a tocar bateria ou percussão um dia destes.” Lembro-me de ter ido para a fruta trabalhar e com os primeiros trocos que ganhei fui a uma loja de música nas Caldas, a Sinfonia, que já não existe e chegou a ser uma loja, assim, mítica. Comprei lá uns bongos. Aquilo fazia imenso sentido na minha cabeça.

Tinhas que idade?

Eu tinha 13 anos.

Pois. É quando se vai trabalhar para a fruta para se ganhar uns troquinhos.

Exactamente. Fui para ganhar uns trocos. É um clássico. E claro, tirando aqueles tambores que às vezes se comprava nas feiras e não sei quê, eu já achava imensa piada à arte africana. Depois havia as bandas da escola, aquelas coisas normais.

Então és autodidacta?

Comecei como autodidacta, lá está. No 12º ano, apanhei aquela fase…

Mas ajuda-me a situar: em que ano é que tu nasceste?

Eu sou de ’89. No 12º ano tive aquela crise normal de “o que é que eu quero fazer?” Havia aquela coisa do “tens que ter um canudo e tens de ir fazer uma licenciatura.” Os meus pais sempre me disseram: “Filho, o que tu quiseres ser, os pais vão tentar, dentro dos nossos possíveis, ajudar-te.” Eu até costumo dizer que vim de jangada — tenho um pai pedreiro, uma mãe empregada doméstica, então era sempre muito complicado. Lembro-me do pânico dela quando: “A mãe não te consegue pagar uma faculdade em Lisboa. Se calhar tens de ir trabalhar primeiro ou tens de trabalhar à noite. Tens de arranjar uma maneira.” Eu dizia-lhe: “Mas eu não sei se quero ir para a faculdade.” E ela: “Mas vê lá. Se calhar tens de ter um canudo, porque as pessoas sem canudo não são ninguém.” Isto é um clássico da adolescência. Lembro-me de ter ido um dia tocar num concerto — olha, até foi aqui, em Santa Cruz — e estava lá uma menina, que agora até foi mãe e que é a namorada do Mauro Ramos, o baterista dos Amor Electro. É a Daniela Pinheiro. Ela disse-me assim: “Iúri, tu devias de seguir música, pá! Porque é que tu não segues música?” E eu: “Porque cá, em Portugal, já pesquisei e não existe o meu departamento. Eu queria música latina.” Sou um apaixonado por música latina, apesar de ter ascendência angolana. Ela disse assim: “Epá, pesquisa! Se calhar nem tem de ser cá em Portugal, já pensaste nisso?” E eu: “Ah, pois.” Lembro-me de andar a pesquisar durante esse ano e de ter encontrado uma escola em Londres.

Terias 18 anos?

19. Isto foi em 2010, acho eu. Essa escola em Londres tinha um departamento de música latina e eu fui mesmo naquela onda. Na altura era nadador salvador em Santa Cruz e fazia várias praias. Lembro-me de pesquisar pela escola e de trocar uns e-mails. “Vai abrir o ano lectivo e tens de vir fazer uma audição, para vermos qual é o teu nível. Depois podes começar o curso.” Pensei, “fácil!” — “Então olhem, dia 15 de Setembro estou aí.” E eles: “Ok. A gente espera por ti.” Fui no dia 10, sem casa sem nada. Arranquei só com os trocos da praia, já com aquela ideia de que ia ter de arranjar um trabalho lá. Tinha uma tia na Bélgica que conhecia uma senhora que me conseguia dar guarida para três dias e consegui arranjar um quarto após esses três dias. Fui à escola no dia 15 e até cheguei lá primeiro que o professor. Liguei-lhe, disse que já estava na escola, e diz-me: “Estou um bocado atrasado. Mas tu vieste mesmo de Portugal?!” E eu: “Não lhe disse que vinha?” Ele disse-me: “Então já aí vou!” E pronto, estive lá durante um ano e tal, fiz um curso de percussão latina e brasileira. Trabalhava ao mesmo tempo. Tinha escola do meio-dia às seis da tarde e limpava escritórios das quatro e meia da manhã às nove da manhã, em Green Park. Há lá um edifício. Lembro-me de tomar lá o pequeno-almoço, que eram os restos do que a malta não petiscava no dia anterior nas salas de reuniões. Chegava lá, comia e limpava esses escritórios. Depois ia para a escola. Arranjei lá um contacto, já não me lembro de quem, mas fazia uns biscates a dar serventia aos fins-de-semana. À noite, quando havia, tinha concertos. Mas não comecei a dar concertos logo ao início, porque o meu professor estava ainda a ver qual é que era o meu nível. Então fazia de taxista naqueles rigshaws. Andava lá a levar malta de um lado para o outro. Até que houve um dia em que o meu professor me disse: “Já vi que tu não estás aqui a brincar. Tu estás a sério nisto. Vamos fazer uma coisa. Vou aumentar as tuas aulas, arranjamos um pacote especial para ti, e vens tocar para a minha banda. Tu prestas-me serviços a mim e eu faço-te um desconto nessas aulas. Portanto não recebes dos concertos. Recebes em aulas e em descontos.” Eu disse-lhe: “‘Bora! Estou dentro!” Depois, quando vim de Londres, o que é que acontece? Ao chegar à Zona Oeste senti um choque.

Eu quero ouvir o resto da tua história, mas entre a altura em que compraste os bongos e o momento em que vais para Londres tu passaste por bandas de escola?

Sim.

Em que tipo de contextos é que estavas a tocar?

Estive numa orquestra, que é uma orquestra da zona das Gaeiras. Também tive umas participações numa orquestra de Óbidos. Mas era tudo super-autodidacta. Lembro-me de devorar uns álbuns de Phil Collins e de Santana, que eram álbuns que viviam muito de percussão e tinham percussionistas incríveis. Pesquisava muito e toda a informação que eu conseguia agarrar daí era a informação que eu levava para essas bandas. Eu estava numa orquestra ligeira de jazz, depois tinha aquelas bandas clássicas de escola, em que se tocavam clássicos de rock e não sei quê. Eu tentava sempre esgueirar-me com meia dúzia de instrumentos.

E tu lias pautas de música nessa altura?

Lia, porque nós, no 5º e 6º ano, tínhamos música na escola.

Isso deu-te as bases?

Exactamente. Na minha escola, havia uma coisa que era o Clube de Música, extra-curricular, para quem quisesse. Eu sempre quis ir e lembro-me de, nesse clube, tocar metalofone, marimbas e outras percussões. Eu tinha os mínimos “olímpicos” para poder ler. Na orquestra tive de ter solfejo e aquelas coisas todas que te ajudam a ler. Essa foi a bagagem que eu levei de cá. Quando cheguei a Londres, perguntam-me como é que estou de leitura. “Não sou o melhor leitor, mas eu faço-o.”

Tu procuras Londres porque tens uma paixão por música latina.

Exactamente.

Na carrinha do teu pai ouvias Bonga. De onde é que vem isso da música latina? Ouvia-se música latina nas Caldas da Rainha?

Olha, não sei. Acho que era a cena do instrumento, da conga.

Então quando falas em música latina, falas no Ray Barretto, no Tito Puente, na Fania Records e nessas coisas todas.

Claro, claro, claro. E Buena Vista Social Club, Chucho Valdés… Isso fazia montes de sentido para mim. Depois disso tudo, eu começo a ver que tenho uma paixão por música latina, mas gosto de ir buscar influências a tudo e mais alguma coisa, que é o que eu faço hoje em dia no meu trabalho. A minha base é música latina. Eu via aqueles percussionistas todos e pensava, “eles têm de ter uma base, tem de haver qualquer coisa que…” Tu notavas que existia uma base. E notavas quando é que era um percussionista brasileiro, quando era um cubano ou quando era um percussionista daqueles mais pop. Nota-se a linguagem. E todos eles têm a base latina. Então pronto, “é por aqui que eu tenho de começar.”

E tu quando dizes latina, na verdade dizes afro-latina, não é?

Exactamente. Afro-latina. Imagina, se eu visse um percussionista da Guiné ou dos Camarões, que tinha aquela base da música mandinga… Eu considero-o percussionista, mas tem um som muito específico, não tem um som mais geral. Pensei: “Se um dia fosse músico, não gostava que alguém me metesse de lado por ser alguém muito específico numa coisa. Tenho de poder agarrar aqui mais algumas coisas.” Como o saber não ocupa lugar, eu sempre respirei isto tudo. Lembro-me de, na altura em que vim de Londres — e pegando ali naquela parte da história em que tinha ficado —, volto às Caldas da Rainha e percebi, “eu não me vou safar na música aqui, agora.”

Isso por volta de 2012?

Exactamente. Por aí. Pensei naquilo. “Como é que eu vou fazer?” Eu sempre fui desportista toda a minha vida, nadador mais concretamente. Tudo o que tivesse a ver com água, eu adorava. Na zona de Rio Maior, que fica a 25 minutos das Caldas, havia a faculdade de desporto, onde eu já lá tinha dois ou três amigos. “Iúri, porque é que não vens aqui tirar aqui um curso? Tens aqui um curso de Desporto de Natureza, que é único no país.” Basicamente, eu passava a semana a escalar paredes, a surfar, íamos fazer raides a montanhas e ficávamos lá quatro dias, fazíamos canoagem… É claro que tinhas de levar com Estatística ou Anatomia em algumas alturas do semestre. Então fui tirar a licenciatura e pensei: “Vou ser professor de desporto e músico como hobby.”

Não me parece mau. plano…

Pois não. Está tudo certo. “Acabo as aulinhas e vou dar uns concertos onde der.” Eu tocava numa banda numa zona ali ao pé, na Benedita. Lembro-me de ter lá alguma família, malta muito engraçada, e lembro-me deles me mostrarem… “Iúri, tu vais gostas disto, disto e disto!.” Essa foi uma página da minha vida em que eu, de repente, “uau!” Eles mostram-me um álbum de Pat Metheny, aquele que tem um tema chamado “We Live Here”. E eu: “Hey! O que é isto?!” Ele tinha na percussão o Armando Marçal. Que álbum! “Então agora ouve este.” Era o Speaking of Now, que tinha o Richard Bona. “Quem é este baixista?! Quem é o Richard Bona?!” Vou ver e, a partir dali, fiquei… “Uau! E agora? Isto é um mundo.” Fui parar a uma data de coisas, andei a mergulhar em álbuns, passava o dia a sacá-los, a ouvi-los e a ver quem eram os músicos. Eu já nem ia pela música, eu ia mesmo atrás de certos músicos. Se gostasse de um, ia pesquisar o trabalho dele.

Tu dominaste, desenvolveste e compreendeste as regras do tempo no ritmo? Para um não-músico, como é o meu caso, é uma coisa abstracta, essa coisa do tempo se poder dividir em ritmos mega-complexos em que nem dá para abanar a cabeça, porque o beat não cai no sítio em que estamos à espera. Como é que entraste nessa parte de compreender os poli-ritmos e etc.? Eu acho que a percussão tem dos instrumentos mais difíceis, porque tu, às vezes, tens de comandar quatro membros ao mesmo tempo e cada um na sua direcção. Eu não seria capaz de fazer isso.

Exacto. A mim, havia um monte de coisas que faziam sentido. Quando estava em Londres, às vezes o meu professor estava a fazer claves e eu sabia o que é que ele estava a fazer, também o sabia fazer, só não sabia o nome nem o porquê de se fazer aquilo. Havia certas coisas que eu sabia fazer porque…

Desculpa por te interromper: muitas dessas linguagens são culturais. Ou seja, tu interiorizas aquela noção de ritmo porque cresceste com ela no berço, ouviste-a na rua, em casa, no bairro — o tempo todo. Esse não é o teu caso.

Eu ia ouvindo as coisas, mas havia certos ritmos e claves que me faziam todo o sentido. Eu ouvia e, “ok, já estou a perceber.” E o meu professor perguntava: “Tu sabes o que é que estás a fazer?” Eu não sabia. E ele explicava-me: “Isso é uma clave, que é utilizada nisto.” Eu às vezes misturava as coisas, porque as fazia por instinto. Ele dizia-me: “Não. Isto costuma utilizar-se mais aqui. Isto é mais ali. Com este ritmo fazes aquele estilo de música.” Ensinou-me os patterns. Para cada estilo de música, os bateristas e percussionistas têm um pattern, e dentro desse pattern podes fazer uma célula com a mão ou com o pé. É isto que ajuda a identificar. Quando estás a tocar de determinada maneira, toda a gente vai perceber que és percussionista e estás a tocar o pattern ideal para aquele estilo de música.

Ou seja, dentro do mundo da percussão falam-se diversas línguas.

Exactamente. É incrível e é infindável a quantidade de ritmos que… Eu posso estar aqui a fazer um pattern que na zona oeste de África lhe chamam uma coisa, mas exactamente a mesma célula no Brasil é chamada de outra coisa. E aquilo vem tudo do mesmo sítio. É incrível a viagem. Às vezes, basta teres uma célula e acelerares um bocado o tempo que já passa a ser outro estilo de música. Quando vais mesmo dissecar aquilo, percebes que é a mesma célula.

Nesta conversa já te ouvi falar de bongos, congas, marimbas… Dentro de todos estes instrumentos, há algum (ou alguns) do qual te sintas mesmo mais próximo? Às vezes basta um deles? Um mestre de congas pode estudar o instrumento durante 50 anos sem nunca pegar sequer num outro instrumento, não é?

Exactamente. Houve uma altura em que estava super-agarrado à música latina, portanto queria era bongos, tímbalos, congas… Depois comecei a ter aquele handicap, quando começaram a aparecer bandas… Deixa-me fazer-te este parêntesis: depois de ter feito a faculdade, lembro-me de ter feito o último exame, que foi uma oral de Sociologia do Desporto, e fui estudar música novamente, mas fui para a Holanda, para um outro curso de percussão, a que lhe chamavam Variante Jazz na Percussão. Como já tinha a parte da música latina feita, eles introduziram-me à world music, onde tens várias influências — coisas do Peru, Argentina, Bolívia, flamenco, música ibérica, da Turquia, mandinga… Um professor até brincava comigo: “Tu és africano, sabes tocar este pattern, mas és mais agarrado à música latina.”

És um africano das Caldas.

Um africano das Caldas [risos]. Exactamente. Lembro-me que havia um instrumento…. Eu nunca tive aversão, mas lembro-me que toda a gente gozava com o cajon, que hoje em dia é uma dor de cabeça para algumas pessoas. Eu costumo dizer e sempre reparei que é um instrumento que sempre foi tocado por bateristas.

Porque tem os diversos instrumentos num só?

Tem as diferentes frequências ali. Tem o baixo, o médio e o agudo. Então a malta aplicava ritmos de bateria ali. O meu professor vira-se e: “O cajon vem do Peru e é tipo a nossa guitarra portuguesa cá. Aquilo lá tem de ser tocado de tal forma.” E a quantidade de ritmos que depois dá para fazer naquilo? Eu fiquei: “Ah!” E há uma grande quantidade de bandas na América do Sul em que o cajon é o instrumento principal. Então, houve uma altura em que eu estava muito agarrado às congas, depois mais ao cajon… Mas, lá está, eu comecei a ter muito trabalho com bandas, artistas e cantores que não queriam uma bateria, mas também não queriam um percussionista a tocar uma cena latina, porque precisavam de um grave um agudo. Por acidente, fui metendo umas coisas. “Faço aqui isto, faço ali aquilo.” E voltando ainda mais atrás: eu estudei bateria, mas não era aquela coisa que eu… Tinha de estudar porque estava na orquestra. Tive de ler e tive de o estudar, mas eu não transpirava aquele instrumento. Eu estava a tocar e, apesar de haver muita coisa que vou buscar à bateria, sentia que não era o que eu respirava.

Há uma ideia errada de que todos os bateristas são também percussionistas, ou de que todos os percussionistas são bateristas. Mas são coisas diferentes.

São coisas diferentes.

É como pensares que um organista tem de tocar piano.

Exactamente.

Têm ambos teclas, mas são coisas diferentes.

São coisas diferentes, falam linguagens diferentes… O pensar percutido de um baterista e de um percussionista é diferente, apesar de, quando estamos a trabalhar juntos, temos de mergulhar para a frente. Há bateristas com quem…

É mais ou menos como um relógio? Com dois ponteiros que andam a velocidades diferentes?

Exactamente. Respondendo à tua pergunta, de qual o instrumento de que me sinto mais próximo? Não sei. Eu vou um bocado por timbres, por cores. Sou um amante de cenas graves, sons amadeirados. Isso é uma paixão. Pele e madeira faz-me mesmo tremer a espinha.

Mais do que os metais?

Mais do que a secção metálica. Bombos legüeros da Argentina, alfaias portuguesas, adufes, batás… Isso faz-me muito sentido. São os timbres que mais gosto. Eu costumo dizer que sou percussionista porque não sei pintar, se não acho que era um pintor [risos].

Já estabelecemos o teu percurso, os teus instrumentos de eleição, a tua personalidade percussionistica — se é que esta palavra existe. Qual foi o teu primeiro gig profissional, já em Portugal? Quando é que começas a ganhar dinheiro com isso?

Eu já tinha ganho uns trocos a fazer uns concertos, mas o dia em que eu comecei a viver como músico profissionalmente foi a 24 de Abril de 2015, com a Sara Tavares.

Onde é que foi esse concerto?

Assembleia da República.

Um gajo que começa logo por um sítio desses… [Risos]

Comecei em grande [risos]. E aquilo foi muito engraçado. Eu mudei-me para Lisboa naquela de, “queria ter mais oportunidades na música. Mas eu chego lá e o que é que vou fazer? Crio um cartãozinho e vou entregá-lo? O que é que se faz para se ser músico?” Eu não sabia nem tinha muitos contactos em Lisboa. Então fui trabalhar para uma empresa de actividades outdoor, com a minha licenciatura. Lembro-me de, um dia, eu estava há uns 10 meses na empresa, entrou um novo ano, 2015, e pedi férias. Quando foi para marcar, dei as minhas datas para as férias. O patrão disse: “Ok. Tudo certo.” Isto logo em Janeiro, para aí no dia 4. As minhas férias eram para ser ali na segunda quinzena praticamente toda de Março. O que é que aconteceu? Chegámos a Março, na véspera, era um domingo às 17h30, estou a fechar e o patrão diz-me: “Iúri, antes de ires embora preciso que passes aqui no escritório.” Estava a trabalhar na zona de Belém e tinha de ir ao Restelo. Cheguei lá, ele estava muito atrapalhado, porque era o gerente da empresa — havia um patrão que nunca estava lá. “Olha, o patrão ficou sem trabalhadores e não te vai poder dar as férias.” Virei-me: “Vocês estão a brincar comigo? Eu vou entrar de férias amanhã!” E ele: “Sim. Mas não podes ter os 20 e tal dias de férias, só podes tirar 8.” E eu: “E agora o que é que eu faço? Eu posso já ter uma viagem marcada.” “Pois, Iúri, não sei. Tens aqui duas hipóteses: ou fazes estes dias de férias, voltas a trabalhar e depois do Verão tiras outras; ou então tiras todas de seguida, mas a gente só te paga os 8 dias, os restantes vamos descontar-te, é como se não viesses trabalhar de forma injustificada.” Encostaram-me à parede. Tínhamos combinado tudo em Janeiro. Fiquei possesso naquele dia. Eu queria fazer a costa alentejana, queria ir dar uma volta naqueles dias. Pensei no que é que podia fazer assim à última da hora e lembrei-me dos Caminhos de Santiago. Largo tudo e fui fazer os Caminhos de Santiago. Lembro-me que penei, chorei…

Arrancaste de onde?

De Valença. Era para ir para as Caldas, ia jantar a casa da minha mãe antes de partir de férias. Qual quê. Fiquei deprimido. Decidi isto durante a noite, fui no outro dia àquela igreja na Rua do Alecrim, está a faltar-me o nome, fui la buscar a credencial de peregrino. Fui ter com a minha mãe e, quando lhe contei, ela: “Não podem fazer isso! Tens de ir fazer queixa!” Eu não me queria chatear com aquilo. “Tenho a carta de peregrino, vou fazer as malas e arranco amanhã para fazer os Caminhos de Santiago.” A minha mãe: “Mas está chuva e frio!” E eu fui. Sou uma pessoa de fé, admito bastante. Sou uma pessoa de fé e de muita força. Lembro-me de ir naquele caminho e, “porque é que me fizeram isto? Mas ok, vou agradecer…” Fiz os Caminhos de Santiago em cinco dias, apanhei um comboio de Santiago para Vigo e de Vigo para Campanhã. No caminho de Campanhã para Coimbra (depois ainda faria Combra-Caldas) liga-me um número que eu não conhecia. Estava a transpirar, de mochila… “Estou a falar com o Iúri?” “Sim, sim.” “O meu nome é Ani Fonseca, manager da Sara Tavares.” Eu ia desvanecendo. Ela diz-me: “Quem me deu o teu número foi o Luís Caracol. Ele viu-te tocar. A Sara vai ter um concerto no dia 24 de Abril e o percussionista dela está com a Aline Frazão e não vai dar. A Sara viu uns vídeos teus, gostou muito e gostava que fosses fazer o concerto. O concerto é dia 24 de Abril, mas vai haver ensaios dias 20, 21, 22 e 23, das 11 da manhã às 6 da tarde, na Lanterna Mágica, no Alvito. Podes fazer?” Eu ia estar a trabalhar. Pensei em meter as outras férias para ali. Não ia dizer que não. Aceitei. Eles iam-me enviar o repertório, tudo bem. Eu fiquei eufórico. Mas ainda voltei ao trabalho. No primeiro dia de trabalho foi logo, chamei o patrão: “Preciso de tirar dias aqui nesta altura.” E ele: “Então Iúri, porquê? Acabaste de vir de férias.” Disse-lhe: “Vocês têm mais férias para me dar. Eu vou ter um concerto com a Sara Tavares e vamos ter ensaios.” E ele: “Iúri, tu és músico como um hobby. Tu trabalhas na nossa empresa. Tu aceitaste esse trabalho? Nós não vamos poder dar-te essas férias. Como é que vais fazer?” E eu: “Então vou despedir-me.” “Mas Iúri, a gente gosta muito de ti, não te vamos abrir a porta.” “Então trabalho até ao final do mês. Façam as minhas continhas e fechamos aqui.” “Mas Iúri, pensa bem.” “Eu já pensei! Eu depois de 24 de Abril posso morrer. Vou fazer um concerto com a Sara Tavares. Vocês têm noção dos concertos que eu via dela quando era pequenino?” E pronto. Fiz os ensaios, fiz o concerto. A Sara é uma pessoa incrível. Aquilo era um concerto com a Sara Tavares, a Lura, a Selma Uamusse, Projecto Kaya, Tonecas Prazeres e Karyna Gomes.

Incrível…

Era uma banda enorme, com bateria, percussão, o Gileno Santana, o Pombinho, o falecido Galissá na kora, eu também fazia vozes. Apesar de ser um concerto da Sara, o Caracol é que estava a dirigir, era o director musical. Lembro-me de acabar o concerto… Eu vivi ali um sonho. Lembro-me dos pormenores todos que possas pensar. Acho que ainda tenho o alinhamento todo na cabeça. Quando acaba o concerto, damos todos um abraço, vamos para o camarim, depois desmontar as cenas e eu penso: “E agora? O que é que acontece agora?” Lembro-me de vir uma senhora, que me disse: “Olá. O meu nome é Ana José Charrua, sou manager da Lura.” E eu: “Ah! Muito prazer. Tudo bem?” “Olha, a Lura gostou muito do teu trabalho.” “Obrigado” “Ela, no próximo mês, vai para uma tour na África do Sul. Tu queres ir? Podes ir?” “Posso!”

Diz-se que o universo quando fecha uma porta escancara as janelas todas, não é?

E abriu. “Preciso do teu passaporte até terça-feira.” E eu: “Sim, sim. Eu tenho passaporte.” Mas não tinha passaporte [risos]. Quase que me vêm as mesmas emoções que tive naquele dia. “E agora?!” Na segunda-feira fui para as Caldas. Não havia Loja de Cidadão nas Caldas nessa altura. Ainda tive de ir a Leiria às 6 da manhã, pedi um passaporte e paguei 110 euros, para ir buscá-lo às 6 da tarde no aeroporto de Lisboa. Tudo isto na segunda, porque eu tinha de o entregar na terça-feira. Tirei uma fotocópia e entreguei. “Mas e as músicas da Lura? Eu ainda não sei o que vou tocar.” Deram-me o alinhamento. E pronto. Isto foi numa terça-feira e na quinta ligou-me a Karyna Gomes, para fazer um concerto com ela no MED. Estávamos em Abril e o MED ia ser em Junho ou Julho, já não me lembro. Semana a seguir ligou-me a Ana Laíns, para ir fazer a comemoração dos oito séculos da música portuguesa, a 23 de Julho no CCB. Para aí uma semana a seguir, ligou-me a Selma… [Risos]

Então, recuando, essa chamada da Ani Fonseca, a caminho de Coimbra, foi uma espécie de primeira peça de dominó que cai e começa a mandar as outras todas a baixo, não é?

Foi, foi.

Alguma vez voltaste a falar com o teu antigo patrão? Ele alguma vez foi a um concerto teu?

Ele faleceu nesse ano.

É muito estranho.

O patrão faleceu nesse ano. Depois havia o gestor da empresa, que ainda hoje é meu amigo e já foi a concertos meus. Agora, o patrão mesmo faleceu nesse ano. Era uma pessoa nova, com 36 anos. Tinha dois filhos. Deu-lhe um AVC e pronto. Foi assim, desastroso.

Se calhar, se estivesse um bocado menos ligado ao trabalho… Tu fizeste a opção certa, ao escolher a paixão e largar o trabalho.

Foi. Foi, assim, um passo… Lembro-me de ir no avião com a Lura, de estarmos a falar, e ela: “Epá, como é que tu apareceste?!” [Risos]



Esse tal concerto de 24 de Abril acontece em que ano?

Em 2015.

É uma coisa muito recente.

É.

E desde então para cá, tens conseguido fazer férias ou nem por isso? [Risos] Já conseguiste voltar a fazer o Caminho de Santiago?

Tento fazê-lo todos os anos. No meio disso tudo, já consegui fazer cinco vezes. E tento ir sempre na mesma altura. Agradeço sempre. Consigo tirar férias dentro do possível. Eu quando estou em tour digo sempre que estou de férias.

Porque estás a fazer o que gostas.

Estou a fazer o que gosto e são sempre cenas incríveis. Posso estar em residências artísticas, levo sempre o meu livro. Levo um peso, um elástico e um TRX para acordar de manhãzinha e fazer os meus treinos. Tiro sempre um tempinho para ler, tento descansar. Posso estar em tour, noutro país…

Já mencionaste a Sara Tavares e o Luís Caracol, a Ana Laíns, a Lura, a Selma, a Karyna… Com quem já tocaste mais nestes 7 anos, contando até 2022?

Queres que comece de cima ou de baixo? [Risos] Assim de nomes mais sonantes, lembro-me de — e certamente que me vão escapar nomes —, dentro da música africana, passar pela Teté Alhinho, Cesária Évora Orchestra (sem a Cesária, mas com a Lura e a Elida Almeida)… Houve uma altura em que se fez uma banda grande que servia de backing band para vários artistas. Acabava um concerto e, no dia a seguir, “Iúri, temos ali outro concerto, podes?” Desde o fado, da Ana Moura…

Eu conheci-te em casa da Ana Moura.

Exactamente. Também toquei com a Nancy Vieira, Eneida Marta… Depois fui parar à Madonna, também. Desta nova remessa, cheguei a fazer Agir, D.A.M.A., epá…

Criatura?

Criatura! Eu costumo dizer que é a única banda que eu tenho [risos]. Quando me perguntam: “Qual é a tua banda, mesmo?” É Criatura!

Já vamos falar de Criatura com mais algum detalhe. Mas como é que a coisa funciona? Tu olhas para a tua agenda e tens de mudar o chip sabendo que: “Hoje é África, mas é uma artista de Cabo Verde. Vou ter de levar estes instrumentos e pensar neste tipo de ritmos?” É uma coisa natural para ti? Eu já vi esta conversa a ser tida por DJs — “Eu vou ter de fazer a mala desta forma para ir tocar àquele sítio ou àquela festival, mas se for àquele outro clube tenho de levar outro tipo de discos.” É que há todas essas mudanças de nuances rítmicas e de cores que tu tens de levar para o espectáculo, não é?

Eu costumo dizer que há uma coisa muito boa que me ajudou na infância. Até já reparei num ou dois percussionistas com quem falei. São os Legos. Todos passámos pelos Legos. Vivemos com Legos, montávamos e desmontávamos, depois criávamos e há vezes em que precisas de soluções com outras peças. Passa-se exactamente a mesma coisa na percussão.

É engraçado, porque já vi percussionistas e bateristas americanos a falarem no ritmo como building blocks. Lá está, peças de Lego.

Exactamente.

É procurar o encaixe em cada contexto?

É. Lembro-me de aprender isto com o Nuno Ferreira, um baterista de uma orquestra, que me disse: “Iúri, tu tens de ter opções! Tens de criar opções, optimizar tudo o que tu tens.” E quando ele fala em optimizar, podia ser algo como: “Os teus ferros são muito pesados. Precisas de ferros mais leves. Tens uns chimes com chaves e sinos, isso é muito bonito, mas se queres viajar com esse som para fora, como é que vais fazer? Pois. Não consegues. Faz um mais pequeno, que possas meter na mala e viajar com eles. Pratos? Tenta arranjar um prato mais pequeno.” Isso fez-me muito sentido. Quando estava a falar comigo, é engraçado, disse-me: “Estás a ver? Somos os dois capricórnios.”

No teu arsenal tens algum objecto mais estranho que seja tipicamente português? Algo que não encontrarias no setup de nenhum outro percussionista?

O adufe, claro.

Sim, mas isso é um instrumento. Estou a falar de objectos sonantes. Tu usas isso?

Eu gosto muito e tenho daqueles tubos… Mas são coisas que tu já vês outros percussionistas a usar. Aqueles tubos do gás, que quando os giras eles fazem um [assobia] tipo o som do vento. Uso chaves. Uso sempre aquelas vassouras para limpar o chão, que se compram nas feiras e são feitas de feno. Lembro-me de trazer de Nova Iorque uns brinquedos que custavam 7 dólares e meio, que eram umas varinhas mágicas para os bebés. Aquilo tem a forma de um coração e são feitos de um metal que, quando bates em qualquer parte, aquilo faz uma nota. Aquilo são uns sons que… “Onde é que arranjaste isso?!” “Isto são brinquedos de criança.”

Falaste numa coisa interessante. Tu tocas com notas ou com cores? Tu sabes que precisas daquele instrumento para gerar aquela nota, ou a tua cena é mais abstracta, intuitiva ou, se quiseres, mais livre?

Olha, eu descobri, para aí em 2018/2019, com a minha piscoterapeuta, que tenho sinestesia.

Consegues associar cores…

Eu pensava que era uma coisa abrangente a todas as pessoas! Quando ela me falou de sinestesia… Eu sempre falei muito da cena das cores. E ela; “Ó Iúri, tu já pensaste se não terás sinestesia?” E eu: “O que é isso?” E ela: “Olha lá, vou meter-te aqui uma música a dar.” Ela meteu uma música a dar, que eu não me recordo qual é, mas recordo-me da cor. “Isto para ti tem uma cor?” E eu: “Sim. É vermelho.” E ela: “Ok.” Não foi preciso fazer mais nada. “Tu tens sinestesia. Sabes o que é?” E eu: “Não. Nunca ouvi falar sobre isso.” Ela disse-me: “Não vás pesquisar, porque eu vou-te mandar as coisas direitinhas.” Enviou-me um estudo de um PhD qualquer e tal, uns links. “Olha vê isto.” Olhei para aquilo e, de repente: “Ah! Ok! Então pronto!” E há uma coisa muito particular e eu ainda tenho esse alinhamento guardado. No primeiro concerto que fiz com a Sara Tavares, aquilo era uma lista enorme de músicas. Eu, às vezes, lia o nome do tema e não me recordava… “Mas o que é que eu tenho de fazer neste tema?!”

Começaste a meter marcadores em cada tema?

Pintei à frente dos nomes! Lembro-me da “Ginga” ser o segundo tema e ter um verde escuro e um verde claro. Lembro-me que a “Ngono Utane Vuna Kudima” da Selma tinha vermelho e laranja.

Fantástico. É assim que tu te relacionas.

É assim. Portanto, agora eu já faço isso na minha cabeça. Arranjei maneiras de… Em cada tema, basta-me escrever meia dúzia de notas e já sei o que tenho de fazer em cada tema. O cérebro é um músculo. Lembro-me de pensar, antes: “Mas como é que estes músicos todos decoram o que vão fazer? É que eu não consigo! A música começa a dar e eu sei lá o que vou fazer…” Olhava para a “Ginga” e, “o que é que eu tenho de fazer? Qual é o pattern?” Eu quase entrava em pânico. “Será que toda a gente passa pelo mesmo que eu?” Eu não queria dar a parte fraca, porque eram todos muito profissionais e eu era o verdinho que estava a entrar para substituir o grande Miroca Paris. Então comecei a associar com as cores. Pronto. Resolvi ali o problema, pelo menos nos primeiros concertos. Depois, aquilo tudo começou a fazer-me sentido. Eu já sabia cantar as melodias e isso criava cores na minha cabeça.

Na newsletter que me enviaste, a dada altura, mencionas os últimos álbuns e singles para os quais gravaste — Liliana, Carla Sousa, depois tens os D.A.M.A.. Mas logo aqui estão duas mulheres. E tu já mencionaste por aqui a Ana Moura, a Karyna, a Sara, a Selma, etc.. Tens uma apetência especial para tocar com mulheres?

Olha, nunca me fizeram essa pergunta. Sinceramente, não te sei bem dizer a resposta.

Até te ia perguntar se há uma maneira diferente de se tocar percussões quando são mulheres à frente e não homens. O ritmo também tem um lado mais feminino e outro mais masculino?

Não estou preparado para te dar resposta. É uma pergunta interessantíssima, mas não te sei responder. Sinto muito que, quando sou chamado, além de querer acreditar que tenho competência musical para servir a música independentemente do artista ser homem ou mulher, consigo criar empatia, uma ligação, ao ponto da pessoa me dizer: “Iúri, eu confio no que tu vais fazer.” Isso acontece com certos trabalhos que recebo. Para gravar, por exemplo, por vezes há artistas que querem estar presentes. Outros: “Eu já sei que quando o trabalho vai para ti, está bem entregue.” Nunca contabilizei se são mais mulheres ou mais homens, se o ritmo tem algo mais feminino ou algo mais masculino. Não te sei mesmo dizer [risos]. Mas é uma pergunta interessante.

Tens de analisar a coisa.

Tenho de analisar. Não sei [risos].



Há bocado estavas a mencionar que Criatura é o projecto que tu sentes como… Os americanos têm uma expressão na gíria, que é “gun for hire” — uma “arma de aluguer”. Muitos músicos de sessão são isso, recebem para trabalhar naquele contexto num momento muito específico. Mas tu sentes que Criatura é uma coisa na qual estás de corpo e alma, não é?

Sim.

É um projecto muito especial?

É muito especial. Também tem a ver com a forma como… Eu não iniciei o projecto, mas lembro-me de, na altura, já estar na música e…

Foi o Edgar que te chamou?

Foi o Edgar. Acontece-me muito esta coisa. Eu fui a Sines ao Festival de Músicas do Mundo. Uma amiga minha disse: “Epá, agora às seis da tarde vai dar Criatura no palco do castelo.” “Criatura? Não conheço.” “É um projecto português. Se não conheces, tens de ir ver.” Eu fui ver e fiquei… “O que é isto?!” Não estava mesmo à espera. “Como é que isto é um projecto para tocar às seis da tarde?!” Fui pesquisar no telemóvel e cheguei ao baterista, o Fábio Cantinho. Mandei-lhe uma mensagem. “O meu nome é Iúri. Sou percussionista. Adorei ver o vosso concerto. Adorei o teu som e dos outros todos. Foste a primeira pessoa a quem consegui chegar.” Também deixei uma mensagem em Criatura, a dar-lhes os parabéns, porque foi das coisas mais incríveis que eu já vi. Passadas umas semanas — ou uns meses, até — eu fui chamado para ir gravar um álbum a Serpa, à Musibéria, e disseram-me: “Olha, o Edgar também vai.” “Mas eu não sei quem é o Edgar.” “É um músico que também vem tocar. Se calhar dás-lhe boleia.” Nós íamos lá ficar uma semana. Apanhei o Edgar… Ou seja, eu tinha o cantor de Criatura comigo e não fazia ideia [risos]. Eu vi de longe aquele concerto e não estava a associar a cara. Estávamos a falar de música e eu disse-lhe que vi um projecto brutal em Sines, Criatura. E o Edgar: “Então, mas esse é o meu projecto!” Epá, desatámos a rir. “Lindo!” E agora estamos ali os dois e vamos gravar um álbum. Aquilo era para o Luís Gabriel Lopes, mas também estava lá a Aline Frazão e mais uma data de músicos. Eu e o Edgar ficámos super-amigos. Entretanto, eles deram um concerto no Teatro da Trindade, que eu fui ver. Depois, eu estava a gravar no PontoZurca, a uma quinta-feira de manhã. Ao meio-dia e meia o Edgar manda-me uma mensagem. “Mano, estás aí? Posso ligar-te?” E eu: “Agora estou a gravar, dá-me meia-horinha que eu já te ligo.” À uma e tal fomos almoçar. Sinceramente, já não me lembro do que é que estava a gravar no PontoZurca. Mas liguei ao Edgar, e ele: “Tu estás disponível amanhã?” Era quinta-feira e ele queria saber se estava disponível para sexta e sábado. “Olha, por acaso cancelaram-me um concerto ontem, que ia ter no sábado.” E ele: “Mano, olha, o nosso percussionista está com uns problemas familiares, ele não vai poder vir. Queres vir tocar com Criatura sexta, no Salão Brazil, e sábado, no Teatro Municipal da Guarda?” Eu disse “claro! Mas e ensaios?” “Nós vamos agora ensaiar ao final do dia.” Já não me lembro onde era o ensaio, mas “vou aí ter! Acabo a sessão às três da tarde e vou para aí. O que é que queres que eu leve?” “Tu já viste o concerto, por isso não te vou pedir nada em concreto. O outro percussionista também só tem umas coisinhas. A gente confia no teu trabalho.” Maravilha! Fui a casa, larguei os instrumentos que tinha usado para gravar, que era um kit completamente diferente. Lá está a cena dos Legos. “Que timbragens posso montar para Criatura? Lembro-me que eles tinham um bombo. Vou levar uma alfaia, tenho aqui um adufe, vou levar congas, porque eles também tinham, uns efeitos…” Fui fazer esses dois concertos, mandei logo uma mensagem ao percussionista anterior, a agradecer o espaço. Ele ficou: “Ah, foste tu que foste substituir?! Incrível!” Depois, em Março ou Abril, apareceu um concerto na Casa da Música, com Criatura, em que o percussionista acabou por mandar uma mensagem ao Edgar e à banda a dizer: “Eu não vou conseguir acompanhar a, mas vocês estão muito bem entregues.” Portanto, passou-me ali o testemunho. Foi o meu primeiro concerto como membro oficial de Criatura, em 2017 na Casa da Música. Não me lembro da data específica.

Eles tocam uma música muito criativa, avançada, imaginativa, diferente, mas, ao mesmo tempo, com… Eu acho que aquilo só podia ser feito em Portugal.

É verdade.

Aquela banda não podia ter surgido em nenhum outro local do globo. Será que é isso que tu vês neles? Essa portugalidade, mas que é uma coisa bué livre e fora-da-caixa?

As cores que aquilo me emana e os arrepios que eu apanho em palco a tocar… São coisas que muito dificilmente consigo sentir com outros artistas. Lembro-me de sentir isso com a Sara Tavares, com a Selma Uamusse também, com a Ana Moura… Olha, a cena das mulheres [risos]. Acho que encontraste um padrão. É interessante. Mas criatura acaba por ser uma banda de 10 homens em palco.

Mas o Edgar tem um lado feminino claríssimo, não é?

Sim, sim.

Ele é uma criatura, lá está.

Uma criatura, exactamente. Eu acho que é a fusão e a abertura que há… Eu sou muitas vezes chamado para trabalhos em que, antes de eu tocar, ao saber quem é o artista que me está a convidar, eu já sei qual vai ser o estilo de música. Não querendo conotar, mas conotando, whatever, “aquilo” é “aquele” estilo. Eu já estou logo a pensar nas coisas. Se me chamam para fazer Nancy Vieira, já sei que aquilo não tem bateria e já sei o que preciso de levar. Voltando à coisa da sinestesia: eu tenho uma mala com mais de 15 shakers e 20 caxixis. Quando vou tocar, eu não levo um e não levo à toa. Apesar das pessoas olharem e, “oh Iúri, faz com aquele!” Eu digo: “Não! Para ‘este’, é ‘este’. Para ‘aquilo’, é ‘aquele’.” Imagina, esta prateleira é para Criatura e já sei que uso este sino no “Lobbysómem”, sei que estes dois shakers azuis vou usar na “Da Praxe”, sei que o shaker vermelho vou utilizar no “Pastor Sem Cajado”. Eles, por acaso, têm cores, mas tem a ver com a timbragem deles. Eu já sei! A mim não me faz sentido usar este vermelho noutra música. Mas há pessoas que, às vezes, não entendem isso. “Iúri, tu és doente! Podias levar só um shaker!” Mas não, a mim faz-me sentido ser assim. Quando estou a gravar, eu não faço uma coisa à toa. Se meto um prato, já sei qual é o prato que vai ser para aquilo. Eu não te consigo explicar. Até já comentei isto: devia fazer-se um workshop para a malta ficar a ver-me a gravar e ver a quantidade de coisas que eu meto no chão. Eu não experimento. Aliás, é muito raro eu experimentar. Só se eu tiver mesmo com muitas dúvidas. A maior parte das coisas, eu ouço e já sei. “Vou levar aquilo, aquilo e aquilo.” E eu faço o trabalho que aquilo exactamente me está a pedir. Para mim, não há dúvidas. É claro que levando outra coisa também dava. Mas na minha concepção, que não é a melhor nem a pior — é a minha —, é o que faz sentido.

No teu arsenal de instrumentos tens algum com alguma história em particular? Há alguma coisa que tenhas herdado de algum mestre ou tens umas congas que vieste a descobrir que tinham pertencido a não sei a quem?

Olha… Não. Há é instrumentos que eu só levo em certas bandas. Há instrumentos que eu tenho que só utilizo para gravar, não saem do estúdio. Os bombos legüeros tradicionais da Argentina não levo para a estrada. Tenho dois adaptados, que foi um luthier espanhol que os fez em forma de bolacha, mais prático e leve — tem uma pele e um aro da Argentina, mas é uma coisa mais prática e “industrial”. O tradicional da Argentina, o casco não é uma lâmina de madeira que é enrolada, com um início e um fim que se juntam. É uma árvore literalmente cortada e cavada por dentro, sem início e sem fim. Outros instrumentos… Lá está, é tudo o que tenha couro e madeiras. Tenho adufes do Relvas, adufes do Rui Silva, que são mais modernos e dão para afinal, personalizar o som, meter coisas lá dentro e tirar quando te apetece. Eu sou muito cauteloso e muito cuidadoso com os meus instrumentos. Os primeiros roadies que me apanharam na Ana Moura, lembro-me deles olharem para o meu kit e a primeira coisa que disseram foi: “Isto é uma armadilha. Tens que os montar, nós temos de ficar a ver e a tirar montes de fotos. Se não, nós não conseguimos.” Não é aquela coisa comum do “vou montar uma bateria.” É engraçado que essa mesma equipa de roadies já me apanhou com cinco projectos diferentes — com a Ana, com os D.A.M.A., com a Lura, com o Agir e agora na Passagem de Ano, em que éramos dois percussionistas. Eles dizem-me: “Bolas, Iúri. Tu nunca dás hipótese. Nunca conseguimos montar as tuas coisas, porque tu só levas armadilhas.” [Risos] Pronto. É isso.

Olha, tu também desenvolveste um grau de confiança tal com artistas, que recebes stems e eles dizem-te: “Faz a tua magia aí.” Mandam-te a gravação.

É verdade.

É preciso que os artistas tenham um grande grau de confiança em ti, não é?

Sim. Eu quero acreditar que sim. Às vezes, essa coisa do “faz a tua cena” é ambígua. Há malta que diz “faz a tua cena”, mas com o tom de “eu confio plenamente no teu trabalho e sei que o que vais fazer faz sentido.” Há aquela malta que diz “faz a tua cena”, mas é aquela coisa de “os percussionistas fazem qualquer coisa, uns efeitozinhos, e aquilo fica bom.” Essa é aquela conotação que me faz mais comichão. Eu vou, faço exactamente o mesmo trabalho, capricho como em todos os trabalhos. Realmente a malta escuta e diz-me assim: “Epá! Isto não foi só umas coisinhas. Está aqui uma coisa orquestrada.”

Quando envias, mandas quantas pistas?

Ui! Há trabalhos simples. Mas quantidade não é qualidade.

Já mandas a coisa misturada?

Não, não. Olha, por exemplo, hoje enviei para o próximo álbum de Expresso Transatlântico, ao Gaspar Varela. São sete temas. Enviei hoje as stems e, normalmente, cada tema teve sempre uns 26/30 stems de coisas. Até pode ser só um instrumento, mas a partir do momento em que é stereo… Então quando são coisas com maior arsenal, em que tenho de fazer mais que uma micagem, com vários microfones… Olha, o meu tema, o “Casa”, aquilo foi para o Tó Pinheiro [risos]. Quem o misturou foi o Paulo Lourenço, mas o Tó Pinheiro olhou para aquilo e… Com aquele tom dele: “Epá, está aqui a verdadeira CIA.” “Então, Tó? CIA?” “O Conceito Intrínseco de Arraial.” [Risos] Coisas mesmo à Tó Pinheiro, estás a ver?

Completamente [risos]. Afinou com a flauta primeiro?

Claro! Um clássico. Teclado e flauta ali à frente, com o Paulo Lourenço ao lado, só para ajeitar ali qualquer coisa. Às vezes o Tó: “Olha, manda-me aí a voz um bocadinho mais alta. Olha, aquilo ali, se calhar está desafinado.” Ele agarra na flauta… “Vês?” O Tó é incrível. É como ir a uma visita de estudo. Sempre que vou lá, pareço uma criança. Fico ali a ouvir o Tó.

Finalmente: fala-me do “Casa”.

O “Casa” foi pensado muito pouco tempo depois de ter lançado o “Habitat”, com o Manuel Rocha.

Há bocado falávamos no padrão das mulheres, mas vejo um padrão nestes títulos — “Habitat” e “Casa”.

Sim, sim. O “Casa”, eu andava a cantarolá-lo — aquelas coisas de quando tu acordas e começas a cantarolar alguma coisa. “Ah, isto é engraçado. Mas está muito quadrado…” E eu adoro desfazer tempos, andar ali a trocar, a compor… Nessa altura andava a ouvir muito Avishai Cohen, o contrabaixista…

Esse é um nome complicado, porque há dois [risos].

Pois. Há dois Avishai Cohen [risos]. O outro é trompetista. Ele tem uma música incrível, que eu adoro.

A Fátima já fez concertos com o Avishai Cohen baixista, pela Uguru.

Ah, então então ela fez aquele em que ele veio com o percussionista Itamar Doari, que me ligou a pedir o meu cajon. “Iúri! Como é que estás? Empresta-me o cajon.” Ele ia dar um concerto em Coimbra, não me lembro onde, e depois no CCB.

O de Coimbra foi no São Francisco, acho eu.

Isso mesmo, no convento. Ele pediu-me o cajon, mas não conseguia. Para Coimbra não dava porque aquilo era logo no dia a seguir e eu não tinha como. No do CCB, eu estava a tocar com uma cena de flamenco, não podia. “Pronto. É que eu sei que o teu tem aquele som que eu queria mesmo, e os que eu tenho, da produção ou de aluguer, não são nada de especial.” Mas eu lembro-me que andava a ouvir muito Avishai Cohen, havia ali uns temas com umas trocas e baldrocas de timbres. “Uau! Uau” Encontrei ali uma célula… “Ah! Posso começar a trabalhar isto.” Agarrei naquilo e, “podia desmontar isto!” Comecei a desmontar e consegui encontrar ali… O tema ficou todo 1/7 e 1/6. Lembro-me de ter pensado que tinha ali um ponto de partida para qualquer coisa. Fui logo para a minha sala, em Paço de Arcos, e para não me esquecer daquilo, montei as coisas todas e toquei. “Ok, já tenho aqui uma timbragem.” Fui ao bombo legüero, usei uma vassoura que comprei na feira que tem um som incrível… Depois, a letra já é uma coisa bastante pessoal, que foi de alguém ter deixado o espaço em que coabitava contigo. Eu precisava de virar essa página. O “Casa” e o “Habitat” encontram-se, porque remetem para as mesmas coisas, sendo que o “Casa” é algo mais físico – a casa, o local, os sítios, as fotos — e o “Habitat” era o estado emocional, de onde eu podia ou não estar. Isto foi quase como os filmes do X-Man: tu vês o primeiro filme, depois o segundo remete para trás, em vez de ser para a frente. Na verdade, o “Casa” é o espaço físico e o “Habitat” é o que vem à frente. Percebeste, não percebeste?

Perfeitamente.

Eu comecei o projecto no Logic e aquilo ficou ali, tudo direitinho ali na grelha. Eu já tinha o tempo que queria de introdução, de meio, da catarse, já queria fazer um outro… Tinha tudo na cabeça. Andei a cantarolar e houve um dia em que fui ensaiar ao Bandido — já não me lembro com quem — e eles têm lá um piano logo à entrada. Sentei-me ao piano…

Outro instrumento de percussão.

Exactamente [risos]. [Começa a cantarolar a melodia] Lá encontrei as notas. Agarrei no telefone e até gravei e mandei aquilo ao Carlos Garcia, do piano. Ele passou aqui em casa e até saiu uma coisa interessante. Ele só não estava a perceber o tempo. “Isto é um 1/7 com um 1/6, mas eu vou aí a casa e canto, para tu veres.” Entretanto, para cantar isto, fiquei… Eu fiz uma demo com uma letra e consegui cantá-la num 1/7 e 1/6. É claro que foi aos pedaços, porque não é uma coisa… Há aqui dois pontos. Apesar de eu fazer vozes em todas as bandas, eu não sou um cantor. É o que eu costumo dizer: todo o percussionista toca percussão, mas nem todos os que tocam percussão são percussionistas. Eu adoro fazer vozes, sempre que vou trabalhar a malta pede-me, mas eu não sou um cantor.

Até porque podes fazer percussão também com as vozes.

Claro. É todo um mundo. Mas lembro-me de cantar aquilo uma vez, depois mostrei ao Paulo Lourenço, que é o baixista de Criatura e é meu vizinho — imagina, vivemos os dois na mesma casa, mas tu entras pela porta e tens um rés-do-chão direito e um rés-do-chão esquerdo; eu vivo no direito e ele no esquerdo. Quando estamos em casa temos as portas abertas muitas vezes, porque eu tenho a esfregona e a vassoura em minha casa, a net é minha e eu partilho com ele; mas ele é quem tem o frigorífico maior, portanto, quando compro gelados, guardo no frigorífico dele. É engraçado. Vivemos quase em comunidade. Então: “Oh Paulinho! Chega lá aqui.” Mostrei-lhe e ele: “Então, mas vais tu cantar isso?” “Olha, em último caso… Mas queria arranjar alguém para cantar aqui.” De repente, porque já andava a falar com o Edmundo… Já tínhamos trabalhado os dois juntos, com o Tiago Nacarato, e uma vez que fui ao Porto ele deu-me guarida em casa dele, ele também já ficou em minha casa. Mas ele está sempre a escrever para toda a gente e, se calhar, até vai ser estranho ser eu a escrever um tema para ele cantar. Mas falei com ele, mandei-lhe a letra. “Iúri, essa letra está muito bonita. Eu percebo essa tua letra. Já estive em tua casa e percebo essa letra.” E eu: “Tu não gostavas de cantar isto?” “Meu velho, quando quiseres! Vens aqui ao Porto, eu arranjo um estúdio e gravamos isso.” Então organizei, fui a casa do Carlos Garcia… Foi outra coisa interessante. Não sei se o Carlos Garcia também tem essa coisa, mas eu lembro-me de: “Olha Carlos, a melodia é esta.” Comecei a cantar. “Estás aqui, depois vais ali, porque isto é um 1/7 com 1/6.” Vimos a harmonia. “Isto não. Isto também não.” Até que ele me pergunta: “Vê lá o que achas desta cor.” E eu ri-me. Acho que ele percebeu. Eu disse-lhe: “Preciso de uma coisa mais azul, mas não te sei…” Ele tocou, e eu: “Essas duas notas dão.” “Ah! Já sei o que é que tu queres.” Tal, tal e tal. Lembro-me que tivemos ali umas três horinhas. Foi incrível. Foi muita giro. Eu estava a cantar e ele a experimentar harmonias em cima. “Ah tu preferes isto assim? Nunca pensaria.” Fizemos e gravamos umas primeiras guias de piano. Para ai uma ou duas semanas depois, fui para o Porto e fui ter com o Márcio — o Edmundo — lá ao estúdio do Nuno Melo. Passámos lá um dia inteiro. Eu achei muita piada, porque o Edmundo é baterista, mas é um escritor, um cantautor, um compositor, um letrista incrível. Eu cheguei lá com o projecto feito, com a letra, melodia. Ele disse-me: “Só mesmo um percussionista para fazer uma música em 1/7 e 1/6, e estar a cantar…” Ele ouviu a minha versão, aquela minha guia comigo a cantar. Ele disse: “Fogo, velho! Quase cantavas tu isto.” “Epá, não. Eu não me quero assumir como cantor.” Eu gosto desta coisa da partilha, de chamar as pessoas que que fazem disto “casa”. Por mais clichê que possa parecer, gosto de estar com pessoas com quem me possa sentir em casa. Podemos estar até tarde a conversar e há logo ali uma química. Tivemos ali dois ritmistas – um baterista e um percussionista — a cantar uma música composta por um percussionista. Isso foi engraçado [risos].



Mencionaste aí uma coisa muito interessante, da procura da harmonia. Nós, quando pensamos em fabricantes de harmonia, pensamos em pianistas, guitarristas… Mas a própria forma como tu descreves a tua abordagem à percussão, é muito de um harmonista, não é? É de alguém que precisa de encaixar essas cores todas para fazer as pinturas todas que tu queres fazer.

Exactamente. Se eu fosse pintor, falaria assim. Como percussionista, para não soar a “presunçoso”, o que eu quero dizer às vezes é que “eu também tenho uma voz.” Eu sou um percussionista que tem voz. Claro que as pessoas: “Então, mas ele canta?” Não é isso. Temos de ser mais à frente. É assim que tu olhas para um trabalho e: “Ok! Este tema levou um twist.” Se for preciso, é um projecto apenas com 5 ou 6 vias. Lembro-me de um dos temas que o Manuel Rocha tem, que é o “Mantra”. Eu estive a gravar para o “Mantra” na mesma altura em que estava a compor o “Habitat”. Foi numa altura em que estava muito, muito preocupado, ansioso, na quarentena e não sei quê. Graças a Deus, tive sempre trabalho de estúdio. Mas, às vezes, pensava… Às vezes, até já ia para lá para… É que não se podia andar na rua nem nada. Lembro-me de estar a chover torrencialmente. O meu estúdio é uma box, com umas tubagens fora da sala. A água, quando chove, circula nesses tubos. Houve uma altura em que abri a porta do estúdio a ouvir… “Ah!” Eu precisava de uma introdução. Trouxe dois microfones de membrana larga e fiquei ali a gravar uns 15/20 minutos de tubagens de água, só para ter uma textura. Aquilo ficou a introdução daquele tema. O Manuel até perguntou: “Foste buscar um sample?” “Qual sample! Isto foi num dia em que estava a chover e eu gravei aquilo.” Mas isto para te dizer o quê?

Estávamos a falar das harmonias e dos timbres.

Lembro-me de uma vez em que fui chamado pela Ana Moura e ela me disse: “Olha, eu gostava muito de experimentar estes timbres.” Pelo que eu percebi, várias pessoas sugeriram o meu nome à Ana. O Gaspar Varela foi um deles. Fizemos um ensaio experimental, meio…

Audição?

Tipo casting ou audição. A Ana foi uma querida, convidou-me para ir a casa dela. Quando ela começou a tocar esse tema, chegou a uma altura em que: “Iúri, eu aqui não quero nada.” E eu: “sim, sim.” Mas o Gaspar: “Ó Ana, olha que o Iúri faz uns efeitos… Tu ias adorar!” E a Ana: “Sim, sim. Mas eu aqui não quero nada.” Eu fiquei na minha e nem disse nada. Segundo dia, outra vez a ensaiar aquele tema. “Falta aqui qualquer coisa, não sei. Se calhar vamos fazer ‘assim’, se calhar vamos fazer ‘assado’.” E o Gaspar assim: “Ó Iúri faz lá um passarinho!” E eu: “Não. Ó Gaspar!” Estava naquela, meio envergonhado em frente à Ana. Mas ele: “Faz lá para a Ana ver!” E a Ana: “Faz lá o passarinho.” Eu fiz assim um passarinho e ela: “Ai que giro. Por acaso ficava aqui bem.” O Gaspar: “Ó Ana, deixa o Iúri fazer.” A Ana olhou para mim e: “O que é que tu achas?” Eu disse-lhe que tinha uma proposta muito fixe para aquele tema. “Então mas é o quê?” E eu: “Posso mostrar antes de dizer?” “Podes.” Eu tinha uma cabaça no carro, que tinha ido buscar não sei onde. Era uma cabaça enorme, da Guiné. Cheguei à Ana, e ela: “Mas eu não quero nada a bater!” “Não, Ana, espera. Onde é que há água?” “Tens a casa de banho ali em cima.” Fui lá encher a cabaça de água e: “Ana, consegues cantar este tema sem estar com microfone?” E ela: “Sim.” Aproveitámos que tínhamos o PA ligado, fiquei eu com o microfone em cima da água. “Mas o que é que tu vais fazer?” “Toquem o tema.” Ela começou a tocar, com o Gaspar e o Manel Ferreira. Eu fiz um pad com água, dei-lhe um reverbzinho, a fazer uns passarinhos com a boca. Bem… Lembro-me de estar lá o Gonçalo Afonso, o Paulo Marques… O Gonçalo só lhe diz: “Puto! Ana, este é ‘o momento’ do concerto! Precisamos de mais um estrado para o Iúri!” E eu: “Mas posso acabar?” [Risos] Então fizemos aquele tema comigo só naquilo — água e passarinhos. As pessoas até podem ficar a pensar: “Ah, mas ele só está a fazer água e passarinhos.” E eu digo: “É tão simples que nem toda a gente o faz.”

Alguma vez ouviste a história do Ovo de Colombo?

Ovo de Colombo?

Conheces a expressão?

Nunca ouvi.

A história do Ovo de Colombo é muito simples. Num certo dia, o Cristóvão Colombo estava à mesa com uns amigos, e um deles diz assim: “Eu também podia ter descoberto a América. Achava que estava a ir para a Índia, ia sempre para a esquerda e ia lá dar à América.” Ao que o Colombo respondeu, pedindo um ovo ao taberneiro: “Olha amigo, põe este ovo de pé.” Ele tentava e o ovo tombava. “Não dá para pôr um ovo em pé, porque ele não se aguenta.” “Não dá?” O Colombo pega no ovo, bate contra a mesa, parte um bocadinho do fundo e o ovo fica em pé. E diz o outro: “Mas assim também eu conseguia!” E ele diz-lhe assim: “Toda a gente consegue, mas é preciso alguém fazer primeiro.”

Ok! Ovo de Colombo. Nunca tinha ouvido a expressão.

Ou seja, isso que me estás a contar é um Ovo de Colombo. As pessoas podem achar fácil, mas é preciso verem alguém a fazer primeiro.

Claro. E esse tema ficou… Foi um momento super-alto do concerto. A Ana sentava-se ao meu lado, com luzes, nós os dois e guitarra portuguesa, depois ela levanta-se… Mas estás a ver como uma coisa tão simples pode… Isto tudo para voltar à questão de eu ter uma voz. É isso que eu também quero.

Tenho outra pergunta para te fazer. Já lançaste o “Habitat” e a “Casa”. O teu álbum há-de se chamar Condomínio?

Condomínio [risos]. Boa.

Mas isto é um prenúncio para um trabalho em nome próprio?

Olha, eu não penso muito nisso. Eu gosto muito de fazer trabalho com outros artistas, de servir a música de outros artistas, seja a gravar ou a tocar ao vivo. Gosto muito de ir ao encontro do que os artistas querem. Às vezes eles nem sabem bem o que querem, mas eu: “Posso experimentar? Deixas-me fazer aqui isto ou aquilo? Sim? Então ‘bora!” Como não tenho esta pressão das labels ou dos produtores, não penso muito nisso. As pessoas às vezes perguntam-me: “Ó Iúri, quando é que fazes a tua banda a solo?” Eu sinto que ainda nem estou nesse patamar. Nem vejo isso sequer no futuro. Gosto desta coisa de me poder surgir uma ideia que, de repente, se pode transformar numa música, espontaneamente, que depois me faz pensar neste ou naquele cantor. “‘Bora fazer? ‘Bora!” Ao mesmo tempo, a malta vai ouvir e pensa assim: “Mas afinal o Iúri é o cantor?” “Não. O Iúri foi quem fez a música.” Geralmente a malta associa a música ao cantor. Eu gosto deste twist, de deixar a malta meio baralhada. “Mas o Iúri está a cantar?” Não! O Iúri é que fez a música, escreveu, fez a letra e idealizou o tema. Depois arranjo as peças, as pessoas certas para poder contribuir para a mesma. Eu gosto disso.

Nem mais. Uma outra coisa: Tu escolhes como adorno um instrumento de percussão?

Excato. As minhas conchas [risos]. É verdade.

Andas com elas ao pescoço.

Também há alguns efeitos que se fazem com conchas. Mas eu costumo dizer que são as minhas protecções.

Começaste por te descrever como um homem muito ligado à água, que nadas muito. As conchas têm a ver com esse lado?

Acho que sim. Sou um apaixonado pelo mar, mesmo. Tudo o que é desportos aquáticos, o prazer de estar dentro de água…

E acabaste de me descrever uma situação em que encheste uma cabaça de água.

Exactamente. E fui nadador salvador durante 9 anos.

Salvaste pessoas?

Salvei muita gente. Lembro-me de um concerto em particular, na Fábrica Braço de Prata, chegar um senhor ao pé de mim: “Olhe, posso falar consigo? Você foi banheiro na Foz do Arelho?” É uma palavra que me dá comichão [risos]. “Eu não fui banheiro, isso já não existe. Fui nadador salvador.” E ele: “Desculpe lá, porque na minha altura… Mas você salvou-me a mim e ao meu filho na aberta.” Era uma ligação entre a lagoa de Óbidos e o mar. Quando está maré cheia, está tudo certo, porque o mar empurra para dentro da lagoa — mesmo que estejas ali atrapalhado, entras para a lagoa e é uma calmaria. O problema é quando o mar está a vazar. O senhor falou-me: “Vocês foi-me lá buscar a mim e ao meu filho.” E eu: “Hey! Quando é que isso foi?” “Não me lembro, mas lembro-me do ralhete que você me pregou.” O senhor tinha ido com uma prancha de bodyboard do LIDL, clássicas, quando estava bandeira vermelha. E decidiu ir para fora de zona não concessionada. Lembro-me de ver alguém a correr, braços no ar… “Já há caldeirada ali.” Mas eu não via nada. Até que alguém me chamou. Agarrei na mota e fui. Vi duas pessoas ao longe, mas a ir pelo mar adentro. “Ó Diabo…” Fui com a minha prancha de bodyboard e com a minha bóia torpedo, cheguei lá e era um senhor com um filho, que eu já os tinha avisado que estava bandeira vermelha. Ainda por cima na Zona Oeste, com um mar picadíssimo. Eu fui lá dentro, dei a bóia torpedo ao senhor, meti o miúdo em cima da prancha de bodyboard, dei a volta ao agueiro, apanhei uma onda, vim à areia deixar o miúdo, para depois voltar a entrar e buscar o senhor. Depois lembrei-me. Eu lembro-me desse salvamento, não me lembrava era das pessoas. Esse senhor foi a um concerto e perguntou. “Era você? Você salvou-me a mim e ao meu filho.”

Salvaste-o duas vezes então. A segunda foi quando deste o concerto e lhe tocaste no coração com a música [risos].

Quiçá. Se calhar [risos]. Eu tenho esta ligação, gosto dos elementos da natureza. Sou muito ligado ao mar. Esta coisa das conchas, na verdade não penso muito nisso. É-me natural. É engraçado porque tu tocas-te aqui em várias coisas — o tocar com várias mulheres, a água, as conchas… Se calhar, vou sair daqui a pensar [risos].

Em que projectos te vamos poder ver envolvido em 2023?

Gostava de salientar o facto de estar a gravar para o novo álbum de The Cinematic Orchestra, com o Jason Swinscoe. Ele chegou a mim através de um técnico de som, do Mário Correia. Já fizemos para aí uns cinco ou seis temas.

Mais alguma coisa para além disso que possas falar?

Não tenho assim… O Diogo Varela, pai do Gaspar Varela, que é realizador, pediu-me, há um ano atrás, para fazer a banda sonora para um filme dele. “Ó Diogo, eu não tenho conhecimento para orquestrar…” E ele: “Mas é isso que eu quero. Eu não quero uma banda sonora igual às outras todas. Quero paisagens sonoras.” E eu: “Ah, ok. Isso aí, ‘bora lá.”

“Deixa-me lá gravar mais umas chuvas a cair pelas tubagens e coisas assim.”

Ele foi-me mostrando o filme, mas disse para não me guiar muito por aquilo, porque a montagem ainda podia sofrer alterações — isso tem um nome específico, do qual eu não me lembro. “Vamos mostrar-te o filme duas ou três vezes.” “Mas quantos temas vocês precisam?” “Faz-me aí uns 10 temas.” O filme é uma longa-metragem.

É ficção ou documentário?

O filme chama-se João Ayres, Pintor Independente.

Ok. Já sei o que é.

Apareceu recentemente no Doclisboa, tem estado a rodar. Aquilo assustou-me um bocado. “Vou mostrar-te aqui um exemplo, de uma coisa que encontrei na internet.” Era um piano, um violino, algo muito ambiental, com imenso espaço, imensos reverbs. “Mas eu não toco violino nem piano.” Ele disse-me: “Faz. Pensa nesta ideia, mas aplica-a aos teus instrumentos.” Levei montes de mbiras, de outras percussões. Nem eram coisas grandes, eram texturas. Lembro-me de, quando fui às Caldas, até trouxe uma panela grande da minha mãe. “Para que é que tu queres isso?!” “Estás a ver aquele som de despejar a água? Glup, glup, glup. Eu não tenho uma panela dessas em Lisboa.” “E vais levar-ma a panela?!” Levei-a [risos]. Para cada tema, fiz partes de água e metálicos, de coisas amadeiradas, de ventos… Agarrei numa data de tubos… Fiz uma data de coisas. Ganhei ontem um prémio de Melhor Banda Sonora Original num festival de cinema em Paris. O filme ganhou esse prémio.

Essa banda sonora vai ser editada?

Ao início não estava com essa ideia. De repente, quando fui ao Doclisboa fazer a apresentação, várias pessoas me perguntaram… Eles convidaram toda a gente que participou para ir lá ver o filme. Estava a ver aquilo e, “isto ficou mesmo fixe!” Vi aquilo com surround de cinema. Uau! Muita gente perguntou, “quem é que fez a banda sonora?” No fim, toda a gente me veio dar os parabéns. Aquilo foi uma coisa tão simples… Um Ovo de Colombo — dessa agora não me vou esquecer [risos]. O filme tem estado a rodar numa data de festivais pelo Estados Unidos, Europa… Ontem o Diogo até me ligou: “Parabéns Iúri, recebemos este prémio.” Pensei, “acho que vou editar isto!” Porque não? E é engraçado, porque o Jason ontem mandou-me mensagem: “Hey, Iúri! We have to finish the album.” “‘Bora! ‘Bora acabar isso!” Tenho tido aí uns marcos super-interessantes. O Jason é incrível. Ele é aquele gajo que está com o cigarro electrónico, fica lá no estúdio, mostra-me uma música e eu: “Então Jason, tens alguma ideia?” E ele: “Não.” Ele senta-se no sofá, fica mesmo aquela onda, de perna cruzada a olhar para mim. “Vou-te meter aqui três Neumanns, vou abrir-te as vias, experimenta.” Eu faço uma coisa qualquer, ele está a ouvir, e quando encontra uma coisa fixe olha assim para mim… “Gostaste disto?” E ele: “Ya! Grava isso.” E puxa a faixa para trás. Eu passo ali o dia inteiro com ele. Ele é como eu, acorda super-cedo, vai tratar dos miúdos, mas às 9h da manhã já estamos no estúdio e estamos lá até nos cansarmos, literalmente.

Ele vem cá ao teu estúdio, ou vais tu lá?

Ele, na verdade, está a viver em Lisboa. Arranjou uma casa em Santos e tem um estúdio ao pé do Coliseu — não é na Rua das Pretas, mas é numa transversal lá ao lado. Trouxe o arsenal todo dele. Não sei quanto tempo é que vai cá estar, mas está cá.


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