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Fotografia: Ana Larruy
Publicado a: 05/04/2022

Canto em amazigh em Ponta Delgada? Sim, vai acontecer.

Ikram Bouloum: “A música fez-me acreditar que é possível gerar processos transformativos”

Fotografia: Ana Larruy
Publicado a: 05/04/2022

Ikram Bouloum. O seu nome ainda não dirá muito a ouvidos portugueses, mas vai dizer. Porque actuará no festival açoriano Tremor a 6 de Abril (é já amanhã, atenção!) e porque esta cantora marroquina sediada na Catalunha iniciou uma colaboração com Pedro Mafama de que conheceremos os frutos num futuro próximo.

Entre a tradição amazigh do Norte de Marrocos e a electrónica da club music, o caminho trilhado pela também DJ, jornalista, fotógrafa e investigadora universitária é deveras cativante e irá com certeza interessar-nos muito, até devido à nossa ancestralidade moura e à importância da sua visão empoderadora, decolonial e feminista.

O Rimas e Batidas conversou com ela a propósito da sua vinda aos Açores:



Ha-bb5 é o seu primeiro EP e o que vem com ele é a sua nova faceta como cantora – antes, era uma DJ. Podia perguntar-lhe simplesmente sobre essa conversão de papéis na música, mas há algo mais: também é jornalista, fotógrafa e académica. Todas essas dedicações correspondem a aspectos diferentes da sua personalidade ou acha que há conexões internas entre elas?

Já considerei que era o resultado da minha personalidade, mas ao longo dos anos verifiquei que tudo foi um pouco mais longe. O eixo de todas essas práticas é a música. Nunca me aconteceu relativamente a outras coisas. Não é apenas por ser apaixonada pela música: fui-me sempre explicando através dela. Explorei diferentes e mais largas maneiras de explicar coisas íntimas e complexas, o que é mais importante do que gostos e preferências.

Nasceu na Catalunha de pais marroquinos e canta sobretudo em amazigh, uma língua minoritária do Magrebe, no contexto de uma club music global, transnacional e urbana. Por outras palavras, usa a ideia de “choque de culturas” e explora a sua própria identidade. Onde é que se situa: nas suas raízes marroquinas, na mistura dessas raízes com a cultura catalã, em alguma noção de um mundo cosmopolitano?

Costumava pensar que a identidade tinha de ser algo de sólido, fechado e claro. Se deixei de entender as coisas assim, era porque estava tudo errado. A sociedade fez com que tivesse de escolher: eu não podia ser marroquina e catalã ao mesmo tempo, tinha de ser ou uma coisa ou outra. Enquanto cresci, e acima de tudo graças à música, fui encontrando comunidades que sentiam da mesma forma que eu. Ajudaram-me a entender que a nossa identidade é fluida, que não temos de nos encontrar numa coisa específica e sim cuidar de todos os aspectos que fazem com que sejamos o que somos.

Disse em diversas entrevistas que tem uma abordagem ética da música, reflectindo-se esta nas letras. O que me pode dizer mais sobre essa questão?

A música inspirou-me e fez-me acreditar que é possível gerar processos transformativos. O que o deconstructed Club e o reconstructed Club significou para gerações como a minha é precioso, pois ajudou a criar espaços muito necessários para abrir diálogos sobre temas que antes não tinham lugar no discurso público, pelo menos nessa perspectiva. Respondendo de um modo mais pessoal, digo também que o meu trabalho tem motivação ética porque, no que respeita às minhas referências mais imediatas, não conheço nenhuma rapariga de origem marroquina que se dedique à música. Raparigas como eu não consideram uma dedicação musical, e quando o querem fazer é todo um processo emocional que se encadeia.

Quando comecei a ser DJ tive de fazer um importante trabalho pessoal com a minha família e com a comunidade marroquina para quebrar com os preconceitos. Isso motivou-me a escrever e a entender o que tudo isto significa. Foi então que decidi desenvolver este projecto e o que me motivou mais foi a ideia de que a minha irmã mais nova pudesse ter um imaginário com mais referências. 

As suas canções são sobre empoderamento, decolonização e emancipação, com uma perspectiva feminista interseccional. O que me pode adiantar a propósito?

Quando me propus trabalhar neste projecto, ficou claro para mim que os pilares desta viagem sónica tinham de ser construídos com essas perspectivas. Falar sobre o choque de culturas, a migração, a memória herdada e a feminilidade num contexto diaspórico é sempre complexo e torna-se necessário criar essas condições de modo a ter um lugar seguro.

O título do seu EP tem alguns significados interiores que são importantes para si. Pode explicá-los, para que entendamos melhor a sua mensagem?

O título contém duas camadas conceptuais. A mais directa refere-se ao número 5, representada na mão de Fátima, que é um símbolo de defesa e protecção. Já o outro tem um significado mais profundo: a história começa pela narração de uma tragédia, a qual, com essência homérica, inicia uma viagem sonora em que testemunhamos o nascimento de uma entidade virtual com forma abstracta e cristalina, bb5. Esta criatura, criada pela protecção e pela luz, representa metaforicamente o meu alter-ego e tem a função de transitar pelo espaço-tempo para explicar as aventuras e desventuras que herdei. Nascida a meio, a sua condição leva-a a formar e sustentar diversas ligações que a libertam da sua carga ancestral: choque de culturas.



Como com certeza saberá, Portugal tem uma forte e histórica influência moura. Acha que a sua música interessará particularmente a ouvidos portugueses? Na Catalunha que recepção tem tido, devida a algum tipo de identificação cultural resultante de interacções do passado?

Não estou certa de nada, mas o que posso dizer é que comecei a construir uma forte conexão com Portugal. O ano passado comecei a trabalhar com Pedro Mafama e ele falou-me bastante sobre a história ancestral do vosso país, que me parece bastante familiar. Esse passado mouro de Portugal fez-me gerar toda uma relação artística e deu-me um novo cenário para investigar.

Na Catalunha, a recepção tem sido interessante. Tenho a sensação de que o EP abriu um diálogo e o público demonstra uma grande empatia, ouvindo com atenção e procurando entender.

O seu EP foi lançado pela So Urgent, a editora fundada pelo produtor MANS O, que produziu Ha-bb5 e toca consigo em concerto. Como tem sido essa colaboração?

É o meu companheiro de vida e uma das pessoas em quem confio mais. No momento em que comecei a trabalhar neste projecto não tive dúvidas de que seria com ele que eu quereria desenvolver esta música tão íntima. Tem um enorme talento a produzir e ao mesmo tempo está muito próximo de mim. Isso ajudou imenso no processo criativo e na definição do som de que eu estava à procura.

É pelo facto de bb5, o seu alter-ego, ter um carácter alienígena ou divino que utiliza a voz quase sempre processada electronicamente?

Sim, é isso precisamente. É como que um feitiço, um processo simbólico que envolve uma providência divina e representa um conflito de identidade. Desenhando padrões de cinco sons, canalizo essa condição num registo íntimo através da voz, providenciando realidades que remodelam a tradição amazigh e o imaginário da diáspora, assim catalisando a sua dimensão política e espiritual.

Suponho que já reuniou uma audiência específica. É diferente da que tinha como DJ ou mudou? Já consegue definir o perfil das pessoas que a ouvem?

A minha audiência evoluiu e expandiu-se de formas interessantes. O que me alegrou bastante foi ter-me ligado com a comunidade diaspórica marroquina e ao mesmo tempo ter alcançado a cena artística e ter-me ligado a esta.

O seu EP foi lançado em 2021. O que vem a seguir? Há planos para um álbum? E este será a continuação das fórmulas apresentadas pelas cinco canções reunidas ou haverá mudanças?

Comecei a trabalhar no meu álbum já em 2021. O som a que estou a chegar retoma a estética de Ha-bb5, mas vai mais longe. Essa segunda obra é tão conceptual como a primeira. Estou ansiosa por poder partilhá-la. Se tudo correr bem, estará cá fora no início de 2023.


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