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Fotografia: Carolina Ribeiro
Publicado a: 29/04/2025

Dentro dum maquis cósmico-sonoro, numa garagem.

Ilpo Väisänen & João Pais Filipe na Lovers & Lollypops: no princípio era uma síncope sem fim

Fotografia: Carolina Ribeiro
Publicado a: 29/04/2025

Encontro trazido desde o desejo e vontade de um dos mais fulgurantes percutores e escultores sonoros da actualidade — João Pais Filipe. O fazedor de gongos, com caras esculpidas ao centro, que vai conjurando duos com relevantes músicos, de Burnt Friedman a Valentina Magaletti, chamou para perto, desta feita, um dos seminais exploradores sónicos da electrónica experimental, o músico finlandês Ilpo Väisänen.

Junto com o malogrado Mika Vainio (m. 2017, numa ravina junto ao mar), Väisänen expandiu pelos campos da música de vanguarda, partindo de muita maquinaria de circuitos inventados nuns reverberantes Pan Sonic. Esse duo (por vezes trio) finlandês (baseado em Turku), cultivou campos da tundra nórdica e fez-se notar (e bem) enquanto perdurou sobre muitas mais paisagens. Pais Filipe foi, enquanto ouvinte, marcado por essa brisa escandinava. Passaram todos estes anos e por fim tornou-se possível a vinda, para uma residência no Porto, de mais um dos seus mestres na alquimia dos sons sincopados.

A editora Lovers & Lollypops, desde o seu centro de operações no criativo bairro do Bonfim no Porto, tem na sua garagem um subterrâneo dínamo como espaço de concertos. Desta feita, na terceira sessão “Em Bruto”, dia 23 de Abril, recebeu a dupla de acção em partilha.

Uma roda projectada na parede marca o cenário entre os dispositivos sonoros. Os raios azuis podem ser como os de uma bicicleta ou uma visão de uma umbela floral desde um voo apícola. Em ambas as visões depressa se impõem cintilantes movimentos tremeluzentes ao ritmo dos sons. É a derradeira visão oferecida no lugar. Apressam-se a desligar-nos em viagens dali para fora ou mais densamente sem sair do lugar. Pais Filipe responde ao estímulo de Väisänen, feito o primordial disparo nos comandos do semi-modular. Uma maré que chega sem aviso, um atonal tsunami, nada qualquer. Nos micro-relevos da onda surgem os crepusculares ritmos sincopados. É ainda o relevo vindo da espuma. Väisäsen traz textura, Pais Filipe traz ritmo. As membranas reverberam-se, em sístoles e diástoles bombeiam-se os fluxos internos. São da natureza orgânica o das semi-congas, e são inorgânicas as da electrónica — vibrantes membranas. Uns de olhos bem fechados, outras de olhos bem abertos, muitos (todas e todos, oxalá) neste sincopado tribalismo cósmico. Criando uma paisagem em desejo, chamemos-lhe uma tundra no mediterrâneo. Fim de primeiro desejo consumado, num sábio retardador-acelerador, ao leme de Väisänen.

E como nessa associação vegetal, emaranhado rasteiro vegetal que resolveram chamar de maquis, adensam-se sincopados sons. Não se vêem alecrins, urzes, helicrisos ou a chamativa flor das estevas, mas sente-se um matagal familiar sem nome próprio, na vez dos aromas sentem-se propagadas ondas sónicas de Väisänen que os autóctones ritmos de Pais Filipe entrelaçam. Será isto o cosmos espelhado numa paisagem? Um espraiar de uma nota pedal, feita em intermitente drone, descansa as membranas, convoca o grande gongo. Pais Filipe como que assume a vez de artífice construtor, parece querer serrar com arco de serdas os limites físicos do grande disco de metal. Seguimos pelas franjas desta poesia sonora. 

Como num terceiro andamento, desponta uma batida forte dos sintetizadores, que convoca os tubulares da percussão. Soa a chuva cósmica em dia de calor, como que volatiliza ao embater no tal maquis sentido. Toda uma aura a sublimar-se. Um sentido de inversão nisto, como fogos de artifício que implodem, centrados para dentro no explodir. Um certo sugar no ritmo sincopado. 

E ao quarto movimento desta dança imaginada, ainda que seja de repouso o ver desta música, passamos aos desígnios de uma catarse sónica. Desprendimentos e devaneios invadem o espaço. Deixa de haver um ritmo primordial e jogam os elementos até um resultar nuns nada quaisquer espasmos. Faz todo o sentido escrever “pan” — raiz de totalidade, assume-se como ideal rótulo descritor. 

O epílogo desta viagem faz todo o sentido que se aponte ao cosmos de forma flagrante. Entre tímbalos e pulsares, sentimos os quarks como a depuração da matéria, vistos nos estalidos sónicos. No plano telúrico, é como se regressássemos de um prolongada estadia numa sauna. Conjugados estímulos de saturação, nos limites térmicos, exaustão e refrescar. Ouvem-se trauteios de uns cascos cósmicos. Nem saberemos ao certos se temos os pés bem assentes nestes tapetes ou no cimento desta garagem. Vê-se a coroa solar neste pôr do sol, é hora disso mesmo. Fundamental presença esta, ao sabor de uma síncope dum ritmo sem fim.


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