É uma história que se repete vezes sem conta, a das “margens” que são verdadeiros centros. Podem não ser os principais focos mediáticos ou dos interesses económicos, mas são, em grande parte das vezes, o cerne das grandes revoluções culturais. O nascimento do movimento hip hop em Portugal não fugiu a essa regra, e foi no Miratejo, uma localidade do município do Seixal, que essa semente encontrou um solo suficientemente fértil para se desenvolver. Passaram mais de três décadas desde esse momento, e já faz uns bons anos desde que o hip hop se tornou na cultura urbana mais enraizada no nosso país. É até de estranhar que se tenha demorado tanto tempo a reconhecer essa origem através de uma iniciativa como aquela que no passado sábado, 26 de Outubro, arrancou no Museu de Almada – Casa da Cidade. A exposição Filhos do Meio – Hip Hop à Margem trouxe à tona esse enorme legado nascido no Miratejo e rapidamente absorvido pela cidade de Almada e a sua periferia, recuperando a história de um movimento artístico plural que teve início nas ruas e é hoje líder de audiências no segmento da música.
Nem a constante ameaça da chuva foi motivo suficientemente forte para impedir a grande aglomeração que se formou, inicialmente, no espaço exterior do museu a partir das 15 horas. Filhos do Meio – Hip Hop à Margem vai estar patente até ao dia 29 de Março de 2025 e foi inaugurada num evento com pompa e circunstância, para o qual participaram artistas de diferentes áreas da cultura urbana. Chegados ao local, já os writers Chase e Klit estavam de latas de spray empunhadas a dar cor a um dos muros do recinto do museu, com DJ Fellaz a entrar em cena pouco depois para animar a festa pela via sonora, misturando temas made in Margem Sul com clássicos de outras zonas do país e também algumas malhas norte-americanas. Já na recta final deste “aquecimento” — a exposição abriria oficialmente as portas já após as 17 horas —, Mucha e CeeCee desafiaram as leis do movimento com uma sessão de breakdance que atraiu vários elementos do público a entrar também na roda.
A ansiedade era cada vez maior à medida que o tempo avançava, e apesar de ser possível visitar Filhos do Meio – Hip Hop à Margem a qualquer altura durante os próximos meses, era visível que todos queriam matar a curiosidade o quanto antes. O quadro era bonito e ainda antes da massa adepta se começar a condensar à entrada do Museu de Almada pudemos escutar alguns dos visitantes mais velhos, testemunhos vivos daquela era em que o hip hop começou a dar os primeiros passos em Portugal, a confessar que todo aquele cenário estava a trazer à tona muitas memórias. Uma dessas pessoas era Bambino, pioneiro que ainda se encontra o activo, que se mostrou orgulhoso por ver o movimento que ajudou a fundar a ser destacado desta forma numa exposição que acontece no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril e do 30º aniversário da compilação Rapública, na qual participou. “Isto está bonito, man”, começou por dizer o ex-Black Company ao Rimas e Batidas, não deixando de frisar a importância do Miratejo nesta cultura antes da sua propagação por Almada e apontando alguns dos rostos com quem se cruzava naqueles tempos e que também estavam ali presentes no evento. De coração cheio por ver algo que ajudou a edificar a ser distinguido desta forma, deixou claro que toda esta adesão por parte da comunidade deve ser tida em conta para que outras festas e acontecimentos como este possam ser mais regulares naquela zona.
Já nos derradeiros minutos de espera para que pudessemos finalmente deambular pelos corredores da memória de Filhos do Meio, posicionaram-se no hall de entrada as principais figuras que tornaram esta exposição possível para deixarem aos presentes algumas palavras antes da tão ansiada inauguração. Ana Cristina Pais (Diretora do Departamento de Cultura da Câmara), Inês de Medeiros (Presidente da Câmara Municipal de Almada) e os principais dinamizadores do projecto — Rui Miguel Abreu (Director do Rimas e Batidas), Daniel Freitas (rapper e produtor, mais conhecido por TNT), Francisco Freitas (fotógrafo e designer, mais conhecido por Chikolaev) e Ricardo Farinha (redactor principal do Rimas e Batidas) — deixaram algumas palavras ao microfone antes de Filhos do Meio ficar finalmente acessível a toda a gente.
Para quem está minimamente ligado à cultura hip hop, é impossível não sentir o doce sabor da nostalgia ao deambular pelas salas que o Museu de Almada reservou para esta grande mostra. A começar desde logo pelo vasto arquivo fotográfico exposto nas paredes, contendo rostos tão diversos desde General D e dos B-Boys Boxers até aos ORTEUM e João Pestana, passando por Nexo, M.A.C., Chullage ou Sanryse. Mas não só de imagens se fazem aqueles corredores repletos de memórias, destacando-se ainda uma espécie de santuário de rádios estilo boombox com duas dezenas de modelos diferentes, a mítica Yamaha QY10 onde foram edificadas as batidas contidas em Rapública, edições físicas de discos em vinil, CD e cassete, latas de spray, tábuas de skate ou cadernos de rimas, entre muita outra memorabilia.
A vida de Filhos do Meio, no entanto, não termina por aqui. Num futuro breve, toda a investigação feita para alicerçar a exposição vai gerar um par de conteúdos mais densos que certamente se vão tornar peças obrigatórias para o estudo da cultura hip hop no nosso país. Há um livro com mais de 200 páginas e um documentário de mais de uma hora a caminho, sendo que deste último já deu para “provar” um bocado através de uma versão encurtada, de 15 minutos, que está em exibição numa das salas do museu. O filme documental Filhos do Meio – Hip Hop à Margem recupera inúmeras filmagens de arquivo e combina-as com novas e preciosas entrevistas feitas no âmbito deste projecto, colocando em discurso directo gente como Bdjoy, General D, DarkSunn, M.A.C., Nelson Neves (dos B-Boys Boxers), KJB e Gutto (dos Black Company), MC Nilton e Jaws-T (dos Líderes da Nova Mensagem), Shiva ou o malogrado Davidson Gonçalves (dos Nexo), um nome muito influente cuja precoce morte no passado mês de Julho foi assinaladas nas páginas do ReB com uma sentida homenagem de TNT.
À saída da exposição, as emoções estavam todas à flor da pele e eram quase palpáveis os arrepios que sentiam aqueles que vivem este movimento como se fosse uma extensão natural das suas próprias vidas. Em alguns casos, era vísivel o brilho nos olhos que, contidos, ameaçavam largar aquela lágrima de orgulho, como se tivessem desbloqueado o achievement mais importante das suas caminhadas. Para os mais rodados nestas andanças, aqueles que vieram de uma altura em que o hip hop era olhado de lado e altamente descredibilizado, quase que se podia ler um “conseguimos!” estampado nos seus rostos, como se tivessem estado uma vida inteira à espera de ver algo em que tanto acreditam a ser reconhecido desta forma. É um sentimento de dever cumprido ao verem elevados a esta dimensão os feitos que estiveram na génese de uma corrente artística que hoje habita as camadas do mainstream e da qual poucos dos seus praticantes mais contemporâneos se dedicam a investigar a história. Agora está ali, em Almada, à vista de todos.
Ao Rimas e Batidas, a Presidente da Câmara de Almada conta que: “O que se está a ver aqui é muito bonito. Já se vêem várias gerações do hip hop aqui presentes. Sente-se que há uma renovação grande, mas que há um espírito que se mantém. Existe esta sensação de que, sim, somos margem. Há este orgulho em ser margem. Mas ser margem não é ser marginal. São as margens que muitas vezes revolucionam o centro. São os movimentos que se criam à margem aqueles que trazem a liberdade, a abertura, a justiça e a fraternidade para dentro.” Ainda aos microfones do ReB, deixa clara a intenção de continuar a dar oportunidades para que estes movimentos se possam expressar com maior visibilidade: “Do ponto-de-vista do município, acho que estamos a conseguir ter cada vez mais espaços abertos para o que a própria comunidade cria. Espaços de escuta, de conhecimento e de reconhecimento. A cultura é isso — é onde nos conhecemos e nos reconhecemos, através daquilo que cada um exprime. Almada tem esta grande tradição de ser um município que aposta muito na cultura, por isso acho que é um território diferente. Nós estamos sempre disponíveis para acolher, ouvir e promover estes movimentos, que depois têm várias derivações — do skate à dança e ao que mais vier. Só nunca deve é ser uma cultura institucionalizada, porque quando o poder acha que pode criar a cultura, dá sempre mau resultado. Os poderes devem é estar atentos e criar espaços que são de todos, para que estes movimentos possam surgir e crescer.”
Com o sol a pôr-se, esta grande inauguração de Filhos do Meio não se deu por concluída sem colcar em evidência a prática do MCing, aquela que mais contribuiu para elevar o estatuto do hip hop à escala global ao longo dos seus mais de 50 anos de vida. Pelo palco montado no Museu de Almada passaram três praticantes desta arte de diferentes gerações, cada um com o seu estilo, do mais clássico ao mais moderno. Tom Freakin’ Soyer, Dani G e Juana Na Rap foram os artistas escolhidos para animar o início da noite em modo de showcases, recorrendo aos seus temas mais badalados do momento e trazendo consigo alguns convidados para adocicar as actuações.
Quem disse que “só se dorme aqui”, mentiu, mas não errou quando apontou que é na Margem Sul o “sítio onde são feitos os sonhos”. Três décadas após uma pequena semente ter sido por ali plantada, hoje o hip hop é uma das formas de expressão artística de eleição transversal a todo o território português. And it don’t stop!