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Fotografia: Catarina Limão & Batida
Publicado a: 05/03/2021

O princípio, o meio, o fim e o infinito. Por Luaty & Coquenão.

IKOQWE: “É inspirador ver o hip hop a renovar-se e a reinventar-se. Uma pessoa não se sente velha”

Fotografia: Catarina Limão & Batida
Publicado a: 05/03/2021

Pedro Coquenão é certamente uma das mais inteligentes pessoas com presença na cena musical nacional. Talvez se possa dizer mais, já que através dos media internacionais vai-se tendo acesso ao pensamento de inúmeras figuras de outros países: o cérebro que assina arte como Batida é provavelmente um dos mais activos na cena global, um dos que mais reflexão coloca naquilo que tem vindo a apresentar desde que se estreou há uma dúzia de anos com Dance Mwangolé.

Batida apresenta agora uma nova aventura e um par de novas máscaras que são fruto desse pensamento fundo: IKOQWE. IKO de Ikonoklasta, o rapper que também conhecemos como Luaty Beirão, activista, humanista, uma das mais críticas vozes da África contemporânea, outro cérebro dotado e outro crente no poder da arte mudar o mundo; e COQWE de Coquenão, o criador irrequieto que não dá um passo sem primeiro o calcular de todos os ângulos que importam: o estético, claro, mas também o moral e emocional, o político e filosófico, o social e até o ecológico. A conversa abaixo é sobre isso. E algo mais.

Coquenão gosta de conversar, de debater, de pensar em voz alta. E o seu discurso, por vezes labiríntico, traduz cuidado: não se trata de responder por responder, antes de oferecer construtivamente uma ideia, uma perspectiva que, sabiamente, nunca coloca acima das demais, antes ao lado, oferecendo a escolha a quem o escuta.

Quando Dance Mwangolé se transformou na estreia internacional, homónima, com carimbo da britânica Soundway, tornou-se evidente que Pedro entendia que a sua música não era daqui, ou apenas daqui, e que poderia ousar ter um lugar de destaque num mais vasto plano internacional, carregando marcas de uma identidade muito particular, derivada da sua própria experiência cultural luso-angolana, uma experiência que combinava uma paixão antiga pelo hip hop e ecos ainda mais remotos dos sons do semba e de outros ritmos que se abrigavam, então ainda misteriosos, em velhas rodelas de vinil que viajaram de barco de Benguela ou Luanda até à Lisboa pós-colonial.

Essa música ofereceu-se depois ao olhar e ao toque de outros agitadores de pistas, de DJ Marfox a Roulet ou Octa Push, num tomo de remisturas que vincava ainda mais o pendor dançante da revolução que Batida tinha na cabeça e nos pés. Dois surgiu em 2014, ponderando as diferenças que o capitalismo impõe, ou sobre a africanidade ou sobre a humanidade, assumindo que música é política, tanto como poesia, que ritmo é acção, tanto como reflexão.

O passo seguinte levou Pedro Coquenão até perto da histórica editora belga Crammed: através de um turbulento processo, conduziu os Konono Nº 1 na criação de Konono Nº 1 Meets Batida (2016), álbum que reforçou a sua presença num palco mais global que, de resto, foi sempre o seu. Do Africa Express de Damon Albarn ao Africa Day de Questlove, baterista dos Roots, as solicitações a que Pedro Coquenão foi respondendo traduzem o empenho real numa ideia de música como ferramenta de transformação de consciências, de descentralização de modelos musicais, de uma pluralidade estética em que sempre acreditou.

No palco, em múltiplos contextos, com produções humana e visualmente exuberantes, rodeado de mais corpos e cabeças e braços e pernas e troncos, ou, pelo contrário, tocantemente solitário e exposto, misturando a ideia de concerto com a de programa de rádio, a de DJ set com a de íntimo recital, Pedro Coquenão foi erguendo uma obra e uma presença tão singular quanto fascinante. Não é só acerca da música e dos discos: é acerca disso, claro está, mas também da arte, das intervenções/instalações em museus ou galerias, do discurso nos media, das acções concretas de consciencialização num mundo cada vez mais polarizado, crescentemente intolerante.

IKOQWE chega agora, quando esperamos que a pandemia já se esteja a arrastar para um amplamente desejado fim, em vésperas de podermos voltar todos a dançar. Mas enquanto isso não é possível, nada nos impede de pensar, de escutar, e de ler. Pedro Coquenão, do lado de lá de uma trémula ligação Zoom, falou generosamente ao Rimas e Batidas sobre este projecto, sobre a sua génese, as suas implicações, sobre o momento que todos atravessamos. E até sobre as crianças: desde pelo menos Marvin Gaye que é nelas que depositamos as esperanças e o peso do futuro, não é? Agindo neste presente será possível aliviar esse peso. É disso que trata o novíssimo The Beginning, the Medium, the End and the Infinite. Prestem atenção, por favor.



[A pré-história de Pedro e Luaty]

“IKOQWE é um plano antigo. Nós tínhamos um projecto, uma coisa que eu tinha na cabeça para fazer com o Luaty e com o MCK que tinha o nome com uma referência óbvia e directa a Tribe Called Quest. E o plano era um bocadinho brincar com o passado da nossa música mais próxima, mas em versão hip hop. Ficou em águas de bacalhau, mas era uma coisa que nós queríamos muito fazer juntos. Eu, entretanto, investiguei e criei toda uma espécie de imaginário para esta tribo. Andei a ver fatos, desenhos, cores, grafismos e aquilo ficou numa gaveta durante uns anos. Entretanto, há dois/três anos, surgiu a hipótese do Luaty vir fazer um concerto a Lisboa enquanto Ikonoklasta e pediu-me para o acompanhar. Eu, na altura, tinha acabado de ter um-dois-três burnouts e disse-lhe, ‘não me sinto confortável, nem tenho vontade de ir para cima dum palco como se nada se passasse, portanto, só consigo ajudar-te se puder participar como personagem’. E criei esta personagem, partilhei com o Luaty, que disse que não só gostava como acho que já nem queria fazer o concerto dele; queria era fazer uma coisa nova — e acabei por desenvolver a personagem dele. E de repente nasceram estas duas personagens que nós passámos a olhar de fora. Elas começaram a ter uma vida própria. Acaba por ser criativamente muito interessante esta coisa de tu olhares para duas personagens e projectares nelas coisas que tu sentes, mas também coisas que depois vais ver que são naturais nas personagens. E ainda estamos nesse processo.”

[O início da formação de uma visão]

“O processo maior foi tido na Casa Independente durante um mês. Depois de já termos feito três palcos, estivemos fechados durante um mês na Casa Independente. Foi comer, viver juntos, trabalhar no musical, uma espécie de performance que é um teatro musical, uma versão hip hop low budget e lo-fi. Faltava à ideia uma série de coisas que eu fui juntando: a parte da ilustração, a parte da imagem em si, do registo de imagem ao vivo que foi sendo feito ao longo dos concertos e de uma história que tinha que ser escrita, a história tinha que ser vivida, não queria que fosse uma coisa totalmente ficcionada. Acho que eu e o Luaty estamos a fazer exactamente o que já fizemos só que agora com estas duas personagens novas. E acaba sempre por ser uma forma de te inspirares a fazer coisas diferentes e de te libertares de outras que tu já tens como vícios recorrentes”.

“Partiu quase de um encontro entre o Ikonoklasta e este artista que ele convidou que, entretanto, estava todo queimado e que se transformou numa pessoa para ele próprio se sentir como parte dessa ficção. E de repente estás numa casa fechado a gravar, já tínhamos acesso ao arquivo africano, trabalhámos o espectáculo e filmámos uma curta durante esse período. Depois demorou este tempo todo a acabar porque com o confinamento a editora recuou, houve muita coisa que ficou adiada, nomeadamente os concertos. Ficou tudo adiado e esse adiar permitiu aprofundar um bocadinho mais a parte da curta, que ia demorar um mês a ser acabada e acabou por demorar quase um ano, cerca de nove meses. O disco também era para ser acabado durante esse tempo e acabou por dar para maturar ao longo de vários meses, então foi fixe porque deu para viver juntos este universo. E acho que é um bocado por aí, pelo prazer de viver um universo à parte ou tentar viver um bocadinho fora de nós próprios e ter essa liberdade de poderes ser o que tu quiseres. Pá, e ao contrário dos Daft Punk, não há necessidade de acabar porque as personagens podem viver para sempre. Eu acho que eles deviam estar tão fartos de lidar com a indústria que devem ter decidido, pelo menos um deles deve ter decidido, cometer suicídio artístico para não ter que aturar mais uma série de coisas. Neste caso IKOQWE tenta ficar aberto para o infinito para poder ser interpretada no futuro por outras pessoas.”

[O valor da máscara]

“A máscara dá-te alguma liberdade e dá-te alguma distância. Quase que deixas de ser tu de uma forma tão concreta e passas a ser uma outra coisa qualquer. Se nós andarmos um bocadinho para trás, estas coisas eram muito locais. Há as máscaras de cada zona do país: tanto em Portugal como em Angola tens máscaras diferentes, caras diferentes e essas caras costumam ser utilizadas para trazer para a roda uma coisa qualquer. As máscaras dão-te sempre essa liberdade de tu poderes fazer parte de uma coisa que já existia e de poderes contribuir socialmente de uma maneira que pode ser um bocadinho mais dispersa e acessível a todos. Quando nós entramos com a nossa cara, seja em que situação for, há uma série de coisas que contam e descontam a nosso favor: a empatia, a expressão que pode haver ou não na cara, ter mais cabelo, menos cabelo, ter óculos, não ter óculos… as máscaras acabam por ser qualquer coisa que não se relaciona necessariamente com nada em concreto com o que existia antes. As máscaras podem ser muito diferentes uma das outras, podem-nos assustar, mas também nos dão liberdade para imaginarmos o que nós quisermos, portanto acaba por ser uma coisa que tem um efeito meio espelho para quem vê — a pessoa logo vai decidir se quer se assustar ou se quer rir. E para quem está dentro dela esse feedback de quem vê acaba por ser também parte da criação da personagem. Já não és só tu, és tu mais o efeito que tu crias em quem está a ver. E isso é super interessante para quem entra e mergulha nisso. Se já estás farto de te aturar, de viver no teu próprio corpo com as tuas limitações, de repente entras num outro corpo ou numa máscara e tens um feedback totalmente diferente.”

[A aprovação dos petizes]

“As crianças são as primeiras a reagir e a interagir de maneira diferente. Foram os primeiros testes: os filhotes de amigos e as pessoas que assistiram ao show. O feedback que tivemos foi logo: ‘muito bom’ e ‘super credível’. Ou seja, não achavam que nós estávamos malucos, nem nos viam como uma espécie de circo estranho, era mais com interesse, e até algum fascínio, e isso para mim é sempre um grande teste, o teste das crianças. E eu gostei muito da reacção que houve logo no primeiro show por parte de crianças, no segundo não houve tanto contacto com crianças, e no terceiro foi um contacto massivo, que foi no FMM Sines.

Eu consulto mesmo crianças para algumas coisas. Eu não gosto de mostrar muito o que faço a muita gente, mas é frequente ter assim alguns consultores muito pequeninos, de cinco, seis, sete anos. Gosto muito de consultar crianças e de ouvir o que elas dizem. Acho que o primeiro momento mais importante para mim em termos de perceber o que é que poderia vir a fazer foi em criança, entre os cinco e os nove anos. Nessa altura fui muito aquilo que sou agora. E demorei para aí vinte anos até conseguir desmontar tudo o que montei na adolescência para conseguir ser honesto comigo, mas eu desde criança que já fazia muito disto, muito teatro, muita música, muita dança, muita comunicação, muita palermice, muita timidez, muita necessidade de ocupar o tempo e de ocupar a cabeça. Se eu tiver que reconhecer a minha versão com mais qualidade, se calhar é essa, a de muito miúdo. Acho que nós subestimamos muito os miúdos e eles já sabem muito o que querem e o que sentem e têm muitas opiniões. 

As crianças são um foco muito importante e acho que são a esperança para o mundo. Isto pode parecer um cliché, mas nesta fase acho que são mesmo os miúdos, a forma como eles vêm o ambiente, a forma como eles consomem música. A forma como a música negra é assimilada e como o hip hop é a base de tudo e como é fácil se calhar para uma criança apresentar algo cénico, dramático, lírico e rítmico. É mais comum para eles do que era para nós há muitos anos. Eu tenho esperança nestes miúdos. Não sei se vão conseguir mudar o mundo todo, mas penso que eles têm aqui uma palavra muito importante a ser dita. E eu tenho gostado de ver a forma como eles se manifestam, a forma como se interessam por vários assuntos, como abordam a sexualidade, que é um grande bloqueio que nós temos desde sempre. E no lado artístico não vou dizer que vejo os miúdos atentos a tudo, mas gosto de ver as crianças a terem acesso a montes de coisas que nós não tivemos e, essencialmente, a terem alguns líderes de opinião logo muito novos, que já não é só aquela criança que vai às Nações Unidas, fala um bocadinho, diz umas frases e vai-se embora. A Greta Thunberg parece-me ser assim, de que eu me recorde, ela é o primeiro líder daquela idade a falar tão alto e com tanta importância e consequência para tanta gente da idade dela. É muito inspirador ver essas coisas, como é inspirador ver o hip hop a continuar a renovar-se e a reinventar-se, é super inspirador. Uma pessoa não se sente velha. Este disco consegue entrar facilmente no hip hop: a forma de nos apresentarmos, a forma de dançar, a forma de pintar.”

[O acesso ao mais extenso arquivo de música africana do mundo]

“Neste caso do arquivo africano, fui eu que os contactei e disse que gostava muito de saber se tinham arquivos de Angola. Eles perguntaram, ‘Angola porquê?’, e eu aí percebi logo que estava a fazer a pergunta certa – era sinal que ainda ninguém tinha lá ido perguntar sobre Angola. Pediram-me uns dias para ir investigar e encontraram de facto gravações feitas em Angola. E eu pedi se podia ouvir. Ouvi, gostei logo muito e ofereci-me para poder trabalhar e mexer naquilo. Pedi a benção para o poder fazer e foi uma conversa que foi sempre tida ao longo do tempo e que acabou por me dar acesso a uma pasta com muitas músicas que foram digitalizadas. A minha ideia não era samplar músicas inteiras, era mais samplar bocadinhos para ter a magia que uma tarola pode ter porque nos coloca lá no espaço e no sítio. Essa é a beleza do sampling: a gente sabe que pode recriar, mas para quem produz isso é muito inspirador, tu encontrares um som que foi captado com um determinado microfone, num determinado sítio e depois termos acesso à ficha técnica daquilo, a data em que foi gravado, onde é que foi gravado, qual o significado do que está a ser dito, em que contexto é que aquela música foi feita e para que função. Normalmente, neste tipo de gravações as músicas têm todas uma função, nem todas, mas quase todas têm uma função, ou é para celebrar o nascimento de alguém, a morte de alguém, o casamento, chamar por fertilidade, essas são as coisas mais comuns. Mas outras não são. Mas foi muito inspirador para mim imaginar esses sítios, esses momentos, ouvir a música e perceber o que é que se estava a passar. Então, quando utilizei nas músicas, tentei que nunca fosse fora de contexto e que fosse qualquer coisa que, mesma que ninguém perceba, eu saiba que aquela música e aquela magia têm qualquer coisa. Eu tenho de lidar um bocado com as coisas assim. 

O arquivo é na África do Sul. Eu só contactei com eles por via digital. Mas fomos falando, trocando ficheiros e recebia as fichas sobre o que lá têm. Eles têm tudo. Têm o continente todo, mas o que mais gostei foi sentir que não havia grande interesse no arquivo angolano. Eles têm amor pelo arquivo angolano, mas o arquivo que normalmente é o mais procurado é o sul-africano, depois se calhar do Gana e da Nigéria. Mas no caso de Angola é isso, a música feita ainda no séc. XX, ainda antes da indústria ter começado a gravar a música urbana, que as pessoas às vezes chamam-lhe música tradicional, mas é música urbana, principalmente a cidade de Luanda, mas não só. Estas gravações são recentes, mas de pessoas que ainda viviam naquela condição e com aquele tipo de hábitos. Portanto, ao contrário da África do Sul, em termos de música havia uma possibilidade para os músicos ouvirem muito mais música americana e interagirem com os Estados Unidos e estudarem coisas de outra forma, terem acesso a outros instrumentos. Essas pessoas que viviam fora de Luanda enfrentavam praticamente tudo na marimba, no quissange, na puíta, nos instrumentais tradicionais de Angola, e apanho ali quase sempre um som de um ferro ou de um vidro, que já sabes que são coisas que vieram depois, mas que fazem parte de um imaginário ainda bastante antigo e ancestral quase. Então, há ali uma proximidade com um passado que se foi perdendo com o colonialismo e há uma possibilidade de fazer uma ligação a um passado anterior a essa ideia do que é que é o colonialismo porque há instrumentos que já existim antes do colonialismo e é importante chegar até aí.  É muito precioso conseguires tentar recuperar a essa memória. É a ideia de tentar voltar a um ponto onde as coisas ainda funcionaram próximas daquilo que eram a sua génese para depois tentar imaginar o que é que será o futuro dessas mesmas coisas sem partir só de um pressuposto como Luanda, que é uma cidade que mudou muito nos últimos anos, mas é uma cidade colonialista. Em termos arquitectónicos era muito, agora é menos, agora já é um mix de Abu Dhabi com Miami, Rio de Janeiro e tudo ao mesmo tempo. Mas em vez de se partir sempre desse cenário caótico e pós-moderno que nós podemos ouvir no kuduro, é fixe voltar atrás disso tudo e até mesmo antes do período dourado da música angolana e tentar perceber o que é que já lá estava e que era único, especial, bonito e que nós tentamos encontrar às vezes só por um exercício sónico ou de curiosidade. Neste caso, eu tentei trazer um bocadinho mais de intenção e profundidade. Já tentei algumas vezes fazer isso, então acho que cada vez que tento posso fazê-lo um bocadinho diferente da última vez. Tentar fazer as coisas de uma outra maneira que não seja só impulsiva pelo beat ou por determinado groove que é bom. Tentar ir um bocadinho mais fundo, mais atrás, também para depois tentar projectar um bocadinho mais as coisas para o tal do infinito, se não elas ficam muito limitadas no tempo.”

[A entrada de colaboradores em cena]

“No tempo da Casa Independente fizemos três músicas: o ‘Pele’, o ‘Bulubulu’ e o ‘VaiVai’. E essas foram feitos só entre nós. E depois no período a seguir foram compostas as restantes e houve espaço e tempo para ir pensando em pessoas que pudessem colaborar. O Spoek é mais ou menos fácil: ele não é o Luaty mas é quase em termos de recorrência porque é um artista tão fácil de trabalhar. Nós damo-nos tão bem, é tudo tão simples e ao mesmo tempo tão delicado, romântico, bonito e desafiador. Os Octa Push são uma dupla de manos de quem me aproximei. Conhecemo-nos no Quénia, no avião para lá, e desde que comemos e passámos tempos juntos que ficámos assim. Trocamos muitos e-mails e fazemos uma coisa bonita entre artistas que é partilhar música, perguntar às vezes opiniões sobre coisas, por isso foi natural chamá-los para a conversa porque eles têm alguns instrumentos que eu raramente uso, mas que eles usam muito e que soam sempre bem. O CelesteMariposa é mais uma tentativa de partilhar com o mundo esta coisa que é ter um tipo que é conhecido só como DJ mas que tem montes de edits e vinis que eu fui coleccionando ao longo do tempo. E depois também tem assim umas músicas, como este instrumental do ‘The Medium (O Meio)’, que me remetem para um lugar que às vezes fica por contar na história da música da cidade de Lisboa recente, em que muitas vezes só se fala dos últimos 10, 12, 13 anos, e às vezes esquecemo-nos que as coisas são um acto contínuo. Podem haver momentos que definem, momentos em que há um tema que leva as pessoas a terem mais atenção, sei lá, o ‘Wegue Wegue’ dos Buraka foi claramente um momento de… nós chegarmos a um anúncio da Popota com um som daqueles é assinalável, não é normal, nem se tem repetido, não é? De repente estás a chegar às crianças e a toda a gente. Mas antes disso já tinham existido alguns fenómenos muito interessantes e nós todos que crescemos nos anos 80 na cidade de Lisboa a ouvir muito techno, muito house tribal, muita coisa de Nova Iorque, uma espécie de afro-house inicial, mas que na altura chamava-se mais tribal. E o Wilson vem dessa geração, de uma geração que ouve muita coisa que nada tem que ver com África, mas que é completamente contaminado em casa, e provavelmente a ouvir coisas que ele também não queria inicialmente. E eu gostei muito deste instrumental que ele tinha e achei que era muito importante tê-lo porque remete muito para o espaço, remete muito para um universo diferente e alternativo e que não é nada óbvio para ele. E assim ele também se estreia numa edição, é uma coisa que eu gosto, o lado Júlio Isidro, esta coisa que eu tenho desde o primeiro disco que é: tanto me dá prazer fazer música e participar como dá-me prazer trazer amigos, descobrir amigos e partilhar coisas que encontro. Da mesma maneira que se calhar um produtor pode ir samplar ou ir buscar uma coisa que ouviu, eu às vezes gosto de usar a coisa quase que por inteiro. E este tema é um encontro entre um instrumental do Celeste com uma mensagem que já é antiga, filosófica e que nos põe a pensar sobre de que forma é que o meio influencia a mensagem. E praticamente conclui dizendo que o meio é a mensagem.”

[A dinâmica entre rapper e produtor e a canção “Bulublu”]

“Cada música tem a sua história. E há músicas que são só instrumentais ou que têm uma narração. Mas o Ikonoklasta tem, obviamente, uma participação essencial na parte das letras, ele é dos melhores letristas que eu conheço. O princípio é uma introdução à história da coisa, tem um texto com uma quarta personagem, que é o ‘marrador’, alguém que marra e que ao vivo vai ter mais importância. Mas depois a segunda é uma música que nos faz aos dois rir e que tem que ver com um processo que não é assim tão comum. Somos os dois, enquanto compositores e não como personagens, numa sala, sentados no chão depois de ter comido um almoço brutamontes. Estávamos à procura de palavras, encontrámos esta que é o ‘bulubulu’, que quer dizer ‘está quase’ ou ‘falta só mais um bocadinho’ e começámos a trabalhar os dois. A brincar com a palavra, eu a trabalhar no beat ao mesmo tempo, o Luaty a começar a escrever qualquer coisa… adormeceu por causa da quebra do almoço, e a música reflecte isso. Há ali um momento em que ele desfaleceu, eu continuei a malhar, e ele depois acorda e continua a escrever e de repente gravámos uma coisa que era suposto ser só uma maquete e que, como quase todas as músicas, ficou. Ou seja, não houve aqui grandes segundos takes nem terceiros porque foi quase sempre assim. Ele já sabe que comigo é mais ou menos assim. Eu acredito muito que dá sempre para melhorar, mas também parece que há um processo infinito que às vezes pode ser doentio, mas acredito muito quando as coisas têm qualquer coisa de único e muito verdadeiro. E a música, inclusive, tem lá uma parte em que ele se esquece da letra porque estava só a fazer a maquete e passa a frase à frente e ficou assim porque ríamo-nos cada vez que aquilo chegava àquele momento. 

O processo acaba por ser sempre uma junção de tudo, nós falamos um bocadinho um com o outro sobre quase tudo. Foi o mais próximo de uma banda que eu já tive. Ele tanto tem essa preocupação e disciplina do MC como também num instantinho manda tudo ao ar se perceber que a ideia tem muito mais piada. Não é tão importante provar que sabe a letra de cor, se calhar é mais importante ter a realidade. E o hip hop, mais do que ser uma demonstração de skill, para mim sempre foi uma demonstração do que é teu e que é verdadeiro. E estes erros que às vezes aparecem podem ser a forma de se fazer um disco de hip hop ou até mesmo entrar por outros ritmos que não são tão comuns. Essa abertura da parte do Ikonoklasta é, para mim, um estímulo, por oposição a qualquer outro MC que esteja limitado a BPMs.

Depois há várias dimensões. Há uma camada de perfeita palermice, de miúdos, com descoberta e criatividade no momento; a camada de preocupação com o que se passa à volta; e depois a camada com as disciplinas que cada um domina mais. Então, há momentos em que cada um vira-se para o seu lado. Eu estou agarrado ao ecrã a tentar acertar nos loops da melhor maneira e ir mexendo neles em microssegundos e ele mergulha na letra. Quando acabamos, temos aquilo tudo feito. Este tema em particular foi um processo super fixe porque deu para rir, dormir, comer e acabar tudo num dia.”

[A felicidade na hora de ouvir o produto final]

“Nós os dois ficámos muito felizes com o que fizemos. E isto não é uma coisa que eu diga sempre, mas eu acho que este é o disco que me deixou mais feliz de fazer até hoje. É o disco com que eu me sinto mais feliz. E acho que é o melhor. É uma coisa que uma pessoa pode dizer dela própria porque não está a dizer rigorosamente nada. Eu sinto mesmo que, dentro do que eu fiz até agora, este foi o disco que me deixou mais feliz por várias razões, e uma delas pode ter sido por termos conseguido os dois, juntos, ficar muito próximos daquilo que podemos ser, mas sem ser exactamente aquilo que estávamos à espera quando começámos a elaborar isto. Eu também não gosto disso assim, acho que ninguém gosta — de se ser exactamente o que se estava à espera. Eu gostei muito do que descobrimos. Quer dizer, no que toca às palavras é difícil o Luaty comprometer-se mais e ser mais duro do que já foi no passado, mas neste caso aqui se calhar houve uma direcção que seguimos. O mês que passámos na Casa Independente teve alguma influência, lidares com o público, com uma sala com poucas pessoas. Percebemos que tínhamos que cortar e ir mais a directo em algumas coisas que dizíamos. Comprometermo-nos, de certa forma. É um disco que tem uma certa dose de compromisso. 

Nós estamos mais maduros e o tempo começa a faltar, nós não vamos viver para sempre, os personagens sim, e, em vez de ficares suave e acomodares-te, se calhar começas a ter que chamar as coisas pelos nomes. Mas acho que isso acaba por estar desde o início. Como criança, mais inconsequente e leve, mas também no nascimento e no surgimento do hip hop e do kuduro. Sempre houve uma componente muito de denúncia e conversa sobre as coisas. E se quisermos até das músicas de arquivo. Eu ouço as músicas de arquivo e as gravações de campo e todas elas se referem a coisas concretas que se passam e não a ficção. Lembro-me perfeitamente das 12 músicas para trabalhar mais só havia uma que era sobre uma pessoa que passou na aldeia. Todas as outras eram sobre a morte, nascimento, casamento, fertilidade, falta de comida, era tudo muito directo e muito básico no melhor sentido da palavra. E ritmicamente super interessante. Acho que o disco bebe disto tudo. De uma cena mais ancestral dos instrumentais a uma certa maturidade de letras do Luaty até à cumplicidade que temos os dois a falar um com o outro. E há a possibilidade assumida no final de fazermos uma coisa melhor do que já tínhamos feito até agora, que se tenta sempre, mas nem sempre sai. E neste caso os dois comentámos mais do que uma vez que estávamos mesmo muito satisfeitos um com o outro e com o que tínhamos conseguido. Foi uma coisa que dissemos mais do que uma vez, foi muito fixe porque nem sempre acontece.”

[Os avanços e os recuos até fechar a edição com a Crammed]

“No caso da Crammed o que aconteceu foi que eu os contactei. Eles foram uma das editoras que eu contactei para o meu primeiro disco e que não me responderam [risos]. O Marc, que é o fundador da editora, viu o show no Womex, em 2013, mandou-me um SMS — estava eu ir a para o hotel de madrugada — e trocámos algumas mensagens em que ele disse que se sentia um palerma por não ter respondido ao mail, que tinha adorado espectáculo e que adoraria fazer coisas no futuro. E que tinha uma ideia sobre a qual queria falar. E a ideia era depois produzir o disco de Konono mais à frente. O disco de Konono foi um disco com muito trabalho, muita dor, não fiquei satisfeito como fiquei com este. Foi um disco com muita dor porque envolvia muitas pessoas: havia um manager, havia um produtor antigo, havia uma banda de gerações diferentes e com um elemento bastante doente, que era o líder, que acabou por falecer mais tarde. Havia um respeito meu muito grande pela banda e havia o obstáculo da linguagem. Apesar de tudo, foi muito fixe, mas foi muito trabalhoso. 

Apesar disso, eu já tinha o disco de IKOQWE apalavrado com uma editora que era a Beating Heart, porque eles tinham feito um trabalho com o Goldie que eu tinha gostado muito e estavam precisamente a trabalhar com o arquivo africano. Estava praticamente fechado com eles. Havia esta editora com quem havia um plano, mas o confinamento fez tudo andar para trás, tudo o que era financiamentos para a edição, foram todos cancelados, então de repente, no espaço de dois meses, o que era um plano de edição ao longo do ano todo foi tudo cancelado. Não é nada de novo, já me aconteceu isto várias vezes no passado, mas naquele instante pensei só que ia aproveitar o confinamento para acabar o disco e ia tentar outras editoras. 

E porque não a Soundway? Porque a Soundway disse que o disco era muito português, era muito lírico, tinha muito significado que não era para eles fácil de traduzir. E nem sequer falámos mais. ‘Não vamos falar mais sobre isto porque não é suposto o disco ter tantos desafios. Se, para vocês, aquilo que é uma característica dele é um desafio, a gente avança e faz de outra maneira’. Quando mandei para a Crammed, a resposta foi completamente oposta, gostavam de tudo, não percebiam tudo, mas gostavam de tudo o que percebiam, pediram-me mais informação e, num espaço de 15 dias, já estava tudo praticamente fechado em termos de acordo, detalhes, tudo e mais alguma coisa. Foi tudo muito rápido, eu já tinha o disco acabado nessa altura e surgiu assim. Foi um contacto só, portanto a resposta simples é: foi muito fácil, eu mandei-lhes o disco já acabado, expliquei só a base do que era o projecto, eles adoraram à primeira, adoraram mesmo, acertámos uns detalhes de quando é que saía, quando é que saía e em que formatos. Foi muito fácil também porque eles queriam lançar em todos os formatos e, para mim, não sendo o mais ecológico, ainda é muito importante ter o formato vinil e eles estavam completamente nessa, estavam com montes de vontade de apostar em montes de coisas que em tempo COVID ninguém pensa apostar, desde as apresentações ao vivo a tudo o que eu tenho para apresentar à volta disto. Eles deram-me uma resposta tão apaixonada, tão incondicional, tão entusiasmada que foi muito fácil acertarmos tudo. E isto foi no ano passado: começámos a falar em Outubro e em Novembro já estava tudo mais do que fechado. Foi um bocadinho por causa do contacto inicial e do namoro que existiu ao longo do tempo, muito por causa de Konono e da experiência que tivemos juntos nesse projecto. Ficámos a conhecer-nos muito bem, ficámos a confiar muito uns nos outros e depois eles gostaram do disco. Para mim e para o Ikono, pelo menos é isso que nos vai seguindo, é um bocadinho essa coisa do mais vale às vezes estares com quem tu gostas e no contexto que faz mais sentido em vez de estares a tentar procurar uma coisa qualquer que não sabes bem o que é que é ou que nem existe. E, neste caso, a Crammed foi super concreta, super fixe. Os artistas que sofrem muito a lidar com editoras sabem do que é que eu estou a falar; os outros artistas que têm a mania que as editoras são papões, esses não fazem ideia do que é que eu estou a falar. Porque esta editora não foi papão de maneira nenhuma, foi só um facilitador e sem eles não estaríamos a ter esta conversa nem nada disto teria acontecido. Há exemplos de bom e mau como em tudo na vida, e esta editora, por ser independente e mais aberta à experimentação, foi totalmente motivadora e facilitadora de tudo.”

[Identificar as suas próprias origens através da música]

“É de casa da minha avó, é de casa da minha tia, é de casa da minha mãe, é de casa dos meus amigos, é de casa do meu primo. Sei lá, na casa da minha tia [existiam] cassetes infinitas de clubes africanos e nós não podíamos com aquilo. Estava sempre a tocar de fundo. A minha tia era completamente louca por dançar, e estava sempre a dançar e a cantar as músicas todas. Nós gozávamos com aquilo, e mesmo nas viagens de carro, sempre a levar com as cassetes dos clubes do pai do Paulo Flores e outros. ‘E o Paulinho que é tão querido e está a começar’. Estávamos sempre a levar com isto. ‘Mas quem é que quer ouvir o Paulinho agora?’ E, entretanto, ficas amigo do Paulinho anos mais tarde. O Bonga a mesma coisa. São coisas que são familiares, lá de casa. 

No caso do meu primo, foi chegar a casa dele e ficar completamente doido com ele ter um grafitti feito por ele na parede na garagem, ter uma cabine de DJ montada, um microfone, usar a t-shirt por cima do fato de treino, fazer rodas de breakdance… pronto, fiquei completamente louco. Ele era o único primo que tinha mesada e ele gastava o dinheiro todo que tinha em vinis importados, portanto foi a primeira vez que vi os discos da Sugar Hill, que não é necessariamente a editora mais underground possível, mas foi dos primeiros vinis a sair. Do Grandmaster Flash, o ‘The Message’, mas acima de tudo o ‘White Lines’, que parecia a melhor música de sempre. Coisas também do Malcolm McLaren. Tudo o que era DJ music, ele tinha. Esse primo marcou-me para caraças. 

E depois a minha mãe, a mais abrangente de todas. Os discos dela iam desde a Stax, que ela trazia de Angola, até coisas sul-africanas, depois passando por algum som psicadélico. Ela tinha isso na colecção dela, e depois o meu padrasto tinha coisas de jazz de fusão super mais complexas, e eu ouvia isto tudo em casa. Ao fim-de-semana era isto que estava a soar o dia inteiro. Eles ouviam o mais recente dos anos 80, as fusões todas de jazz e mais alguma, algum prog rock. Eu no quarto ouvia muito anos 60, ouvia muito esse início da música pop, ouvia muitas baladas azeiteiras sempre que me apaixonava, que era para aí todos os dias, e ouvia muitas cassetes do meu primo. Mas depois também ouvia maquetes de bandas de punk rock, isso já na Amadora, coisas ainda antes de saírem em disco. E depois já ouvia as coisas que iam saindo na altura, música mais indie. 

Portanto, a resposta a de onde é que eu sou tem de ser dada com música porque é como eu sinto que me consigo entender. Eu sou dessa casa da tia onde havia muitas cassetes e havia espectáculos. Sou da casa do meu primo onde havia breakdance e havia acesso a qualquer coisa que se passava nos filmes de breakdance que era do outro lado do oceano. Também havia muitas histórias de família a contarem sobre o que tinha sido Angola e o que tinha sido a vida longe daqui. E depois houve a vida do meu padrasto, que era músico de jazz, tocava guitarra, os ensaios para onde eu ia, dormir em casa do Rão Kyao, mas depois também estar num concerto qualquer no Dramático de Cascais e andar lá nos bastidores em miúdo. Tudo isso marcou-me mesmo muito. E depois eu saí de casa muito novo e andei muitos anos a, essencialmente, sobreviver e tentar fazer o melhor que sabia, começando logo na Rádio Marginal, tentar fazer o melhor que sabia com muitos erros. Sinto-me de todos esses sítios, mas são sempre sítios muito ligados à música porque mesmo em Carcavelos eu passava o tempo enfiado na rádio. E as fronteiras não existem assim tanto, até porque desde miúdo que fui habituado a estar sempre em sítios deslocados. Às tantas habituei-me a não ter um país, mas com o tempo apercebi-me que, quando tenho que falar de coisas com mais propriedade e com mais experiência, Angola e Portugal vão à frente. E depois os países que nos unem a todos. O país Nova Iorque, que é um país altamente [risos]. Depois há o país Londres e outros que depois vai descobrindo.”

[Mais do que uma Nova Lisboa, a ideia é procurar uma nova globalidade]

“Já tive o prazer de ter um sentimento que é estranho porque acho que estou a começar a fazer isto e de repente esqueço-me que o tempo passou. E conheces alguém que te diz, ‘pá, eu ouvia a tua música quando tinha 10 anos’ [risos]. É giro imaginar alguém que ouve uma coisa que eu faço desde que tinha 10 anos. E senti isso. Principalmente com o ‘Bazuca’, que marcou uma geração diferente e marcou muitos DJs que estavam a começar e outros que já lá estavam, mas também me marcou a mim para perceber logo desde a primeira música que os meus pontos de contacto não eram necessariamente só em Lisboa. Eu tinha-os, mas tinha também em Luanda, em São Paulo, em Paris ou em Londres. E percebi que haviam algumas pessoas interessadas nesta ideia de uma nova tentativa de fazer uma música mais global, seja lá o que isso for, que não é uma música do mundo, é uma tentativa de nos ligarmos aos sítios de onde vimos e mandarmos para outros. E havia de facto muita diáspora a tentar comunicar entre si. Havia muito africano em Nova Iorque a tentar voltar ao Gana, muito brasileiro a tentar perceber de onde é que veio a capoeira, muito angolano a querer perceber como é que a capoeira estava do outro lado ou como é que a música electrónica estava em Lisboa e vice-versa. O Myspace ajudou muito nisso, o Messenger ajudou muito nisso e a net ter-se tornado mais acessível a todos, que não era, ajudou muito nisso. E sinto que essas pessoas, que não são tanto de um lugar, mas que estão num lugar, e que têm qualquer coisa de único delas próprias e do lugar onde estão para contribuir para a conversa, essas são as pessoas em que me revejo e vejo facilmente o Spoek como uma pessoa dessas, o Baloji, o Blitz The Ambassador. Eu a primeira vez que falei com o Blitz erámos para fazer uma coisa juntos, agora nem sei se ele me vai responder às mensagens, que ele fez o filme da Beyoncé — reparei há pouco tempo — e vai fazer o próximo com o Spielberg. 

Há, de facto, uma África contemporânea muito interessante. Fui agora convidado para participar precisamente numa exposição que celebra a África contemporânea em França e os artistas eram assim, o Nástio, o Baloji, eu, o César Schofield Cardoso de Cabo Verde. E quase todos têm vontade de experimentar coisas diferentes. Não são só pintores, não são só escultures, não são só fotógrafos, há uma tentativa muitas vezes de cruzar coisas que eu quero acreditar que tem que ver com uma proximidade maior com a nossa natureza básica, pagã, antes da religião, em que nós celebrávamos as coisas com um bocadinho mais de liberdade e as artes fluíam entre todos como um bem essencial e não com uma coisa que é uma opção. 

Esse descontrolo é super interessante para o enriquecimento colectivo. Há-de existir sempre um controlo dependendo da organização, mas claramente que estamos numa fase em que, apenas por motivos industriais, tivemos que nos tornar tão especialistas, porque se não todos partilharíamos mais de um tambor, de uma dança, de uma comida, de um terreno, de uma paisagem e não estávamos tão empilhados como estamos nas cidades nesta altura. Então, eu sinto-me parte destas pessoas, algumas serão mais diáspora africana, outras serão Lisboa, mas eu ligo-me também facilmente a artistas que não têm nada a ver, que são de Israel ou da Índia, mas em que eu sinto esse amor pela 808, pela MPC ou pelo vinil e por querer dançar e por querer desenhar e por querer fazer vídeos. Revejo-me mais nesse tipo de alma do que necessariamente numa geografia. Mas tenho a perfeita noção de que há uma afinidade e quase uma militância, de certa forma, a fazer com o continente africano e onde Portugal tem um papel.”

[O problema de ficar no meio]

“O assunto não é novo, mas se calhar é um assunto do momento. E tanto é, temos que ser claros quanto a isso, quando o partido que teve maior crescimento nas últimas eleições usou como argumento para ganhar votos o racismo, seja de que forma for. Ou dizendo que não há racismo ou dizendo que os ciganos são um problema. Portanto, foi um forte argumento de campanha que teve dois/três argumentos e estes eram alguns deles. Metade dos argumentos eram assentes na questão racial e outros eram assentes nas pessoas que não trabalham e que não fazem nada e que são uns bandidos e que andam aqui a viver à conta uns dos outros. E depois ainda havia o argumento de dividir entre as pessoas de bem e as que não são de bem. Isto é muito assustador, como é óbvio, mas também não tem assim nada de grande mito aqui. Isto tratam-se apenas e só de ferramentas para manipulação de pessoas e das suas emoções e frustrações. O que está a ser se calhar assustador para todos nós que acreditávamos em qualquer coisa de mais encantado é que ainda há quem vá atrás desse tipo de engodo. E não estamos a falar de poucas pessoas, estamos a falar de meio milhão de pessoas. Portanto, há que levar isso a sério no sentido de não ser sobranceiro, de não ser condescendente, de não pensar só em acabar com isso porque isto não se acaba assim, tem que se conversar, mesmo, porque isto doutra maneira não se vai lá. E há aqui às vezes um bocadinho um diálogo entre o que se pode chamar de extremos, mas que para mim não são necessariamente extremos porque eu não vejo um dos lados a apelar à violência, a matar pessoas ou a provocar actos de agressão entre as pessoas. Vejo só palavras no seu limite. E dum outro lado vejo palavras e acções e as palavras já são por si só graves que cheguem. Então há aqui uma diferença entre estes extremos, não podemos comparar a extrema-esquerda com a extrema-direita, ainda assim tem havido um diálogo e um debate, principalmente entre estes. 

Para mim o que me assusta mais é o silêncio de quem está ao centro. E se calhar a pessoa em quem mais votámos, e que é a pessoa mais popular do país, é um bom exemplo para medir onde é que nós estamos agora. O Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa do qual ninguém pode falar mal e que é praticamente inatacável. Eu não tenho nada para falar mal sobre o senhor, já uma vez estive numa mercearia com ele às compras e achei-o muito simpático. Ele é muito cordial. Faz bodyboard, mergulha, quer dizer, ele tem tudo para ser um tipo impecável. Vai a Luanda, dá um mergulho na ilha, toda a gente gosta dele, ele tem montes de coisas a favor. Mas há uma coisa que ele não tem a favor, que é o facto de ser Presidente da República, estar numa posição-chave na sociedade e, portanto, a minha expectativa em relação a ele é muito maior do que em relação ao Marcelo Rebelo de Sousa comentador ou tipo simpático que vai na rua e que manda umas piadas. A minha expectativa é muito maior e a situação em que estamos também faz com que ela ainda aumente. E eu acho que a excessiva moderação/relativização que ele tem feito ao longo do tempo é, para mim, mais perigosa do que os argumentos de extrema que aparecem. Porque os argumentos de extrema são só o que são. São completamente infundados, quase todos eles são mentira, não é uma questão de serem ilegais, são mentirosos, são manipuladores, mas uma pessoa que tem uma posição de Presidente da República ou do próprio Primeiro Ministro, ao não falarem sobre estes assuntos… e não me venham dizer que são assuntos menos importantes porque falam-se de tantos assuntos que não são importantes. Um assunto como este já devia ter merecido uma abordagem mais séria e assumida e parece que há sempre uma tentativa de fugir a ele porque é um assunto altamente impopular e muito desconfortável. E talvez por isso ele seja tão importante. Se ele provoca tanto desconforto é porque de facto há qualquer coisa que nós temos que falar. Eu nunca senti tanto desconforto em relação ao tema como senti nos últimos anos, é verdade. Entenda-se: desconforto no debate porque desconforto existe desde sempre, desde que o racismo existe entre humanos. E principalmente por parte de quem está na mó de baixo esse desconforto é permanente. Mas eu falo de desconforto quando se traz para um programa de televisão, quando se tenta falar num programa de rádio, quando se escreve um artigo e se manda para um jornal. Há algum desconforto quando se assume um discurso mais radical. Sei lá, por exemplo em relação a Mamadou Ba, que acaba por ser uma espécie de bicho papão para toda a gente nesta altura. Como foi, e agora falando dessa evolução, e de como estamos numa época diferente, eu sou do tempo do General D e o desconforto que se sentiu com ele na altura é um bocado semelhante a este. Ou seja, não se perdoa a certas pessoas, nomeadamente as racializadas, qualquer crítica/apontamento/comentário menos bom em relação ao nosso país. 

E penso que há também outra questão muito grave, que é a de nós tomarmos como nossa a culpa de qualquer coisa que seja levantada. Não, nós somos responsáveis. Somos todos responsáveis. Alguns de nós são culpados. E são culpados de continuarem a perpetuar este mal-estar de coisas. Mas certamente que não somos culpados do que aconteceu antes de nós nascermos. Mas temos responsabilidade, todos temos. E a mim parece-me que há uma facilidade muito grande em assumires logo como um ataque pessoal. ‘Estás a falar mal do meu país’. Não, calma. Não é um ataque pessoal. Eu percebo que agora está tudo muito sensível. Mas já estávamos antes. E sinto que essa sensibilidade em relação a este tema é uma hiper-sensibilidade. Não é uma sensibilidade normal. É uma sensibilidade de alguém que não quer falar sobre o assunto. E isso a mim assusta-me. Há uma conversa de surdos, mas depois também há pior: há uma conversa que não existe.”


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