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Publicado a: 22/09/2018

Iminente, Dia 1: tanta arte e tanta gente num gigante de betão

Publicado a: 22/09/2018

[TEXTO] Inês Mineiro Abreu [FOTOS] Nash Does Work/Iminente

Um forasteiro que caísse ontem largado no meio do pulmão de Lisboa que é Monsanto deparar-se-ia com um cenário fora do vulgar. Os ecos musicais vindos do meio da vegetação seriam o trilho para o caminho de um gigante esqueleto de betão, o antigo Restaurante Panorâmico de Monsanto, palco durante este fim-de-semana para o festival de arte urbana Iminente, que se realiza há três anos por iniciativa do talvez mais internacional street artist português, Vhils.

A antecipação de quem se aproxima ansioso do recinto do festival, pelas estradas cortadas de Monsanto, inflama-se ainda mais com a curiosidade de quem se estreia pela primeira vez no Iminente e, por isso, não sabe exactamente o que esperar. Muito menos no caso de alguém que até já tinha acampado clandestinamente no Panorâmico de Monsanto com um grupo de amigos igualmente irresponsáveis, há coisa de dois ou três anos. Nessa noite fiquei a conhecer o que para mim se tornou um dos espaços mais especiais de Lisboa – um edifício alienígena, pela sua arquitectura e dimensões monumentais, com uma cúpula que mais parece um objecto voador extraterrestre que ali pousou. A singularidade do gigante de betão é reforçada pelo despojamento do que outrora fora o miolo daquela construção, pelo seu isolamento em relação ao resto da cidade e pelas dimensões que o impõem e que nos permitem ver, no topo da sua cúpula, a paisagem urbana lisboeta. Era uma espécie de museu abandonado ao ar livre cujo acervo artístico era constituído pelas pinturas dos writers anónimos e pelo próprio edifício, também ele uma obra de arte clandestina, urbana, arruinada.

O carácter artístico e museológico do Panorâmico é durante os dias 21, 22 e 23 de Setembro reforçado pela organização do festival Iminente. Do ponto de vista de quem acampou às escondidas neste mesmo edifício devoluto já há uns anos, a curiosidade sobre como seria a sua utilização durante um festival de arte urbana e de música é inevitável. O programa do festival vem acrescentar novas intervenções artísticas ao Panorâmico, enriquecendo-o com peças de artistas proeminentes da cena artística urbana portuguesa como o já referido Alexandre Farto, Wasted Rita, Miguel Januário com o seu projecto ±maismenos±, entre outros, numa linguagem que entra em consonância com o que o edifício já tinha em exposição há muito tempo: a da intervenção social, a da expansão cultural, a da expressão criativa da contemporaneidade. O Iminente sublinha, assim, respeitando a crueza e identidade do Panorâmico, a emergência das culturas suburbanas destes tempos, atribuindo ao espaço do antigo restaurante e actual miradouro uma dimensão de actuação e intervenção artística.

Da montra em que se transformou o Panorâmico, tornado galeria de arte urbana durante este fim-de-semana, programou-se uma banda sonora para o festival que concorda com estes conceitos. Da panóplia de artistas musicais portugueses que já tocaram nas três edições do festival, juntaram-se este ano músicos de outras fronteiras com uma contribuição decisiva para o espírito próprio do festival. 

Devo confessar que fui atraída ao festival por três artistas em particular — Conan Osiris, Bonga e Omar Souleyman — que, se calhar para surpresa de muitos, têm muito mais em comum do que se poderia esperar. Ainda que naturais de três países distintos e geograficamente bastante distantes (respectivamente Portugal, Angola e Síria), o que lhes determina backgrounds culturais, expressões musicais e até línguas muito diferentes entre si, os três partilham de uma excentricidade, originalidade e até activismo político e social que lhes é muito próprio.

O primeiro concerto a abrir o festival foi o de Conan Osiris, jovem artista português que tem recentemente ganho reconhecimento e desafiado as convenções musicais pelo seu repertório inclassificável que agrega as mais diversas influências. Um concerto do Conan é uma sopa de letras musical na qual não se encontram palavras escondidas, mas antes referências inesperadas que variam de acordo com quem as ouve. Há quem o compare a uma espécie de António Variações do século XXI ou quem pressinta o canto cigano na sua postura vocal; podemos ainda interpretá-lo como um fadista transgressor dos novos tempos que canta sobre instrumentais contaminados de techno, funaná, hip-hop ou música popular portuguesa. Se a sua escolha por parte dos programadores para concerto de abertura do Iminente não foi intencional, acabou ao menos por se tornar uma coincidência engraçada, no sentido em que é sugestiva a maneira como o ecletismo do concerto de Conan Osiris nos dá umas luzes sobre o que podemos esperar do resto do festival.

Surpreendentemente, Bonga e Omar Souleyman partilham muito com Conan. Bonga, por um lado, preservou a música tradicional angolana nas canções num período de turbulências políticas em que a colonização portuguesa era uma realidade. Já adulto, Bonga, ou Barceló de Carvalho, lutou pela independência do seu país como um activista social e político, o que lhe custou a sua segurança em Portugal e a fuga para a Holanda, ameaçada pela PIDE. Por outro, Omar Souleyman, cuja carreira descolou quando se tornou músico de casamentos na Síria, com um estilo artístico próprio que adapta a música tradicional da sua região a beats electrónicos e riffs de teclado psicadélicos, viveu a condição de refugiado na Turquia quando o seu país natal não lhe pôde mais oferecer a estabilidade e segurança necessárias. É pelo amor ao seu país e pela dor que sente com a crise que destrói a Síria que dedica o seu último álbum, To Syria With Love, ao país onde nasceu. Por fim, a intervenção social e política também não escapa a Conan Osiris, que apelou durante o seu concerto no Iminente aos fãs, para que visitassem o novo mural de Vhils dedicado a Marielle Franco, activista brasileira assassinada a Março de 2018 e para que assinassem a petição promovida pela Amnistia Internacional em colaboração com Vhils no âmbito da procura pela justiça para o seu homicídio.

Por fim, também estes artistas têm a preservação das influências culturais que demarcaram a sua autobiografia na sua música. Conan Osiris, que atribui a sua cultura musical à mãe, que nos dias de limpeza da casa, subia o volume da rádio de lá de casa para ouvir desde música popular portuguesa a kizombas; Bonga, que absorveu na sua obra os artistas que ouvia nas musseques e Omar que prometeu homenagear no seu repertório os músicos da sua terra que cresceu a ouvir.

Acredito que estes três artistas, que ontem à noite fizeram a sua magia no festival Iminente, ilustram bem o que é legítimo esperar deste evento: a importância da expressão cultural e artística, a relevância das novas vozes contemporâneas e do que elas têm para nos dizer e a capacidade de reinvenção de antigas referências em novos moldes, de quebra de convenções, de questionamento do que veio antes e do que vem agora. A beleza de tudo isto é o poder que eventos como este têm de reunir os mais diversos autores de tão diferentes expressões artísticas e o poder que a arte tem de reunir um público igualmente tão múltiplo e ainda assim perfeitamente capaz de sentir tudo o que tem diante dos olhos e ouvidos com igual intensidade e entusiasmo.

 


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