É uma frase – ou uma ideia e, talvez, quase um pilar civilizacional – que contém mundos dentro: “O meio é a mensagem”. Ao invés de se esgotar, esse pensamento, que Marshall McLuhan enunciou ainda na primeira metade dos anos 60, nunca foi tão premente quanto nesta era de constante revolução comunicacional em que parece que basta piscar os olhos para se perder uma qualquer nova tendência (será que se discute Tik Tok nas salas do Clubhouse?…). Portanto, neste estranho 2021, quando a aldeia global de que o teórico canadiano da comunicação também falou se parece ter fragmentado em bolhas forçadas ao confinamento (há quanto tempo não viajamos?), há que questionar qual é o meio de IKOQWE? Quer dizer, qual a via de comunicação que Batida, aka Pedro Coquenão, e Ikonoklasta, aka Luaty Beirão, elegeram para se fazerem ouvir? A internet, claro: mas esse é o meio que todo o planeta usa e que já não chega, por si só, para definir o significado da mensagem. The Beginning, The Medium, The End and The Infinite, o álbum de estreia da dupla, também elege como meio de expressão a música electrónica, mas, de certa maneira, toda a música que hoje se faz é electrónica já que pensada, executada e propagada sob a forma de zeros e uns. Então? Será o meio que importa sublinhar no caso IKOQWE o do afrofuturismo disruptivo? Talvez.
O álbum com que Batida e Ikonoklasta agora se (re)apresentam ao mundo sai numa editora belga e foi produzido acedendo, a partir de Lisboa e Luanda, a arquivos de música de Angola depositados na Cidade do Cabo, África do Sul… Talvez a aldeia ainda seja global, afinal de contas, e o Spotify seja a praça central onde todos os habitantes da aldeia se reúnem para escutar as novidades dos griots. E é isso que Pedro e Luaty podem reclamar ser: griots futuristas, os aventureiros que cruzam mundo para recolherem as histórias que depois vão transmitindo a quem lhes quiser dar ouvidos.
O meio aqui é, portanto, o da criatividade pura: música híbrida, revolucionariamente mestiça, que reclama a fundacional ideia da citação imposta pelo hip hop desde o início, adiciona-lhe décadas de um continuum dançante que continua a transmutar-se, pega na memória ancestral de ritmos culturalmente injectados no ADN dos seus autores e, com ferramentas americanas (obrigado, senhor Steve Jobs) ou japonesas (obrigado, senhor Roland…), com calão bem português e um libertário pensamento internacionalista, com cadências esculpidas pela diáspora, do Roque Santeiro à Trenchtown, da Buraca ao Bronx, oferecendo-nos no final de tão vasta viagem um objecto tão mutante quanto puro de intenções, tão dançante quanto denso de pensamentos, tão hedonista quanto sério nos seus propósitos.
Este álbum é contido: para lá da dupla Batida/Ikonoklasta há apenas pontuais participações de Spoek Mathambo, CelesteMariposa e Octa Push, todos capazes de aditivar com preciosas ideias rítmicas a delirante paisagem electrónica em que se move IKOQWE. E para lá disso há farpas de linguagem: “já andei bué, falta muito?”, questiona-se em “Falta Muito?”, irónica questão que nos relembra de forma aguda que a batalha pela conquista de justiça já vai longa; em “Pele” fala-se da matéria que nos cobre os músculos ou da que vibra esticada nos tambores há milhares de anos? E não serão ambas a mesma coisa?; E em “Vão de C@n@!” relembra-se, com todo o poder do vernáculo, que a “batalha não faz a luta”. Mas se for para pelejar, se for caso de colocar esta música contra os nossos corpos, este balanço contra a nossa inércia, este poder propulsor contra a nossa falta de vontade em avançar é certo e sabido que é IKOQWE que ganha a luta.
Sintetizadores, cowbells, bombos e tarolas, kissanges e baixos-trovão, guitarras e flautas, mesa de mistura que cria espaço e compressores que trazem pressão para os ouvidos e para as pernas. Está tudo certo aqui: isto é música de um amanhã que se quer presente feita para um hoje que se quer diferente.