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Fotografia: Tomás Oliveira
Publicado a: 23/09/2022

Percursos sólidos e futuro à espreita.

Iminente’22 – Dia 1: sangue na batida, cruz na cabeça e assuntos internos

Fotografia: Tomás Oliveira
Publicado a: 23/09/2022

Foi um belíssimo arranque do Iminente, ainda que tenha sido um pouco ingrata a tarefa de Yaw Tembe e Joana Guerra. A sensibilidade da sua experimentação sonora, acústica e imagética contrastou com o difícil horário de abertura do festival, ainda para mais numa quinta-feira, às cinco e meia da tarde. Tarefa ingrata, dizíamos, mas que em nenhum momento beliscou a entrega desta inventiva dupla do universo da música experimental e improvisada. O exercício generoso que proporcionaram permitiu que cada uma e cada um de nós se fosse contactando com uma experiência sonora envolta num trabalho sobre a fragilidade e o efémero. 

Guerra e Tembe convidaram-nos para o seu encontro, para um diálogo eletroacústico, onde a sensibilidade do canto, do manuseamento do violoncelo, do trompete ou da flauta transversal, se iam conjugando com a manipulação da maquinaria eletrónica que ia cortando, desfiando novelos e cozendo uma paisagem sonora empenhada em desafiar as nossas próprias imagens. Tudo efémero, de apelo etéreo e cinematográfico, construído naquele tempo e naquele lugar. Uma escavação arqueológica da matéria sonora, em busca de outras possibilidades de futuro. Fomos poucos, mas fomos felizes observadores e participantes desta bela reunião onde a fragilidade do efémero se confrontou com a força da imaginação.  

– João Mineiro



São muitos anos de luta na bagagem e isso respira-se em cada momento do concerto de Landim, um dos pilares mais sólidos do rap crioulo em Portugal. O rapper apresenta-se confiante num palco que nunca foi demasiado amplo para a sua presença, ainda que, já a meio do concerto, admita que não é fácil estar ali em cima. Tarefa seguramente ajudada pelo companheiro Progvid, que para além de disparar os beats, canta cada um dos temas como se estivesse na frontline do concerto, ou pela sua tropa que, na lateral do palco, observa orgulhosamente o MC e vai puxando pelo público, antes de ocuparem todos juntos o palco, já no fim do concerto. 

Bem ancorado nas ruas, nas raízes e no futuro, houve um pouco de tudo no concerto de Landim: da celebração do seu mais recente Programa, editado em 2022, a uma viagem por outros temas da sua longa jornada; de um tributo aos históricos TWA e a Primero G, a uma exaltação a todos aqueles que nos bairros lutam, resistem e não desistem de sonhar; de uma homenagem aos seus que já partiram a uma celebração daqueles que lhes seguirão o exemplo e as pisadas. E ainda houve tempo, mesmo num concerto curto, para dar a voz ao seu mano Singa, companheiro de luta, e que soube ser protagonista daquele palco. 

Se há quem faça da exaltação da conquista individual o alfa e ómega da sua escrita, num exercício que tantas vezes roça alienação e o narcisismo, Landim representa o absoluto contrário da cultura do individualismo. É ele que ocupa o palco, com todo o direito, mas fá-lo com apurado sentido de representação: com ele está o bairro, aqueles que o habitam, aqueles que nele sonham, lutam e fazem da música um exercício de expressão, existência e esperança. Não se podia pedir melhor programa.  

– João Mineiro



O Palco Choque foi promovido ao piso superior. E essa subida ao andar principal significou um significativo aumento — de área. Desde as primeira edições do Festival Iminente, realizadas em Oeiras, esta é a que dá, literalmente, mais palco aos mais irreverentes artistas não despropositadamente alocados ao recinto do “choque”. Choque de ideias, abordagens, registos, culturas, personalidades. Muito do que se espera de Real Guns, com Escrevo Com Sangue ainda fresco, é uma palpável fome de palcos maiores na sua agenda — no seguimento da primeira actuação do dia, em que Landim teve direito a inaugurar o palco principal do festival. Aqui, pedido concedido. E o palanque tem espaço suficiente para a equipa de futebol (mais suplentes) que este “Messi na Barça” traz consigo. Cada um com o seu papel: um na guitarra, outro no saxofone (e que prestação teve Jeezas no meio disto tudo!), três centro campistas a distribuir som, alguns MCs na linha da frente a trocar versos com o capitão da turma, e uma série de adjuntos a acompanhar em segundo plano a(s) estrela(s) da hora. Se a princípio, quando a comitiva se preparava para dar início ao show, a plateia parecia acusar dores de crescimento (em número e expressividade), o jogo viraria e cedo se compôs, apresentando-se suficientemente compacta para corresponder à força que Real Guns e companhia imprimiram desde “GANG CONSPIRACY” e “SABOTAGEM” a “WAG1” e “NA MAPA”. É a força do “drill consciente”. Impossivel di barra.

– Paulo Pena



Apesar da longa estrada que o “puto urbano” já leva, há sempre uma boa dose de surpresa em cada actuação de ProfJam. Confirmamo-lo deste lado, já que o vimos há pouco mais de um mês no Sol da Caparica — e o que viríamos a assistir na primeira noite da segunda edição do Festival Iminente na Matinha seria completamente diferente, mesmo não fugindo ao alinhamento-regra. 

Desta vez, ProfJam arranca com “WUOW” — reacção apropriada à forma como se apresenta. Entra vestido de preto (e faz o luto?) da cabeça aos pés, cabeça essa que vem com uma cruz negra desenhada a cabelo. Visões de uma “música de intervenção divina” a ganhar forma mesmo à nossa frente. E, a espaços, é sobre as questões divinas que Mário Cotrim se debruça, dirigido ao público que claramente veio em grande número neste primeiro dia de festival para ver o rapper de Telheiras. Sempre apoiado por um invisível Mike El Nite, outrora parceiro de freguesia, Prof volta a alguns dos temas criados a partir desse núcleo da Zona T — com “Além” à cabeça, cujo vídeo foi precisamente gravado nas ruas dessa zona de Lisboa; mas houve mais matéria de Mixtakes a ser debitada.

“UAIA” revela-se um dos pontos altos desse factor surpresa reservado para esta noite; ainda assim, infelizmente, L-Ali não entra para rematar o seu verso. Com o arranque do “SISTEMA”, a deixa para benji price entrar está dada. Mas não é (pelo menos ainda) desta vez que o co-autor de SYSTEM marca presença. Só quando é chamado a depor em “TRIBUNAL” é que o rapper e produtor se apresenta para dividir versos com o parceiro da extinta Think Music. Ainda antes disso, foi LON3R JOHNY o primeiro a dar a cara, com “DAMN/SKY” a deixar o público (ainda mais) em êxtase. 

Da rave espoletada em “FAX” à versão onírica de “Tou Bem”, Prof assume um controlo absoluto da actuação. Corre de um lado para o outro, sua a energia que imprime na performance, refresca-se com garrafas de água (não-benta) por cima da cruz, levanta chamas a toda a hora, puxa pelos seus fãs e agradece-lhes vezes sem conta, canta de pulmões abertos, dança com vigor, mimetiza teatralmente as próprias letras, senta-se à boca de cena, deita-se no chão… One man show. Cada vez mais confiante nas suas inegáveis capacidades. E cada vez mais confortável a mostrá-las ao vivo. 

– Paulo Pena



AZIA tem feito um percurso peculiar até aqui, desde tocar numa banda de kuduro com Diron Animal a levar um precioso (e raro) cosign de Allen Halloween; um dos últimos marcos na sua carreira foi a vitória nos Novos Talentos FNAC 2022 na área da música. Mesmo tendo isso em conta, e é muito, o exercício de tentar explicar de antemão, e sem cair em lugares comuns, aquilo que se vai ouvir quando se entra no universo sonoro da autora de Causa Torpe é complicado — o melhor é mesmo experienciá-lo ao vivo, como pudemos fazer na edição deste ano do Iminente. Choque, o nome do palco onde actuou, assentou-lhe que nem uma luva, mas o embate não foi violento, agarrando muitos daqueles que se foram arriscando a aproximar daquele espaço e se deixaram fascinar pelos lugares escuros e lynchianos da psique da artista, que esteve sempre acompanhada por DJ Score e pontualmente ladeada por DEL. Voz e MPC (alguns dos beats disparados podiam ser encaminhados para uma certa Bruxa ou para um certo Sacana Nervoso), delírios (ou realidades distorcidas) e um desconforto que provoca mais do que afasta. Pode até ter chocado alguns do que apareceram lá sem saber o que iam escutar (imaginem entrar a meio de “BedTrip“…), mas apostamos que foram mais aqueles que saíram de lá a querer saber mais sobre quem é a AZIA.

– Alexandre Ribeiro



Primeiro eram dez, ainda tímidos. Depois foram vinte, que de forma cúmplice se entreolhavam. Quando chegaram aos quarenta, os corpos começaram a soltar-se e o Cine-Estúdio do Iminente já antecipava a pujante pista de dança que se anunciava. DJ ADAMM foi o primeiro avançado desta curadoria dirigida por Progressivu, que, nesta primeira fase do banquete sonoro, ainda era o caloroso anfitrião que ia cumprimentando todo o povo que chegava à festa. ADAMM entrou a rasgar e em nenhum momento se mostrou temeroso perante uma pista ainda em formação. Manter uma pista viva e vibrante não é uma tarefa fácil, mas saber construí-la é uma missão que só pode ser atribuída aos mais audazes. DJ ADAMM conquistou cada pessoa que entrava curiosa pela porta lateral do Cine-Estúdio e por lá se deixava ficar. Quando saiu de cena, a sua missão estava cumprida com distinção e os corpos já começavam a libertar os primeiros suores. 

DJ Stá assumiu o segundo andamento e, com as doses certas de potência e bom gosto, soube adensar ainda mais o calor e a cumplicidade da pista, com o seu registo amapiano, afrobeats e sempre sem fronteiras. Passagem após passagem, Stá fez as delícias de quem já não mais conseguiu abdicar daquela celebração. Seguiu-se DJ Doraemon que, quando assume as rédeas dos acontecimentos, já a confusão estava instalada: corpos expansivos e livres no espaço, rodas que se abriam, com muitas e muitos festivaleiros a arriscarem os seus mais criativos e originais solos de dança, ao som de poderosas batidas de afrohouse, kuduro e tarraxo. 

Progressivu fechou a cerimónia, sorridente e confiante de que a sua curadoria tinha cumprido a missão a que havia sido destinada. A pista era agora dele, para o clímax final. Ao leme da maquinaria, dançava mais que qualquer pessoa do público, perante uma pista que faria inveja a qualquer dos melhores clubs do mundo, mesmo que as condições acústicas não fossem as melhores. Quem preferiu a liberdade destes sons, destes ritmos e destes corpos às lições pastorais que se ouviam noutros palcos não se terá arrependido nem por um segundo. 

– João Mineiro



Uma voz de entusiasmo fazia-se ouvir a partir do backstage do palco Fábrica. Numa questão de segundos, BbyMutha entrava em cena acompanhada por Rick Sanchez, o homem que assume a função de DJ nos seus espectáculos em território europeu. “Mete qualquer coisa divertida a tocar”, pediu ao companheiro, enquanto ia interagindo com o público que já se encontrava presente e convidava aqueles que via à distância para se juntarem também. Visivelmente alegre, explicou que aquela se tratava da última paragem desta sua digressão e que estava a morrer de saudades dos quatro filhos. Além disso, afirmou que era a sua primeira vez em Portugal (a falta de memória atraiçoou-a, dado que esteve em 2019 no Mucho Flow, em Guimarães), e percebemos que se apaixonou instantaneamente por Lisboa. Motivos mais do que suficientes para se apresentar já embriagada em palco, como admitiu várias vezes, e munida de uma garrafa de Patrón ainda por estrear, que lhe viria a garantir o combustível necessário para aquele espectáculo. Antes de se atirar ao seu próprio repertório, disse “apetece-me fazer um bocado de twerk”, com o DJ a escolher “Munch (Feelin’ U)” como banda sonora para aquele momento.

Nascida em Tennessee, BbyMutha tem no seu som muitas das características dos lendários Three 6 Mafia, seja ao nível das batidas, dos flows e até mesmo das temáticas abordadas pela MC, com o devido upgrade derivado da era em que vivemos. Na atitude, mistura assertividade com sensualidade, a combinação de sucesso que, ao longo da história, fomos notando em estrelas como Lil Kim, Nicki Minaj, Cardi B ou, mais recentemente, em Ice Spice. Comunicadora nata e zero contida no que toca às palavras, não escondeu que veio à Europa “to get the bread” e que sente que a sua música, no seu país, já não é assim tão relevante nos dias que correm, isto porque apanhou alguém na plateia com uma t-shirt na qual se lia “Flop Era”, termo com o qual sentiu alguma afinidade.

Quis saber mais sobre uma mala verde que viu entre as gentes, deu conselhos de paternidade, frisou que as questões raciais não deviam existir (“interessa é se tens ou não classe”, atirou) e, já numa das últimas músicas, aproximou-se da frontline para abraçar e tirar fotos com aqueles que notou serem genuinamente seus fãs (havia um pequeno grupo de pessoas que parecia ter as letras todas na ponta da língua). Tudo isto num espectáculo que teve um planeamento próximo do zero: BbyMutha escolhia os temas que interpretava consoante o grau de humor e até deixou que fôssemos nós a fazer-lhe sugestões a dada altura — infelizmente, não tinha consigo o beat de “Heaven’s Little Bastard”, mas safou-nos com a versão acapella. “Rules”, “Toxic”, “Dream Sequence”, “BBC”, “Heavy Metal” (que há três anos lhe abriu a porta para o A COLORS SHOW) ou “Indian Hair (better install)” (do seu último CHERRYTAPE) foram algumas das canções que escutámos durante quase uma hora de concerto, com direito ainda a uma faixa inédita, que confessou ser a sua criação favorita dos últimos tempos.

– Gonçalo Oliveira



É, inegavelmente, um dos nomes mais entusiasmantes a surgir no nosso país nos últimos anos e é dono de uma carreira que está a ser gerida com pinças. Em três anos, Yuri NR5 soma apenas meia dúzia de canções alojadas nas principais plataformas de streaming, tendo, a meio, entrado para a Bridgetown com a promessa de começar a desenvolver aquele que será o seu primeiro disco. Este foi, por isso, um concerto de grande intensidade, mas de pouca duração. O rapper deu tudo o que tinha em cima do Palco Choque e nem uma amigdalite o proibiu de esticar as cordas vocais, aproveitando ao máximo aquele que está a ser o seu regresso aos palcos, depois da pandemia lhe ter cortado as asas — “nem consegui fazer música nova durante o confinamento”, chegou mesmo a confessar, remetendo a causa para os devastadores efeitos sociais derivados desse conturbado período que nos afectou a todos.

Com muito mais popularidade do que material editado, criam-se as condições perfeitas para que exista um certo culto em torno de Yuri NR5. E isso reflecte-se nas pessoas todas que, apesar da hora tardia a uma quinta-feira, aderiram em massa à pista de carrinhos de choque onde o rapper estava a tocar juntamente com a sua banda. E enquanto o tão esperado projecto de estreia não nos chega (ontem ainda se escutou uma curta amostra de um inédito que vai fazer parte desse alinhamento), as novas roupagens para “São Paulo”, “Eu Tou Fixe” ou a mais recente “Diva” vão-nos saciando a sede.

– Gonçalo Oliveira



Aos 54 anos, Pharoahe Monch é um dos mais antigos e emblemáticos MCs de Nova Iorque ainda em actividade. Um estatuto que, à partida, lhe deveria valer uma das plateias mais calorosas daquela noite. A verdade é que o rapper, que despontou ainda durante a década de 80 ao serviço dos Organized Konfusion, parece ter mais energia do que nós todos. Atrás de si (e também com a carga das pilhas no máximo) esteve DJ Boogie Blind, dos não menos lendários The X-Ecutioners, ele que agraciou cada faixa que surgiu com cortes precisos nas turntables que manuseava e assumiu total protagonismo a meio do set com uma breve rotina que envolveu muito scratch e beat juggling.

Por mais clássicos que Troy Jamerson tenha sob a sua alçada, as manifestações do público eram sempre contidas. E mesmo quando Monch tentava puxar pela plateia, entre os habituais jogos de interacção que os artistas da esfera hip hop costumam trazer para o palco, o efeito causado nas respostas era pouco audível. O norte-americano nunca desanimou e deu-nos a melhor versão de si mesmo, com entregas precisas, flows galopantes e um amplo leque de multies que amealhou ao longo de quase três décadas, através de quatro discos a solo e um sem-número de colaborações — no início desta semana, Sebastião Santana fez a filtragem ao seu catálogo e encontrou os seus 20 melhores versos.

Em cima do Gasómetro, Pharoahe Monch aproveitou o concerto em Lisboa para nos dar uma pequena masterclass. Lembrou J Dilla e Nate Dogg, falou um pouco sobre as suas origens, recordou episódios caricatos e ainda prestou uma homenagem a MF DOOM, ao reutilizar o instrumental de “One Beer” para recriar aquele que foi o verso que deixou registado em “Slam Dunk Contest”, de Your Old Droog e Tha God Fahim. Desde os temas primordiais que escreveu enquanto parte dos Organized Konfusion até aos pratos musicais mais recentes que tem andado a cozinhar, os momentos mais vibrantes da actuação do veterano davam-se ao som de Internal Affairs, o clássico LP que assinou em 1999 e que contém o ultra-inflamável “Simon Says”, facilmente posicionada no top 5 quando procuramos pelos mais sonantes hip hop anthems.

– Gonçalo Oliveira


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