Músico do jazz e das linguagens sonoras de fusão, Hugo Danin é um dos mais reconhecidos bateristas portugueses, habituado a acompanhar algumas das maiores estrelas pop nacionais na estrada. Em paralelo, vai erguendo uma obra sua, tanto como improvisador quanto compositor, procurando cada vez mais deixar um legado próprio.
Foi a primeira faceta, a de improvisador, que resolveu explorar em Sonologues, disco que é editado pela Now Jazz Agora esta sexta-feira, 10 de Outubro — com uma edição dupla em vinil negro e colorido — e no qual se propôs a encetar uma série de duetos com outros instrumentistas prodigiosos.
João Barradas, AZAR AZAR, Eduardo Cardinho, Sérgio Carolino, Francisco Sales e Gileno Santana foram os músicos que responderam à chamada para uma série de diálogos espontâneos com a bateria de Danin. Sonologues foi gravado ao vivo, sem quaisquer ideias prévias, e revela a versão mais pura e honesta deste mestre da bateria. Em entrevista ao Rimas e Batidas, Hugo Danin desvenda o novo álbum e antecipa o próximo que chega já no início de 2026.
Começo mesmo pelo início: qual foi o ponto de partida para este novo álbum, para esta vontade de trabalhares com uma série de instrumentistas num disco de duetos?
Eu sempre tive vontade de fazer um disco deste género. Sem querer fazer qualquer tipo de comparação, um bocadinho à imagem daquilo que o Jack DeJohnette fez com o Pictures, ou como o Tony Williams fez com o grupo Lifetime, por exemplo. Havia uma intenção clara do músico, neste caso os bateristas de que falei, de criar atmosferas e determinado tipo de abordagens sem amarras. A minha formação é muito jazzística, de fusão, mas a minha vida praticamente toda é tocar com músicos de pop e coisas do género. Portanto, havia uma intenção muito clara da minha parte de me desafiar ao ponto de… Eu quero que o meu instrumento fale, mas que fale livremente. Este disco foi feito nesse sentido. Alguns dos músicos que lá foram, que são meus amigos de longa data, não tinham percebido muito bem a ideia. Foram porque são meus amigos e se calhar têm medo que lhes faça algum mal [risos], mas aceitaram o desafio. Quando chegaram ao estúdio, perceberam claramente quais eram as minhas intenções. Aliás, a proposta até era um bocadinho essa, tentar dizer o menos possível e tentarmos, enquanto músicos, ter uma capacidade de improvisação e de interacção que fosse o mais natural possível, sem começarmos a pensar em muitas estratégias para aqui e para lá. E a única estratégia que existia era: ou começava eu ou começava o músico que estava à minha frente. Portanto, um dos dois músicos iria começar sempre a mensagem e depois estes diálogos sonoros que fomos criando começam por causa disso mesmo. Não é muito diferente de eu e tu irmos para um café, e uma conversa começa-se a desenrolar sem eu te ter dito “vamos para o café falar sobre isto”.
Havia a intenção de ser o mais livre possível.
Fazer um disco que não tivesse qualquer tipo de preocupação naquilo que é criar temas ou estruturas, era algo livre. É evidente que depois somos músicos e, tal como costumo dizer, se as pessoas forem educadas, se souberem falar e respeitar a pessoa que está à frente, acabamos sempre por nos entender e deixar que a pessoa possa falar um bocadinho, e depois falo eu e depois fala a pessoa. É uma comunicação perfeitamente normal, a música tem destas coisas. E estivemos 20 e tal minutos a tocar sem parar, depois foi feita uma selecção daquilo que interessava ou não, para os temas que ficaram com quatro ou cinco minutos. A experiência foi muito positiva e foi sempre pensada como um desafio pessoal. Sempre quis fazer algo em que a bateria pudesse sobressair, não a fazer solos nem coisas desse género, mas que pudesse ter uma parte mais activa na liderança da comunicação.
Portanto, o disco foi mesmo todo gravado dessa maneira, live, não é?
Todo, o desafio também era esse. Era mesmo não haver qualquer tipo de pré-produção ou de dizer a qualquer elemento que lá estivesse o que ia acontecer. Somos músicos profissionais, portanto sabemos perfeitamente como é que a coisa rola. Às vezes faço esta analogia: qualquer jogador de futebol, se for colocado numa posição diferente, não deixa de saber jogar à bola. Se calhar prefere estar na posição dele mais natural. Mas o objectivo aqui era esse, colocarmo-nos em situações de uma posição estética ou musical diferente e tentarmos ser o mais honestos possível, criativamente falando. Porque ali não havia hipótese, foi o que saiu e por isso é que voltar a reproduzir isto seria impossível…
É um registo do momento que fica guardado, claro. Olhando agora para o disco como um todo, não tendo havido essas conversas iniciais antes do diálogo com os instrumentos, é evidente que cada faixa e diálogo vos levou por caminhos sonoros diferentes. Mas como olhas para o álbum como um todo? Identificas traços em comum? Nas selecções que foram feitas em pós-produção, houve alguma preocupação nesse sentido, de manter uma certa coesão? Ou, pelo contrário, o objectivo era mesmo espelhar essa liberdade e diversidade de sons?
A ideia era essa liberdade. Mas não vou dizer que não tenha “tentado puxar” os músicos com quem estava a trabalhar para determinado tipo de caminhos. À medida que as coisas foram sendo gravadas, fui tentando perceber também de que forma é que conseguiria construir um disco mais ou menos interessante sob o ponto de vista da sua diversidade. Mas o ponto alto no meio disto tudo é eu ter começado a fazer este trabalho de uma forma completamente descomplexada, a pensar que, se sair bem, saiu, e se não sair também não há problema absolutamente nenhum. Depois, à medida que fui fazendo as sessões, fui realmente vendo: “Uau, isto está mesmo a ficar interessante”. E grande parte do interesse do disco foi-me dado por esses músicos, porque me levaram a fazer coisas que nem eu estava à espera e me “obrigaram” a viajar por determinados caminhos. Isso foi super interessante. É evidente que isto começa de uma forma, repetindo a palavra, descomplexada, mas depois começa a fazer algum sentido, cria-se algo mais conceptual e diz-se: “Acho que vou por aqui, isto está mesmo muito engraçado”.
Como referiste há pouco, tens uma grande experiência a tocar noutros projectos e para muitos músicos de outras áreas. Mas que baterista é que ouvimos aqui, na tua visão? Houve coisas novas que exploraste neste disco? Qual é a versão do teu instrumento que podemos ouvir neste álbum? Sei que pode ser difícil transpor isto para palavras…
É, mas a pergunta é super interessante porque, na realidade, aqui ouves-me a mim na mais pura das versões, na mais pura das liberdades. Eu costumo dizer que nós amanhã podemos ser melhores músicos. Ontem não, porque já passou. Portanto, amanhã vamos ser melhores músicos. Hoje somos aquilo que somos e ponto final. E eu acho que estas sessões têm esse lado interessante, é o lado mesmo honesto em termos de criatividade, porque aquilo saiu porque era o que tinha que sair. E tive mesmo muito cuidado para não pensar muito. Tive muito cuidado para não dizer: “Vou fazer este exercício aqui, vou fazer este balanço aqui, vou tentar fazer um solo aqui”. Não há nada disso, não pensei mesmo em nada, não havia nada estruturado. Portanto, acho que é mesmo o Danin completamente despido de qualquer tipo de ideia ou de pré-conceito. Nada, aquilo é o que existe mesmo.
O retrato honesto de quem és agora como baterista.
Completamente. Isto não invalida que amanhã vá gravar outro disco e realmente pense, “isto é um conceito mais assim, tenho que ir por esta direcção”. Só que, neste, não foi isso que quis. Aqui estamos a falar numa abordagem completamente híbrida da bateria, que é bateria de acompanhamento, mas ao mesmo tempo é uma fonte de sonoplastia, um instrumento de percussão e ao mesmo tempo não é nada, são sons. Portanto, aquilo que quis foi viajar e ser colocado naquele desafio de “não há volta a dar, não vou mandar parar a gravação. Portanto, seja o que Deus quiser.” E obviamente que o resultado final é um resultado que aceito e do qual gosto imenso, porque sou eu.
E como é que foi escolher os músicos para te acompanhar? Pelo menos nessa parte, tiveste de pensar previamente em quem irias convidar.
O que quis sempre desde o início foi ir à procura de instrumentistas que eu tivesse a certeza que tinham uma bagagem e um conceito de improvisação bem enraizado. Era fundamental que houvesse do outro lado este desafio, este tipo de músico. Alguém que está habituado a solar, um músico que está habituado a criar e a improvisar. Era mesmo fundamental escolher parceiros que tivessem esta capacidade. E depois, a outra parte da escolha eram os instrumentos em si. Repara que eu podia ter escolhido um pianista ou um saxofonista, podia ter escolhido instrumentos que estão muito associados a este tipo de performance. Mas não, fui buscar um acordeonista, um vibrafonista ou um tubista. No caso da guitarra, vou buscá-la não por ser a guitarra, mas por ser quem é — porque o Francisco Salles tem este tipo de viagens na forma de fazer e interpretar música e isso é super interessante. Portanto, foram essas duas dimensões. Não só a capacidade de poderem fazer este desafio, por serem tecnicamente magistrais, mas também por querer criar esta relação meio disruptiva entre os instrumentos.
Eles surpreenderam-te, nos tais diálogos em estúdio?
Todos, acho que não houve um único… Talvez o AZAR AZAR tenha sido aquele que menos me surpreendeu e isto não quer dizer que tenha sido mau, é porque o conheço muito bem e porque sei que, dentro dos Moogs e dos sintetizadores, ele é genial. Portanto, sabia que ele ia trazer coisas super interessantes. Mas, depois, a fusão com o Barradas foi lindíssima. As experiências que tive com o Eduardo Cardinho foram maravilhosas. Foi muito difícil escolher os melhores momentos. O Sérgio Carolino é sempre aquele músico que te vai surpreender porque nunca estás à espera que uma tuba consiga fazer aquele tipo de sons. Só há uma pessoa neste país, e se calhar até no mundo inteiro, que tenha conseguido levar aquele instrumento ao nível que ele conseguiu. Portanto, acho que foi muito positivo nesse sentido.
Obviamente, o disco ainda agora saiu, mas deu-te vontade de eventualmente fazeres uma espécie de segundo volume?
Não digo um segundo volume, mas pelo menos ir de alguma forma ao conceito com outros músicos. O que eu recebi foram muitas queixas: “Não me chamaste a mim, não me chamaste para aquilo”.
Nem todos puderam ser convocados.
Exactamente, senti-me um bocadinho o seleccionador nacional, com uma panóplia de jogadores incríveis e só posso escolher alguns. Obviamente, também houve um sentido de oportunidade, houve uma disponibilidade de determinados músicos. É possível que eu possa querer fazer outro [disco], mas será de certeza outro conceito. Um conceito ainda mais arrojado. Não sei se será em duetos ou noutro formato, mas este tipo de aventuras, como músico, agrada-me imenso.
Também suponho que tenhas, tendo em conta a tua experiência e o tempo a tocar com outro tipo de projectos, muita vontade de criares os teus próprios discos e explorares a tua versão mais autoral. Como disseste, é um álbum em que te apresentas de forma pura e honesta.
Sim, eu adoro tocar com quem toco. Sou baterista da Carolina Deslandes há muitos anos, do Tatanka também. Já estive com o Pedro Abrunhosa, com os GNR. É infindável o currículo, graças a Deus. Mas não deixa de ser uma prestação que fazes como sideman e que estás ali anos e anos a “suportar” a carreira de outras pessoas. Eu tenho uma forma diferente de pensar para a minha carreira. E não quero que isto soe estranho, mas eu penso sempre que o único artista que tenho que saber valorizar sou eu próprio. E daí que tenho tentado sempre, ao longo da minha carreira, conseguir produzir coisas em nome próprio. Desde livros que escrevi até discos que produzi a criações próprias como esta, e como o próximo disco que vai sair no início do próximo ano. Portanto, é uma intenção muito clara de fazer com que a minha passagem enquanto músico, nesta maravilhosa Terra, faça sentido. Porque eu faço imensos concertos com este e com aquele, mas quando os concertos acabam, já foi, já passou. Esse lado efémero dos concertos irrita-me um bocadinho. Gosto de sentir que criamos alguma coisa e que está aqui, fisicamente, e nunca mais vai ser apagada por ninguém. Por isso, tenho esta intenção de poder, até ao fim dos meus dias, enquanto conseguir tocar, fazer o máximo de coisas possíveis. Porque quero deixar coisas feitas, em relação àquilo que é a vida que eu amo e que eu escolhi para ter.
Claro, um legado.
Sim, de certa maneira, sem ser pretensioso. Não me apetece ter esse lado de pretensão, mas acho que é uma responsabilidade minha, enquanto artista, dizer e assumir que tenho que fazer obra. E que quero muito fazer obra. Pelo menos, para mim, é fundamental.
Estavas a referir um próximo disco que sai já no início do próximo ano. O que podes contar sobre ele?
O próximo disco já não tem nada a ver com este lado meio contemporâneo e de improvisação total. É um disco com temas que escrevi já há algum tempo e que eu estava a sentir que, ou gravava agora, ou então os temas iam acabar por deixar de fazer sentido. E a formação é super interessante. Sou eu, o João Barradas, o Eduardo Cardinho e o Adam Ben Ezra, que é um contrabaixista soberbo. E são composições minhas. É um lado mais de compositor, um lado jazzístico e de world music que quis fazer. Já está gravado, neste momento está em processo de misturas. E eu sou teimoso, portanto até Março do próximo ano está cá fora. E somos um quarteto, a ideia é assumir uma formação específica com temas específicos e andar na estrada com o projecto.
Ou seja, és tu a canalizar a criatividade tanto do lado da improvisação como, no caso do disco do próximo ano, da tua faceta como compositor.
Sim, eu já o tinha feito no primeiro disco que gravei e agora tenho este que também ficou altamente. Há anos assim. Há anos em que não gravas muito, mas há outros em que começas a gravar e os projectos vão aparecendo. Este ano gravei sete ou oito discos. Em nome próprio gravei dois e, depois, em participações, gravei mais quatro ou cinco. Portanto, foi um ano muito produtivo nesse sentido. E, mais uma vez, este meu disco que vai sair no início do próximo ano também foi uma confluência positiva de factores e de agenda. Falei com as pessoas, disseram que estavam disponíveis na mesma altura e eu não quis esperar. Então fica já marcado e vamos gravar isto. O resultado final acho que também é super interessante, mas nada a ver com este.
E mencionaste, além do jazz, a world music. Queres especificar?
Sim, vai para muitas culturas. Vai para uma cultura muito oriental, vai para sons do Médio Oriente que eu adoro, também por causa da música que oiço. Vai para caminhos, sei lá, à volta daquilo que é o flamenco, mas sempre com uma toada muito jazzística. Mas nem é uma coisa específica. Maioritariamente, todos os temas, com mais ou menos improvisação… é impossível não bater o pé. Mas isso sou eu, o baterista, portanto não vale a pena. Não consigo tirar essa vontade de que as pessoas se movimentem. É um disco muito animado nesse sentido.
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