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Fotografia: Sara Falcão e Manuel Rodrigues (só de Branko)
Publicado a: 28/02/2022

Notas azuis e o resto.

ID_NOLIMITS’22 – Dia 3: jazz ou não jazz, eis a questão…

Fotografia: Sara Falcão e Manuel Rodrigues (só de Branko)
Publicado a: 28/02/2022

Foi no Room 01, o mais recatado espaço do ID_NOLIMITS, que se apresentou uma verdadeira embaixada JazzNãoJazzPT no passado sábado, derradeiro dia do festival que nos escancarou as portas do futuro.

Os Mazarin foram os primeiros a subir ao palco. O quarteto que se encontra a preparar novo trabalho — o primeiro álbum “a sério” — para a Monster Jinx, apresentou-se em versão XL com a adição do saxofonista/flautista Francisco Bettencourt que assumiu lugar na primeira linha enquanto o teclista Léo Vrillaud, o guitarrista Vicente Booth, o baixista João Spencer e o baterista João Romão se posicionavam logo atrás.

A primeira palavra deve ser para Romão: o jovem baterista é uma vigorosa força da natureza, um construtor de cadências sofisticadíssimas que usa um kit muito simples com bombo, tarola e dois timbalões mais pratos a que acrescenta doses generosas de imaginação que admitem padrões rítmicos delicadamente construídos por quem aprendeu a noção de swing, mas pelo meio estudou o hip hop de Dilla, o house mais orgânico de Moodymann, o afrobeat de Tony Allen ou as mais modernas cadências afro-electrónicas. Cabe tudo dentro do novo material que os Mazarin apresentaram num concerto de classe plena que nem a falta de tarimba de Booth na comunicação com o público conseguiu desequilibrar.

Há um subtexto mais electrónico nas peças que antecipam o álbum que os Mazarin prometem ainda para este ano: Spencer deixa muitas vezes o seu baixo eléctrico de lado em detrimento de um teclado Novation de que extrai linhas graves e gordas e Vrillaud amplia as texturas do seu emulador de Rhodes com algodão doce sintetizado em abundância. Os Mazarin são grandes melodistas e todas as suas peças apresentam argumentos que as fazem ficar no ouvido, sobretudo as que resultam da interacção da ultra-expressiva guitarra de Vicente Booth e do saxofone do elemento convidado, mas a sólida fundação rítmica — que foi esquentando ao longo do concerto — é a mais valia que puxa para a dança.

No ID_NOLIMITS, como já se sabe, a ordem é para dançar. Mas ao último dia, a programação para o Palco Anfiteatro arrancou de forma diferente. Meio atrapalhados com o relógio, ainda chegámos a tempo de nos sentarmos numa das filas de cadeiras mais acima para desfrutar da terapia musical de cktrl. Sozinho em palco — apenas na companhia do clarinete e de dois saxofones (um tenor e um soprano) — Bradley Miller foi provavelmente o músico mais “livre” de todo o festival. Das backing tracks que trouxe consigo, ouviam-se detalhes de harpa ou guitarra que funcionavam como gatilho para o músico disparar novas ideias do instrumento que mais sentido lhe fazia utilizar no momento. Eram raros os momentos em que o silêncio ameaçava tomar conta da sala e o público, de modo a não perturbar a energia que pairava no ar, reservou todas as palmas possíveis para depois da última nota soprada por cktrl, que ainda agradeceu com uma tímida vénia antes de se esgueirar pelo pano de fundo e sumir do nosso campo de visão.

Se, por cá, as mulheres são muitas vezes remetidas para a posição de vocalista, o mesmo começa a ser cada vez menos verdade por entre a nova cultura jazz que brota do Reino Unido. A fazer justiça a esta mesma ideia esteve Poppy Ajudha, cantora e compositora britânica que faz alinhar apenas talento feminino na banda que a acompanha.

O momento foi duplamente especial. Se por um lado a artista principal transbordava de vitalidade com uma nova oportunidade de mostrar ao vivo alguns dos temas que vão integrar The Power In Us — o álbum de estreia sai já a 11 de Março — havia uma outra jovem em palco visivelmente electrizada com aquele momento: a portuguesa Raquel Martins, que até já dá cartas em nome próprio, estava radiante com a chance de poder tocar em “casa” e foram vários os sorrisos cúmplices que ia trocando com Ajudha, que fez questão de lhe dar uma apresentação especial depois de um belíssimo solo de guitarra.

E quem fez questão de dançar durante boa parte da apresentação dos Mazarin — que arrancou com sala vazia, mas terminou já com o espaço muito bem composto — foi malta de boa onda de whosputo, uma belíssima surpresa nesta noite de jazz que não é bem jazz e nem por isso deixa de ser só porque gosta de dançar.

A grande diferença dos whosputo – que se apresentaram com Raimundo Carvalho na guitarra e voz, Tom Maciel nos sintetizadores, Miguel Fernandez na bateria e Tiago Martins no baixo – é a dimensão vocal das suas canções. Raimundo é um ultra-seguro vocalista que nos entrega um inglês mais do que credível, sem máculas na afinação e com presença física sólida. Atrás de si, a banda debita um jazz-funk conhecedor que tem tanto do lado mais festivo de anderson paak quanto da fórmula mais sofisticada das produções clássicas dos irmãos Mizell. Os whosputo soam — e isso não é coisa pouca — tão clássicos quanto modernos, tão daqui quanto de outro lugar qualquer e sabem definitivamente impor a festa, algo a que a multidão na sala respondeu entregando-se à pista e festejando como se fosse 1999, como em tempos defendeu Prince. Sabemos bem que o mundo fora destas quatro portas é outra coisa, mas se o presente e o passado recente também nos ensinaram alguma coisa é que para manter a sanidade não há nada como dar vazão às tensões acumuladas oferecendo o corpo ao manifesto. Ou à pista de dança que ainda é espaço de liberdade.

À uma da manhã, um “monstro” aterrava em cima da bateria que estava montada no Palco Anfiteatro. E todos queriam vê-lo, já que foi precisamente a essa hora que os lugares daquela sala pareciam estar totalmente lotados pela primeira vez nessa noite. Era Moses Boyd, o prodigioso baterista de Londres que tem técnica para dar e vender e que se estreou em 2020 com Dark Matter, disco imediatamente aclamado pela crítica e que valeu ao músico uma nomeação para o Mercury Prize.

Max Luthert (baixo), Quinn Oulton (saxofone) e Artie Zaitz (guitarra) entraram em cena juntamente com Boyd num início de espectáculo marcado pela descontracção dos quatro instrumentistas. A banda era comandada sem um único rasto de rigidez por parte do baterista, que se ria à brava com aquilo que os companheiros faziam. Moses Boyd parecia até descuidado por vezes, meio que a sair de tempo ou a acelerar/desacelerar a interpretação de algumas canções, mas tudo fazia parte do plano. A cada movimento mais ousado, dirigia o olhar para o músico do qual esperava obter uma resposta ao seu fraseado nos pratos e tambores e, à vez, deixou cada um dos colegas brilharem sob a luz dos holofotes sempre que os temas permitiam.

A meio do espectáculo, o homem cujo nome surgia no cartaz deliciou os presentes com um extenso e muito dinâmico solo de bateria, que durou à volta de cinco/dez minutos e arrancava constantes reações do público, que gritava, assobiava e batia palmas sempre que o britânico arriscava um pouco mais naquela ginástica de pernas e braços. Despediu-se com um “tchau” e um “obrigado” e levou uma enorme ovação por parte da plateia, que o aplaudiu de pé efusivamente depois de uma hora em que a sua entrega ao instrumento foi total e imaculada.

Branko tornou-se, ao longo desta odisseia pandémica, numa espécie de agente anti-solidão, recorrendo às redes sociais e sobretudo à sua visibilidade enquanto músico para espalhar mensagens de ânimo e uma visão positiva. Começou por tocar os seus sets nas plataformas que se tornaram fundamentais para esta aproximação entre artista e público; saiu à rua no dia 25 de Abril de 2020 para, em conjunto com Dino D’Santiago, dar o seu grito de liberdade; gravou mini-sets de norte a sul do país, alguns em lugares pouco comuns, promovendo de certa forma um êxodo urbano, numa altura em que os principais centros citadinos sofriam com a escalada de casos e mortes; deu-nos uma vista panorâmica da capital a partir da zona da Basílica da Estrela; deslocou-se à Serra da Estrela para uma das suas mais aplaudidas gravações. Isto tudo enquanto algumas das suas datas iam sendo adiadas por causa da COVID-19.

Ver Branko a subir ao palco do ID_NOLIMITS tem o seu simbolismo. É o virar de uma página num festival que viu esta edição adiada por duas vezes. A pandemia ainda está bem presente, não coloquemos isso em causa, até porque um relaxamento nesse sentido poderá ter consequências menos desejadas. Contudo, esta é a lufada de ar fresco que a todos nós fazia falta. Uma brisa de canções orelhudas embrulhadas em graves contagiantes e tarolas que pululam em tempos e contratempos, por entre as quais escapam vozes que se colam ao ouvido. Tudo secundado por vídeos sincronizados com a batida e com a própria moldura de luz montada na boca de palco. Há sorrisos, dança, celebração, viagens a Nosso, regressos aos Buraka Som Sistema, a voz de Dino d’Santiago nos altifalantes e o convite a Rita Vian para uma participação especial. Há esperança e pensamento positivo, ainda que o paradigma europeu (e mundial?) aponte precisamente no sentido oposto. Mas a música tem este poder de nos levar para cenários de paz e harmonia. Branko e Dino dizem-nos que “vai dar tudo certo”. E nós acreditamos, pois claro.

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