Quem canta assim? São os quatros músicos vindos da terra feita incógnita de Tuva, e dão pelo nome de Huun-Huur-Tu — sol como luz que atravessa as nuvens e as ramagens. No sul da vastidão da Sibéria há uma região autónoma e nela habita uma cultura que tem tanto de ancestral quanto de sabedora — um fascinante mundo à parte deste que conhecemos e vai dando há muito sinais de desgaste e desinteresse. Aí onde os maiores mestres são os elementos da natureza, da geologia aos que nela habitam — animais, vento e rios ensinam os ritmos e cadências. Aí onde “fronteiras entre nós (humanos) e o mundo natural” não existem, citando Sayan Bapa — um dos músicos em palco e assumido porta-voz do grupo. Esta música quer-se falada, e que falem dela, partindo da sua fala. A sua escuta é fascinante e traz a beleza da simplicidade das coisas.
As vozes de Tuva são guturais e delas se ouve um canto difónico. Ouvir esse canto traz um súbito trespassar do tempo, dado o encanto nesse lugar. Tecnicamente parece só ao alcance dos predestinados, como em herança cultural ancestral, aprendida entre antigos mestres e mesmo no dia-a-dia. Trata-se de cantar com uma nota fundamental e simultaneamente da mesma garganta emanar outros timbres manipulados em harmónicos. É antes de mais uma prática que vem da necessidade de dialogar com a esfera em que habitam, seja espiritual, seja física, a orar ou em diálogos entre montanhas e grutas. Nisso há uma infinidade de combinações neste recurso. Estas quatro “divindades” humanas, dialogantes e canoras trazidas dentro de cada um dos distintos estilos de vozes guturais. Decalca-se da folha de sala que no sygyt “distingue-se uma melodia aguda muito bem delineada, que soa como um assobio sustentado por uma nota grave”. Essa nota grave funciona neste canto como nota pedal — esse drone tão em voga na modernidade da música. No khöömei encontra-se um dos registos mais difundidos e praticado em Tuva: “Linha melódica aguda combinando dois registos de forma intermitente”. Parece em fonema como “comum” (khöömei), “utilizado por pastores, caçadores e até motoristas”. Por cá, ainda se ouve entre rebanhos vozes de comandos das reses — ainda há pastores que cantam, em função de condução dos animais. São onomatopeias em forma de canto que chamam para mais perto. Talvez o estilo menos exuberante entre os que se escutam, nem por isso menos de encanto. Já no barbang-nadyr, que “evoca o fluxo da água entre as pedras, são ondulações e vibrações que imitam o som dos rios”. Há uma marcante singularidade. De entre os quatro músicos, apenas Radik Tyulyush tem esse registo, sendo também o único que o traz na sua voz. Kargyraa como quarto estilo entre os cantados, nele se “exploram registos muito graves, profundos e rugosos, associada a prácticas espirituais entre monges”. O músico Kaigal-ool Khovalyg tem três registos vocais — khöömei, sygyt e kargyra. Alexei Saryglar é duma só voz — sygyt.
Mas Huun-Huur-Tu, que são em nome sol na luz que entra pelas ramagens e nuvens, além das vozes, têm poderosos instrumentos que transpõem as paisagens sonoras do seu vasto território. O mais utilizado pelos três, assim como nas músicas apresentadas, dá pelo nome de igyl e foi recriado desde um pedido. “Um pastor tinha um cavalo invulgar que ganhava todas as corridas. Um dia, um homem muito rico e invejoso, mandou matar o animal. O pastor foi consolado por um sonho onde esse cavalo lhe prometeu voltar na forma de som”. O pastor construiu então, com a clarividência do sonho, o igyl. Um cordofone elementar — na simplicidade da forma como amiúde da música — é hoje a base instrumental, e “desde então representa a reencarnação do cavalo” na música de Tuva. Essa importância fica desde logo patente onde encaixam as cravelhas das cordas, na vez de uma voluta há a cabeça de um cavalo — “essa presença forte nas pradarias da nossa paisagem”, como referia o porta-voz do grupo em mais um dos momentos de eloquência entre músicas.
Sim, escutamos a transcendência na música. Claro que em parte pode estar radicada no efeito do exotismo, no mistério e no insondável. A esse propósito, recorde-se, o que traz à alma da escuta quando se conjugam dois expoentes máximos — como em efeito de potência dois nomes como The Bulgarian Voices “Angelite” e Huun-Huur-Tu em disco Fly, Fly My Sadness (Jaro, 1996). Haverá sempre esse lugar de escuta — transcendente. Mas quando em concerto é detalhadamente explicada o significado e contexto de cada música e instrumentação, entra-se em campo da etnomusicologia — nem tanto no sentido académico mas antes na racionalização da emoção. A sala Suggia da Casa da Música é o lugar de escuta em definitivo. Está-se aqui, mas também se está transposto, é o lugar para a vivência da viagem. Esse transporte aparece adjuvado quando se entra no ritmo cavalgante da música. É por isso que com toda a evidência surge o tuyug — instrumento feito partindo dos cascos de cavalo, produzindo um som do galope sobre as estepes, estando Saryglar exímio na função. Como percussionista do grupo, tem aquele bombo felpudo por aliado, que em tantos momentos faz imaginar o quão perto estarão os bombos de Lavacolhos (Fundão) das estepes de Tuva. A instrumentação empregue potencia as vozes guturais e traz o enquadramento da paisagem por nós imaginada. Este povo segue nómada hoje, como o foi no passado e assim seguirá. Desde as leituras de povos nativos que percorrem o território se entende a razão da recusa do sedentarismo — segue-se viagem, pois a paisagem e os frutos a colher assim o pedem e mudam de sitio em sitio. A música traz essa diversidade, no ritmo (e há explicitamente 5 praticados) entre seguir a passo, trote e a galope, com outros dois ritmos intermédios. Sábio e ancestral saber, este transposto na música. No tema escutado — da caravana de camelos —, houve muita da riqueza entre vozes e instrumentos, onde foi empregue o Khomuz — harpa de boca bem indentitária da música de Tuva.
Esta música vive da ligação profunda com o espaço, desde logo na aprendizagem, junto das montanhas dos rios, onde se respeitam os legados, procurando diálogos do presente, da observação, sem contrapontos. Resultado fundamental o toque e a escuta desta música na importância do “entender pelo ouvido, pela alma e pelo coração”, como assumido. Depois da passagem pelo lugar de escuta entre quem presenciou esta inolvidável noite de poesia do planalto mongol, o mundo restante que o quotidiano traz no dia-a-dia terá aí um lugar de conforto e de nicho redentor — não esqueçamos essa importância e sabedoria.