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Texto: Vera Brito
Fotografia: Beatriz Santos
Publicado a: 31/03/2019

Kerox, MEERA, Dino D'Santiago, Little Dragon e Rui Maia também fizeram parte das contas no segundo (e último) dia da edição de estreia do festival.

ID_NOLIMITS’19 – Dia 2: Lições de improvisação e liberdade com Kamaal Williams e Arca

Texto: Vera Brito
Fotografia: Beatriz Santos
Publicado a: 31/03/2019

Que têm Arca, Kamaal Williams, Little Dragon ou Dino D’Santiago em comum? Foi o que fomos ontem tentar descobrir no segundo dia do festival ID, que, mais do que a sua localização algo inusitada no Centro de Congressos do Estoril, surpreendeu com um cartaz multifacetado e arriscado já que, para além de poder ser complicada a tarefa de convencer uma massa de gente mais habituada a movimentar-se na Lisboa central deslocar-se à linha, também os nomes anunciados levantavam dúvidas quanto a um bom entrosamento entre tribos e públicos. Ao final da noite ficou claro que não existiram atritos e quem foi exclusivamente em busca de um artista terá deixado o Estoril bastante agradado com boas surpresas que os outros proporcionaram. Desde já deixamos o nosso aplauso ao ID por este seu plano arrojado e, neste segundo dia, só lamentamos que tenha existido uma considerável sobreposição entre os horários de Arca e Kamaal Williams, já que ambos proporcionaram os melhores concertos da noite.

Noite que começou tensa com Kerox a despejar um set de electrónica opressiva, que tornava o tecto da ROOM 002 ERISTOFF ainda mais baixo. Batidas ruidosas, industriais e pesadas capazes de nos alterar o batimento cardíaco em arritmias e acreditem que com isto não pretendemos apenas criar-vos uma imagem artificial do ambiente que se sentia na sala, à saída o relógio indicava-me mesmo uma pulsação bem acima da média. Kerox, conhecido pelo seu trabalho na Xita Records, ontem impenetrável sob os fios brilhantes da sua máscara, sacudiu o público, ainda parco às primeiras horas da noite, em movimentos epilépticos, e fez-nos repensar as pistas de dança — quem disse que uma boa pista de dança deve ser um local feliz?

Ali ao lado, no AUDITORIUM, pela mesma hora, os MEERA criavam o ambiente exactamente oposto, pintando paisagens luminosas com a sua pop leve e feliz. Jonny Abbey (Mirror People), Cecília Costa e Goldmatique têm um som despreocupado que irá certamente preencher muitas das vossas sunset parties do próximo verão. Não nos demorámos muito no seu concerto mas ainda conseguimos apanhar uma curiosa versão do trio para “She Wants to Move” dos N.E.R.D de Pharrell Williams.

Chegava a hora daquele que antecipávamos ser um dos melhores momentos desta primeiro edição do ID, e que cumpriu: Kamaal Williams, mago dos teclados, acompanhado do avassalador Tonez na bateria e de Hercules no baixo, cheio de groove, quebraram as maleáveis regras do improviso. “I’m so ready for this show!” disse-nos no começo, visivelmente entusiasmado por estar cá a tocar e já depois de ter deixado o recado de que não queria ver ninguém sentado nas cadeiras do auditório: “This is a party!“. A sinergia entre os três era contagiosa e irromperam gritos pela plateia quando começa o loop inconfundível da linha de baixo, executada no sintetizador, de “Snitches Brew”, sobre a qual Kamaal, Tonez e Hercules vão inventando, a cada compasso, novos planetas, novas galáxias, novas civilizações. Feita a introdução ao EP New Heights, lançado no início deste ano, e após o solo assolar da bateria de Tonez: “South London in the building!” gritou Kamaal, foi hora de regressos e “Salaam” deu as boas vindas a The Return. Em boa verdade pouco importava a setlist que Kamaal Williams preparasse para esta noite, o mais provável é que nem tivesse nenhuma, já que cada vez que olhávamos para palco nos parecesse que os três músicos caminhavam à medida do inesperado, surpreendo-nos a nós e a si mesmos. Por nós ficávamos ali o resto da noite, mas diz-nos a cabeça que Arca está prestes a começar e que vai ser um concerto que não podemos perder. De peito pesado abandonámos o auditório para o GRAND HALL, onde o venezuelano já começava a desconstruir todas as certezas.

Se tivéssemos de encontrar uma palavra para definir Arca, depois do seu concerto de ontem, a melhor que nos ocorre é: libertação. Só Alejandro Ghersi saberá verdadeiramente o quão difícil foi crescer dentro dos dogmas fechados e dos preconceitos que existem num país como a Venezuela, porque nós somos apenas testemunhas da forma como se liberou. Frágil e ao mesmo tempo forte numa ousadia que não teme limites, Arca não é o tipo de artista que oferece um espectáculo comum. Aos que nunca viram um concerto seu, não esperem ouvir a música que produz em álbum ser reproduzida em palco — a sua performance é uma extensão dos seus discos e a assemelha-me mais a uma estranha instalação de arte, que os nossos sentidos entranham sem que a nossa cabeça consiga efectivamente alcançar. Sons electrónicos turbulentos, misturam-se por vezes com melodias etéreas, como de repente é possível estar a dançar ao som de Madonna e a sua “Hollywood”. Arca é tudo isto: corpos em festa, gritos estridentes de dor, cenas ousadas de erotismo, pausas vulneráveis e, ao longo de uma hora insana de concerto, Alejandro Ghersi foi deixando a pele em palco, camada atrás de camada: “Thank you for letting me get that out“, atirou a certa altura. Quando conseguíamos desviar os olhos da figura exuberante e praticamente nua de Arca, o nosso olhar demorava-se também nas cenas bizarras que passavam no ecrã instalado ao fundo do palco: há saltos agulha que esmagam flores de natureza morta, ninhadas de cães, manequins sadomaso, entre muitas outras cenas que iam ilustrando todo um imaginário excêntrico, por vezes até grotesco.

Muito além do choque que o concerto do venezuelano possa provocar, até porque já tínhamos tido oportunidade de vê-lo no passado Primavera Sound, o que mais gostámos ontem, e que o nos parece ter falhado no concerto do Porto, foi a ligação íntima que Arca conseguiu estabelecer com o público, sobretudo com a tribo devota concentrada nas filas dianteiras. Sentado, cruzou elegantemente as pernas e tentou explicar-nos um pouco da sua “loucura”, com um excerto de On Private Madness do psicanalista André Green: “Sometimes it is love which sets the development of the sublimated acquisitions in motion again, and sometimes it is the latter which attempt to liberate love”. Lançaram-se flores ao palco e, após regressar do fundo da sala onde numa plataforma se elevou dramaticamente aos céus, demorou-se no meio do público abraçando um jovem com quem partilhou o microfone, acompanhando-o no seu canto gregoriano. Em redor assistiu-se à cena com fervor religioso, sem querer quebrar a magia do momento. No final despediu-se distribuindo abraços e muito amor pelo público encostado às grades: Arca, herói indelével da noite, é o grito de libertação que todos gostaríamos de dar.

Seguir as actuações de Arca e de Kamaal Williams não era tarefa fácil, mas Dino D’Santiagodepressa nos levou para o calor dos ritmos cabo-verdianos. Mundu Nôbu, um dos melhores discos para a redacção do Rimas e Batidas no ano passado, fica-nos a cada concerto seu mais próximo do coração e das ancas. É pena que tenha calhado ao cantor o espaço do auditório, que não foi o melhor para toda a gente que queria dançar e mostrar a sua ginga.

Pouco depois, os Little Dragon apresentavam-se no GRAND HALL para um concerto que podemos classificar de satisfatório, porque na verdade não esperávamos muito mais dos suecos, do que aquilo que nos foi dado. Os hits estiveram quase todos lá: “Shuffle a Dream”, “Ritual Union” — que não é uma canção de amor. conforme avisou Yukimi –, “Lover Chanting” — para encerrar em modo pista de dança — e até uma visita a “Wildfire” de SBTRKT. Houve ainda “Test”, a primeira música da banda, de 2007, para celebrar o aniversário de Fredrik Wallin.

De saída do ID, ainda espreitámos o DJ set de Rui Maia, onde percebemos que “Thrill Me” dos Junior Jack, mais de 15 anos depois do seu lançamento, ainda bate bastante, e vimos muita gente que terá ficado a dançar noite fora. Para nós, a noite chegava ao fim: esperamos ter novo encontro com o festival no próximo ano, se possível com o cartaz ainda mais arrojado, porque a fasquia ficou elevada.


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