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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 23/09/2019

Activismo, tecnicismo e africanismo

Iminente’19 – Dia 4: a música como arma de resistência e sobrevivência

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 23/09/2019

Ao contrário do que se viu nos primeiros três dias, o domingo no festival Iminente foi marcado maioritariamente por uma onda de calor que se fez sentir assim que se subia a Serra de Monsanto. A mudança meteorológica foi propícia ao mote deste último dia, mais orientado para as famílias. Havia crianças a correr pelo recinto, a comerem gelados junto às barraquinhas de comida, ou até mesmo a dormirem nos braços dos pais quando a noite já não puxava por elas. Apesar das várias actividades espalhadas pelo recinto que arregalavam os olhos aos mais novos, o cartaz não se vergou à população mais jovem — até porque havia outro grupo que também marcou uma presença pesada no festival. A verdade é que este dia era fortemente feito por minorias sociais e para minorias sociais. O factor cristalino do Iminente, no entanto, é precisamente o exemplo de como estas duas fracções podem facilmente dar as mãos e festejar o último dia do festival juntas. Aliás, uma não deve invalidar a outra e vice-versa.

A primeira prova viu-se por volta das 16 horas. Nesta altura, o Iminente ainda estava a meio gás, com cabos a serem puxados de um lado para o outro, construções a serem aparafusadas no palco principal e as pessoas na primeira cerveja. O festival começou lá em baixo, no Palco Cave, onde os Fado Bicha, vestidos a rigor, tocavam os primeiros acordes. A dupla composta por Lila Fadista e João Caçador pegou neste dia da família para mostrar que “famílias há muitas”. Havia crianças a correr pelo recinto, mas também pequenos que olhavam com atenção à actuação destes dois peritos em contar histórias. De “Bailarino Saloio” a “Bia da Mouraria”, passando até a um cover de “Quando se Gosta de Alguém”, de Amália Rodrigues, estes dois fazem uma ponte importante entre o Portugal que se cantava nos anos 60 e 70 e o retrato de como o país é agora. Fado para eles é uma arma carregada do longo prestígio e, nas suas palavras, todos têm um lugar nele. E assim prestaram homenagem a quem lhes deu um lugar para que o pudessem fazer: entre riffs abrasados de guitarra e vocais terebrantes, cantou-se para Elza Soares em “A Mulher do Fim do Mundo”, para Laura Crespo, uma figura importante do activismo trans em Portugal que se suicidou este ano e para Pedro Homem de Melo, poeta ilustre do século passado, em “Rapaz da Camisola Verde”. Segundo eles, “as pessoas LGBTQI sempre participaram no fado, mas as suas histórias nunca viram a luz do dia”. Com o decorrer do concerto, também houve espaço para momentos mais descontraídos, uma vez que o que estávamos a ver era acima de tudo uma celebração. “Crónicas do Macho Discreto” foi um mimo para a audiência, mas foi em “Lisboa, Não Sejas Racista” que a euforia se estabeleceu. A festa continuou, mas ainda havia muito para ver.

Subindo até ao último degrau, no palco Mezzanine, Odete preparava-se para apresentar a performance Anita Escorre Branco. Vestida com uma peça que podia ser da era vitoriana, com um nariz de bruxa e correntes que lhe caíam até às botas pretas, a artista espalhava desenhos pelo palco: cristais, chamas, espadas, lâminas, etc. A verdade é que o ambiente tornou-se místico e este ser, este: “eu nascida da violência, do desejo e da resistência”, passou a mensagem de resistência trans, de derivação farmacológica, de pertença e despertença, de naturalidades e irregularidades sociais. Com ela estiveram sempre presente as batidas electrónicas quase apocalípticas que definitivamente ajudaram a criar ambiente. Há desordem nas suas palavras, mas este sentimento é formulado e meticulosamente estudado após anos de discriminação, humilhação e rejeição médica e criativa. “O teatro espalha a natureza. Mentira! Eu não sou a natureza. Ser trans é partir o espelho e estar condenada a anos de azar”, gritou. Odete entrou tímida em palco, mas libertou-se consoante se desenrolava o seu número. Apesar de estar quase sempre presa ao papel, as suas palavras tinham mais força quando efectivamente o largava e olhava o público nos olhos. A actuação durou quase 15 minutos, o que foi um aspecto negativo: terminou logo no momento em que todos estavam cativados, à espera de novos ensinamentos.

No Palco Cave, o Iminente recebeu Ailton José Matavela, de nome profissional TRKZ(pronunciado “tricks”; perfil brevemente no ReB), pela segunda vez — actuara em 2017, com o EP Filhos da Terra na bagagem. Caso se tenham encontrado na sala repetentes dessa edição, poderá ter havido um choque: já não se trata de um artista de rimas — por vezes fragosas, mais amiúde gentis — e batidas orgânicas, de incisão social e estabelecimento da vida adulta. Mas não há que ficar alarmado.

Apoiando o disco de estreia Storytellers, Matavela enveredou por uma rota catártica, um curso natural em que o som vem como fruto e torna-se narrador. Quando conseguimos descer até ao nosso destino, adornado com intervenções pictóricas e vídeo (destaque para António Brito Guterres & João Melo), já o músico moçambicano e os seus companheiros se tornavam uma instalação plantada firmemente na sala mais recôndita do festival. Um auditório cativo revelava-se suspenso na sua toada: Renato Almeida acaricia o baixo, Ivan Gomes dedilha a guitarra eléctrica, Tiago Romão tacteia as teclas e o percussionista Natalian Melo, emprestado da banda de Selma Uamusse, lançava a cor para o ar. Em cócoras, Matavela examinava em silêncio cada elemento, controlando-os, escutando-os. Não pudemos verificar até que ponto a catarse em disco se mantém ao vivo, mas ainda ouvimos “Harmonic Motions”, injectada com nova vitalidade pelo dinamismo de Melo, e “Truth (Dream)”, acelerada antes de estabilizar na suavidade original — e nunca na dormência.

Em plena luz do dia, imperavam os passos de dança e ritmos cálidos, tudo sob a mão de Chalo Correia. Sendo um dos maiores impulsionadores da música angolana em Portugal, a sonoridade passa pelas brasas do kuduro, do merengue e do semba. Estes sons encheram o Palco Outdoor, uma vez que as pessoas não o fizeram. Correia deu uma hora de pura alegria e euforia, mas o seu trabalho infelizmente serviu para um público em passagem, que parava para perceber quem estava em palco para depois seguir outros caminhos. No entanto, quem decidiu ficar ouviu grandes temas como “Mariana” e “Kudihohola”. O artista está de momento a trabalhar no próximo disco, sucessor a Akuá Musseque, e mostrou a Monsanto um pequeno cheiro do que está para vir.

Cortesia de Cachupa Psicadélica, o Palco Escada acolheu algo igualmente cálido. O espaço estava à pinha para imergir no psicadelismo lo-fi comandado pelo cabo-verdiano, obrigando-nos a subir para o primeiro piso, e por boa razão (mesmo sem conseguirmos ouvir as suas palavras). A moldura aérea foi um miradouro para o transe que, durante uma hora, foi lei vigente: converteu os ritmos numa ginga inebriante, que bafejou a cara de cada músico e nos subordinou ao mesmo compasso. Como primeira surpresa, trouxe o veterano do rap Chullage e as acutilantes barras que são o seu instrumento, fazendo-se acompanhar depois por outro colaborador inesperado: um dos comandantes dos Rádio Macau — o vulto que é Flak. Entre a portentosa guitarra do protagonista, as teclas e os pads, anulou-se o frio lá fora com uma cachupa bem servida.

O grupo de Lula’s, ele que é de São Vicente, fez a ponte com os vultos que nos esperavam lá fora. Como simulacro para nos preparar, importaram uma morna da ilha de Santiago;  entretanto, os Bulimundo originais, de carne e osso, já estavam à distância de umas escadas em caracol e mais alguns passinhos. Zeca di nha Reinalda tomou as rédeas do Palco Outdoor com o funaná que se tornou a sua vida em 1978, quando Carlos Alberto Martins fez nascer estes pesos-pesados de Cabo Verde.

Esse não é mais que o título justo para quem devolveu as raízes musicais a um país no despertar da repressão. Volvida uma carreira a espalhar o júbilo puro da sua música, recuperaram a sua unidade em 2017 para o continuarem a fazer. Estivemos lá e garantimos: o lugar dos Bulimundo não é em vinil esquecido ou inflacionado no Discogs — é agora. Connosco: a sua longa e saborosa combustão a orquestrar este crepúsculo que podia ser eterno, em que o guitarrista e o saxofonista prolongam a sua pequena coreografia, entre as centenas que brotam no público. Com Zeca a estender o grito de saudade que suporta o clássico “Tó Martins”, o seu grito de saudade materna, para sempre. Sorte nossa: “Vamos voltar em breve para estarmos convosco”, jurou-nos antes da vénia final.

Já agora, por falar em momentos memoráveis do festival, o concerto de Sreya não foi um deles. A artista apresentou-se com um pé partido e com alguns problemas de som, mas nenhum desses factores prejudicou a prestação em geral. É importante referir que Rita Moreira, o nome verdadeiro, sabe comunicar com uma audiência e sabe, sem dúvida, reuni-la para um concerto. Novamente no Palco Cave, a cantora tinha os fãs mais fiéis na fila da frente e os amigos mais próximos a rirem-se das histórias que partilhava com o público. Sreya é uma amiga próxima de Conan Osiris e a troca de ideias e as influências musicais partilhadas entre ambos fluem naturalmente. Entre “Miúdo Normal”, 59 Estrelas” e “OMG!”, há um elemento frenético que mistura um pop experimental a uma sensibilidade r&b. Este é possivelmente o único aspecto cativante na sua mestria e o único apoio a que nos podemos agarrar. A voz de Sreya é fraca e facilmente abafada pelos barulhos estridentes da própria produção. As letras são amadoras e, tendo um vínculo mais desprevenido ou não, não se percebe se foram feitas com um propósito sério ou apenas num exercício entre amigos. Não valia a pena desperdiçar tempo a ver mais dela e qualquer minuto a mais seria apenas um minuto em vão.

Com o cair da noite, já o Iminente tinha ouvido um pouco do som de vários cantos do mundo, mas o melhor ainda estava para vir. De volta à Cave, completamente cheia pela primeira vez neste dia, esperava-se ansiosamente por Linn da Quebrada. Esta cantora, produtora, activista trans, chegou e todos os olhos pairavam sobre ela. “Quem tem medo da Linn” ouvia-se numloop quase demoníaco enquanto a cantora entrava vestida de vermelho e com uma vela acesa na mão. A cera quente escorria-lhe pelos braços, mas essa seria das dores mais leves que suportou ao longo da sua vida. Linn cresceu nas periferias paulistas, num ambiente bastante machista e conservador. Já em adulta, regressou a São Paulo onde começou a fazer espectáculos em clubes nocturnos. No entanto, a possibilidade de se afirmar enquanto artista trans foi sempre um impedimento num país onde 163 pessoas transsexuais foram assassinadas no ano passado. A realidade é dura e tenebrosa, mas Linn usa essa dor na sua arte; e proporcionou das actuações mais surpreendentes desta edição do festival. Ao contrário do cenário maioritariamente funk e pop dos seus registos, Linn cantou por detrás de batidas electro-house que aliavam o seu reportório a um corpo holístico e bem composto: mal fazia pausas entre músicas e abria espaço para o improviso.

Havia uma presença quase profética levando cada membro do recinto a cantar cada palavra. Houve espaço para “Bixa Travesty”, “Submissa do 7º Dia”, “Bomba pra Caralho” e até mesmo “Bixa Preta”. “A minha pele preta é meu manto de coragem/ Impulsiono movimento/ Envaidece a viadagem”, cantou na última. Com ela, veio todo o peso de um passado que é duro esquecer e infelizmente partilhado por pessoas com uma história semelhante à dela. Com a música dela, cria-se um espaço para que estas demografias marginalizadas pela sociedade consigam ter algo que gritar nas ruas, algo com que se possam identificar. Ao seu lado havia frases que apontavam para amor-próprio, transfobia e discriminação. Linn partilha a dor das pessoas maquilhadas na fila da frente percebe a luta de quem se sente apaixonado pelo mesmo género. Em “Fake Dói”, o mais recente single, aponta o dedo a uma sociedade heteronormativa e cisgénero que a desilude e a rebaixa à luz da desigualdade. Ainda há problemas a resolver quando falamos sobre direitos humanos, mas Linn tem crentes devotos e terminou este espectáculo no meio deles, no meio da multidão. Às 21h45, a missa estava dada.

Outro evangelho seria pregado em instantes, com honras de palco principal — que poderíamos desejar para Linn da Quebrada, mas teria aquele reduto mágico de transgressão resistido em escala maior? Talvez não. Após a claustrofobia convocada pelo palco Cave, há finalmente espaço para respirar e dançar. Se conseguirem, claro está, não ficar paralisados perante o grande monstro bicéfalo que são os Beatbombers.

DJ Ride e Stereossauro nunca se coíbem de mostrar a razão pela qual são “bi-campeões mundiais de scratch e turntablism”, a câmara a revelar o setup em permanente manipulação era razão suficiente para nos deixar em êxtase. Não foi uma vez isolada: afinal, a voz e a feição de Ana Moura veio “Depressa Demais”, um dos primeiros temas num alinhamento que vincou essencialmente o álbum do duo (ponto alto: “Puristas”, com Slow J apenas em áudio) e o novo clássico Bairro da Ponte.

O último foi celebrado na companhia do guitarrista Ricardo Gordo, com um surpreendentemente brando Nerve (um “Ingrato” que trouxe a “Lápide” atrás e a quem se perdoa o esquecimento do título do disco) e um feroz Chullage (para “FFFFF”) a marcarem presença. Tudo o resto recebemos como dádiva: o funk elástico de “Superstition”, o beligerante novo clássico “This Is America”, o “Fumo Denso” patrocinado por Capicua… Mas o que mais nos conforta é o sentido tributo a 40 anos de hip hop. Missy Elliott, Ice Cube, Lauryn Hill, Ludacris, Fat Joe, The Game, Jigga, Nicki Minaj (pré-reforma, isto é), Chamillionaire, T.I., Jeezy, Ye, Lil’ Jon, Tupac — um desfile de vozes cruciais que nos deixa sem fôlego só de o recordar. E temos todas as razões para também assim nos lembrarmos do Iminente. Até para o ano.


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