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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/01/2022

Na primeira pessoa.

“Isto é mais avançado que o Remain in Light“: 40 anos de “Avarias”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/01/2022

Estava eu a fazer o som para o concerto dos GNR em Vilar de Mouros — curiosamente, nesse concerto e em trio, tocámos unicamente o tema “Avarias”, comigo no baixo e guitarra, o Tóli César Machado na bateria e o Rui Reininho na voz, apesar de a maioria do nosso público estar ali para escutar temas como o “Portugal na CEE ou o “Sê um GNR” —, quando vejo um indivíduo muito alto a aproximar-se, a ajoelhar-se à minha frente e fazendo um gesto de adoração com os braços, a dizer-me algo que soava a “Aiveriaz”… “Aiveriaz”… e após a surpresa inicial, foi então que reconheci o músico Tom Robinson da Tom Robinson Band.

Ainda sem entender o que se estava a passar, ele tira de um saco o LP Independança que eu lhe tinha oferecido um ano antes quando ele actuou em Belém, aponta para o tema “Avarias” repetindo “Aiveriaz”… “Aiveriaz”, e foi aí que percebi que estava a elogiar a nossa composição. “A melhor coisa que escutei nos últimos tempos”, dizia-me ele em inglês. “Parabéns”, continuava. E ficamos a falar durante algum tempo em que ele me ia questionando sobre como tínhamos criado aquele tema.

Relembrando esse episódio, vou aqui contar-vos, de forma o mais completa e factual possível, como é que eu, o Tóli César Machado, o Miguel Megre e o Rui Reininho construímos a canção experimental “Avarias”, em 1982.

Um dia, ao ler a revista Rock em Portugal, vejo um pequeno artigo assinado pelo Rui Reininho, em que elogiava imenso os GNR e dizia: “Perguntem ao meu espelho, quem fez o melhor solo de sintetizador em Portugal?”, referindo-se ao tema “Espelho Meu” e ao meu solo de sintetizador nessa música.

Pouco tempo depois, estava eu a convidá-lo para ir à minha garagem na Rua Airosa no Porto, para ver a possibilidade de ele fazer parte da nossa banda, pois tinha assistido em finais dos anos 1970 a um concerto dos AnarBand que me marcou muito como músico, em que os diferentes músicos estavam vestidos tipo Laranja Mecânica e onde havia performance, banda magnética e até um ganso com um laço cor-de-rosa.

Nessa altura, o Alexandre Soares andava um tanto afastado do grupo e pouco aparecia aos nossos ensaios, de forma que era eu, o Tóli e, algumas vezes, o Miguel Megre que ensaiávamos todos os dias durante horas. Foi numa dessas tardes que o Reininho apareceu para participar numa espécie de audição.

Chegou vestido com uma camisa preta, com brilhantes azuis e vermelhos, e umas calças de couro pretas. Trazia com ele uma guitarra de dois braços — baixo e guitarra —, totalmente “preparada” — com autocolantes, palitos, elásticos, etc.—, e após uma pequena conversa, ligámos os instrumentos e começámos a tocar. Não foi preciso muito tempo para entendermos que algo estava “mal”. O Rui vinha do projecto de Jorge Lima Barreto, AnarBand, e tocava na guitarra preparada a la Derek Bailey — que na altura eu desconhecia totalmente! — enquanto nós tocávamos temas tipo punk com três acordes. Era como se os Stranglers convidassem o Arto Lindsay para tocar com eles. Ora, eu e o Tóli não estávamos preparados, na altura, para entendermos aquilo e sabermos o que fazer.

Desse modo, estávamos num intervalo no jardim da minha casa, quando o Tóli me diz algo como, “ó pá, isto assim não dá!”, com que eu concordava acenando com a cabeça.

E foi nesse preciso instante, que escutámos vindo da garagem, o Rui a cantar algo tipo Brian Ferry, que nos fez ir para dentro para ouvir e ver. E o que ouvimos e vimos era o Rui a tocar uns acordes na sua guitarra de dois braços, a cantar “Give me your backstage pass” e a fazer uma performance. Perante aquilo, eu e o Tóli olhamos um para o outro, e apercebemo-nos que tínhamos encontrado o cantor para a nossa banda. Depois de explicado ao Rui que não precisávamos de mais um guitarrista, propusemos-lhe ser vocalista. E ele aceitou.

Nessa altura, nós tínhamos já sido convidados pela EMI-Valentim de Carvalho para gravar um novo LP — depois do nosso sucesso com os singles “Portugal na CEE” e “Sê um GNR” —, e este encontro com o Reininho deu-nos inspiração q.b. para em menos de um mês termos quase todas as músicas do LP criadas.

Um dia, o Rui voltou à garagem para escutar os temas que tínhamos estado a ensaiar, e dissemos-lhe que talvez faltasse ainda um tema, ao que ele nos sugeriu fazermos um tema “tipo Kraftwerk”.

Na altura, e porque éramos uma banda mais de guitarras do que de sintetizadores, encarei aquele pedido não tanto a nível instrumental, mas mais referente à estrutura, e desse modo, ao pensar em Kraftwerk, pensei em padrões repetitivos. Foi então que criei um riff, um baixo contínuo no meu baixo “fretless” — sem trastos — da Fender. O Tóli escutou e de imediato começou a criar um ritmo obsessivo para o meu baixo. Devemos ter estado, horas, dias, meses, a tocar aquele tema na minha garagem, sempre sem voz e quase sempre sem teclados, ou seja, só eu no baixo e o Tóli na bateria — o Alexandre continuava a não aparecer e o Megre só muito raramente estava presente nos ensaios.

Quando chegou a altura de irmos para estúdio em Paço de Arcos, o que eu e o Tóli tínhamos era uma frase de baixo e bateria repetitiva e mais nada. Fomos gravando em estúdio os variegados temas que havíamos ensaiado no Porto para este disco, e deixámos para o fim este tema “estranho” que ainda não era tema nenhum.



Na noite da gravação, estávamos no estúdio eu, o Tóli, o Megre, o Ricardo Camacho — co-produtor — e o fabuloso engenheiro de som — que para mim foi também produtor do disco, e muito bom! — António Pinheiro da Silva. Eu tinha dito ao Tó Pinheiro que pretendia usar o processador Eventide — o Rolls Royce dos processadores de som, usado por músicos como o Zappa, Fripp, Eno, ou o produtor Phil Spector —, e ele, Tó Pinheiro, era a única pessoa em Portugal que lhe sabia mexer. Quando íamos a gravar, perguntei-lhe qual era a duração de uma bobine de gravação, ao que ele respondeu ser “à volta de 26 minutos”, e eu disse-lhes que iríamos tocar um tema durante esse período de tempo para depois escolhermos “a melhor parte”.

O estúdio gigante de Paço de Arcos parecia Londres em tempo de nevoeiro, tal era a quantidade de fumo de tabaco e erva a pairar no ar da sala. Iríamos fazer três gravações: na primeira, eu tocaria baixo, o Tóli bateria, o Miguel sintetizador strings e o Reininho voz; na segunda, eu tocaria guitarra, o Megre piano e de novo o Reininho a gravar outra voz; e na terceira, seria só eu na guitarra e o Rui na voz processada com Eventide. E assim foi.

No final da última gravação, estava eu a entrar na sala de mistura para escutar o que tínhamos feito e para escolher a tal “melhor parte” quando o Ricardo Camacho muito excitado me diz: “Rua, isto tem de sair assim inteiro! Está magnífico!…Não dá para cortar nada…”. Quando ele me diz aquilo, eu apercebo-me que o que ele está a propor é a mais extraordinária ideia alguma vez tida no rock produzido em Portugal. Assim, quando fui escutar a gravação, já tinha em mente que aquele tema iria ser uma improvisação rock de 26 minutos.

Fiquei com os pêlos eriçados só de perceber o que tínhamos criado ali naquela noite.

Estávamos todos excitados. Faltava misturar o tema e ficámos cada um de nós, em fila, numa enorme mesa de mistura de 32 canais, a comandar as pistas correspondentes a cada instrumento nosso, o que significava que eu controlava o volume das pistas das guitarras e baixo, o Megre do sintetizador e piano, o Rui das vozes, e o Tóli da bateria, enquanto o Tó Pinheiro da Silva tentava meter ordem naquilo tudo e ainda controlava sabiamente o processador Eventide. Tudo era em tempo real. Se falhássemos algo, fosse em que momento fosse do tema, teríamos de repetir tudo de novo e, na época, as bobines eram muito caras e iam desgastando com o uso. 

O fumo e cheiro a erva e tabaco era intenso, e a sala transpirava inspiração. Fizemos a mistura à primeira, e todos contentes e excitados, abraçávamo-nos e tínhamos a perfeita noção de que tínhamos acabado de fazer história! Uma improvisação rock, com um baixo repetitivo obsessivo, mais uns laivos de jazz no piano, uma pitada de rock progressivo no sintetizador, guitarras distorcidas marinhadas em feedback, e a voz em “spreschgesang” — falar/cantado —, de um poema concreto improvisado. Foi uma das noites mais importantes da minha vida como músico.

Mas… faltava um pequeno pormenor: convencer a editora de que um dos lados do nosso disco só iria ter uma música repetitiva improvisada e, para os padrões da época, muito pouco “comercial”.

Fomos, eu e o Tóli, à Valentim de Carvalho, na Rua do Almada, e lá estavam o David Ferreira e o Francisco Vasconcelos. Perguntámos-lhes se podíamos mostrar um tema, eles disseram que sim, e nós pusemos a tocar o “Avarias”. 

Logo nos primeiros segundos, o David começa a dançar. O Francisco escutava com atenção mas não demonstrando aparente emoção. Até que os minutos iam passando e o tema não terminava… o David continuava a dançar com um sorriso na cara e o Francisco, mais apreensivo, pergunta: “quantos minutos tem este tema?”, ao que eu lhe respondo, “vinte e seis minutos”. O Francisco, muito sério, diz-me abanando a cabeça com as mãos em sinal de desacordo “isso não pode ser… um LP tem de ter pelo menos oito músicas”, ao que eu lhe respondo “e se eu te puser sete temas no outro lado do disco?”, e ele riu-se, levantou-se, e começou também a dançar até ao final do tema, desta vez com um sorriso na cara, sabendo que estava a dar aval a uma revolução no rock criado em Portugal.

Tendo nós tido a aprovação para a edição do tema no disco, eis que o David tem uma brilhante ideia: “vamos incluir um excerto deste tema no single, e fica como lado B do tema ‘Hardcore'”. E assim foi, ou seja, não só conseguimos editar uma improvisação rock de 26 minutos que ocupava todo o lado B, como este iria figurar no single de promoção do LP.

Quando saiu o Independança, deu-se o seguinte fenómeno: por um lado, toda a crítica e colegas músicos o consideraram de imediato como a melhor obra rock produzida em Portugal — para o que muito contribuiu a presença nesse disco do tema “Avarias” —, por outro lado, a nível de vendas, foi um fracasso — em comparação com o que os GNR estavam habituados a vender com os singles “Portugal na CEE” e “Sê um GNR”.

Até à actualidade, o “Avarias” continua a ser uma espécie de “filho órfão” do rock feito em Portugal, pois, mesmo na actualidade, a existência no rock de um tema com esta duração e característica é muito rara.

Comecei este meu ensaio com um elogio do Tom Robinson ao nosso tema e vou terminar com outro: o músico Chris Cutler, numa das inúmeras vezes que veio a Portugal para tocar comigo e com os Telectu, tendo escutado este tema, disse “isto é mais avançado que o Remain in Light”.

Ouça-o quem o quiser amar!


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