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Fotografia: Sebas Ferreira
Publicado a: 02/01/2025

A nova vida de Raku.

Hugo Danin: “A música feita neste tipo de contexto é intemporal”

Fotografia: Sebas Ferreira
Publicado a: 02/01/2025

Hugo Danin é um daqueles músicos discretos a quem podem ser imputadas sérias responsabilidades na qualidade de trabalhos alheios, dos GNR a Marta Ren e muito mais. Pedagogo com uma larga experiência, o baterista do Porto é igualmente um discreto líder que promete novos passos para 2025, como nos confessava este Verão quando subiu ao palco com Azar Azar para o concerto com o rapper Maze no âmbito do festival Jam.

Antes, porém, 2024 deu-lhe oportunidade de um especal reencontro com o passado, quando a Jazzego se ofereceu para elevar à condição de vinil um trabalho que Danin criou originalmente em 2011, Raku, registo em que é acompanhado por Telmo Marques no piano e António Aguiar no contrabaixo. Gravado nos Moonlite Studios há (quase) exactamente 14 anos, este disco tem a paradoxal condição de continuar a soar clássico e moderno ao mesmo tempo. Ampliado com duas remisturas (Azar Azar e Plek), Raku não só aumenta a discografia jazz nacional existente em vinil (e são cada vez mais títulos), como cria expectativas justificadas para os novos registos que o baterista promete para breve.



O disco que nos leva a ter esta conversa data de 2011, mas revê a luz do dia neste formato especial, do vinil, pela Jazzego em 2024. Quanto tempo é que estiveste sem ouvir o disco, depois de o teres lançado?

Normalmente, quando gravo os discos e eles saem cá para fora, nunca mais os ouço. Fico sempre com uma cópia celofanada, fechadinha. É um capítulo que está feito e que agora pertence às pessoas e à opinião delas. Nós tocamo-lo muitas vezes, fazemos muitos festivais e outras coisas muito giras, mas eu não o ouvi mais até ter de começar a lidar com esta versão em vinil, em tentar perceber como é que aquilo ia ficar ao nível das misturas, masterização e essas coisas todas. De resto, nunca mais ouvi este disco. Mas eu faço isso com quase todos.

Era o que eu presumia. E daí a minha seguinte pergunta. Suponho que tenha sido o André Carvalho quem te abordou com a ideia de o relançar na Jazzego. Como é que tu reagiste quando alguém te lançou o convite. “Olha, isto saíu em 2011, mas era fixe voltarmos a pôr isto na rua.”

Sempre achei que o disco — muito por causa daquilo que as pessoas falavam sobre ele — tinha sido muito bem recebido e eu tive prazer em fazê-lo. Também considero que a música feita neste tipo de contexto é intemporal — se ela for relançada aqui a 50 anos, não há-de ofender ninguém. Essa proposta foi giríssima, porque eu comecei a fazer alguns trabalhos para a Jazzego, a participar nalgumas colectâneas, e eles depois começaram a falar no meu disco, que tinha sido um disco de que eles tinham gostado muito na altura em que saiu. Esta paixão que eles têm — e eu também — pelo vinil sucscitou esta aventura de poder fazer a reedição e voltar a dar-lhe um bocado de vida. Eu achei o máximo a ideia. Realmente, era uma coisa que eu também queria muito ter, o disco em vinil. Ao longo dos anos, tive até quase para fazer uma cópia só para mim, para ficar com ele apenas como peça de colecção. Depois houve muito interesse da parte deles em fazer este lançamento. Acima de tudo, isto faz parte de um plano que eu estou a orquestrar com eles, na medida em que este relançamento seria o abrir, outra vez, as portas àquilo que são os meus projectos mais jazzísticos, mais de música improvisada. Já gravei um disco que vai sair este ano, de certeza. E no final do ano irei gravar outro, com músicas completamente novas em formato de canção. Em termos de estratégia, era quase como dar um miminho às pessoas antes de levarem com mais um ou dois trabalhos meus, porque era algo que já me estava a fazer falta há algum tempo.

A Jazzego — pelo menos é assim que eu a vejo, e das conversas que tenho tido com o André e o Minus sinto que eles terão uma ideia semelhante — faz parte de uma nova visão para o jazz em Portugal. É uma editora que tem apostado em artistas que trazem um posicionamento diferente face a esta música. E apesar de ser um disco muito tradicional — trio de piano, com versões do “Caravan” e etc. — eles reconheceram ali uma centelha qualquer que os fez muito querer adicioná-lo ao seu catálogo. Vindo ele de um terreno tão tradicional, o que é que tu achas que existe neste disco que, ainda assim, tanto aponta ao futuro, ao ponto de estarmos hoje a falar dele?

Falas bem na questão do tradicional, porque essa escola existia. Mas enquanto executante, tudo o que fui criando foi sempre a tentar descolar-me dessa ideia do tradicional. Eu não queria fazer uma replicagem do tradicional. O tradicional existe na minha vida, maioritariamente relacionado com a formação que eu tive, mas eu sempre tentei ser um bocadinho mais disruptivo, não replicar alguns clássicos da forma mais tradicional. Esse lado clássico está lá, obviamente, porque a minha formação foi da mais clássica que existe. Mas eu acho que existem neste disco algumas nuances de certas características disruptivas, de um jazz mais aberto, não tão fechado naqueles dogmas nem naquelas estruturas tão Real Book — é algo que eu estudei, e ainda bem que estudei, mas nunca quis fazer nada daquele género. Eu acho que eles viram neste disco essa irreverência. Alguma dessa irreverência vem até das referências que eu fui buscar. Tenho lá um tema, o “Mr. Z”, que é em honra ao Frank Zappa. Fui buscar elementos ao tango argentino, fui buscar um bocadinho desse meu lado latino, porque eu tive uma formação muito grande naquilo que era a música de jazz latina. Portanto, existe ali uma amálgama de sons, uma intenção de não formatar demasiado devido à formação. A formação foi da mais clássica que havia, mas eu tentei sempre que os temas tivessem um bocadinho de energia. Lembro-me de uma história gira em relação ao primeiro tema, o “Vai Buscá-la”: eu dei-lhe esse título por causa dos jogos de futebol. Sempre que se via um jogo, alguém dizia “vai buscá-lo!” Então eu disse ao Telmo Marques: “Eu gostava que tu, aqui, rasgasses uma linha de piano, mas que pensasses num jogo de futebol em que a bola raramente quer entrar, vai bater sempre na trave.” Existem certas imagens que eu, durante o processo de composição, usei para fugir ao clássico. Houve alguma excentricidade em temos de composição.

Mencionaste aí o Telmo Marques e eu vou querer que me fales um bocadinho dos teus dois companheiros de disco. Mas, antes disso, gostava que, em traços largos, me contasses como é que foi a tua formação académica. Onde é que estudaste e com quem é que estudaste?

Eu fiz o conservatório todo em Espanha. Sou do Norte de Portugal, portanto, para mim, era muito mais fácil ir para Espanha estudar, do que vir para o Porto ou para Lisboa. Também havia uma relação muitodirecta com a linguagem — eu falo muito bem espanhol por ter nascido no Norte de Portugal, que é muito próximo de Espanha. Então estudei lá, fiz o conservatório todo.

E fizeste universidade?

Fiz em Vigo, depois fui para Madrid. Andei a fazer cursos. Depois fui para os Estados Unidos da América. Fui para Nova Iorque estudar, que foi onde passei mais tempo a estudar, onde mais me descobri e me formei como homem e músico. Fui para níveis que eu na altura nem pensava…

Estamos a falar de que ano?

Estamos a falar de 1998. Eu fui para lá muito novo. A minha formação principal é toda feita lá.

Fala-me então dos músicos que te acompanharam no trio para este disco.

O trio é uma coisa muito interessante na seguinte perspectiva: são músicos que eu sempre respeitei. Eu já tinha tocado com o Telmo Marques noutros projectos. Nunca tinha tocado com o Togu, mas sempre o admirei muito. E o mais engraçado é que o Togu foi meu professor de Análise Musical na ESMAE quando eu tirei uma licenciatura depois de vir dos Estados Unidos, onde já tinha tirado uma licenciatura e um mestrado. Isto foi uma proposta que eu fiz aos dois e que eles, inacreditavalmente, aceitaram. Estava com muito medo na altura, porque o Telmo Marques é um músico de excelência, especialista em análise… Imagina um miudo chegar ao pé deles e: “Tenho aqui uns temas e gostava que vocês vissem isto.” Foi muito engraçado porque, se calhar, a minha forma mais simples de escrever e — sem lhe querer chamar arrogante — com menos informação do que aquilo que eles estão habituados a ver… Eles acharam muita graça aos temas. Acima de tudo fui numa de: “Isto são as cabeças dos temas, são as estruturas, e eu quero que vocês vivam e disfrutem disto.” Eles gostaram e esse trio começou com alguns ensaios. Depois fomos para estúdio, foi uma experiência giríssima, e andámos a tocar durante bastante tempo, fizemos alguns festivais.

Eu ia perguntar-te precisamente sobre isso, se aquilo que ouvimos no disco teve algum trabalho prévio ou se simplesmente chegaste ao estúdio com as pautas com os tais espaços em aberto de que falavas. Eu imagino que os ensaios não tenham sido assim tantos.

Não, não foram. Foram alguns ensaios para nós percebermos o que é que realmente se iria passar. Mas eu acho que o estúdio tem aquela componente de… Tu podes ensaiar aquilo que tu quiseres, mas quando entras num espaço novo para gravar, é aí que tem de se fazer magia. Eu aposto sempre muito naquilo que é o que acontece em tempo real e em sinergia com o estúdio. O que tivemos foi apenas uma meia dúzia de ensaios para ver como funcionam as coisas. Depois fomos para estúdio, estivemos a tocar durante o primeiro dia para nos habituarmos ao som e às questões acústicas do próprio espaço, mas depois foi começar a gravar e… Aliás, houve situações em estúdio que — graças a deus — nem tinham sido planeadas. As coisas sairam com a relação que nós queríamos.

É muito curiosa — e deduzo que tenha sido tua — para tocarem o “Caravan”. É uma daquelas peças que são eternas e que também reforça essa tua ligação à tradição.

Completamente. Este tema é um dos grantes temas da minha vida. É, acima de tudo, dos temas que eu mais ouvi em várias versões e que sempre me estimulou — e estimula — bastante. O arranjo foi meu, eu quis fazer uma coisa completamente diferente, e até transformamos aquilo num compasso irregular. Mas é um tema que eu precisava de ter. Eu não me desligo do tradicional. Ele vai viver para sempre dentro de mim. Os grandes discos que eu tenho são o Kind Of Blue, os do Bill Evans… Tenho isso tudo. Para mim, são discos que fazem parte da minha formação. Só nunca foi minha intenção fazer um disco estilo Real Book, de tentar replicar os temas na sua forma tradicional. Mas o “Caravan” é, para mim, um dos temas que… Eu arrisco em dizer que não me importava de fazer-lhe um arranjo diferente para cada disco que lançasse, porque é um tema que me marca bastante.

Tu és um músico com um grande respeito pelo groove, um profundo destemor do groove. Ou seja, às vezes dá a impressão de que o jazz português tem medo da ideia de uma cadência regular, não sei bem porquê, e tu és uma pessoa que consegue encontrar espaços de criatividade dentro de um groove que, aparentemente, pode estar muito quadrado, mas que é tudo menos quadrado. A pergunta que te faço é: achas que o jazz português tem medo dessa ideia da repetição e do fazer abanar a cabeça?

Essa pergunta é importante e ainda bem que a fazes, porque eu tenho muita vontade de responder a isto há muito tempo. Eu tenho noção que o jazz foi feito para as pessoas dançarem, para as pessoas se divertirem, para receberem aquilo que são os estímulos mais espectaculares dos músicos. As pessoas dançavam imenso com o jazz, divertiam-se imenso com o jazz. Irrita-me solenemente que, principalmente na Europa, se tenha transformado o jazz em algo muito excessivamente rigoroso, em que as pessoas se sentam e quase que não demonstram emoções, estão ali a levar com… Muitas vezes são músicos excelentes, não tenho nada a apontar quanto a isso. Mas porquê transformar tudo nesta frieza? Eu não me identifico. Qualquer que seja o contexto musical em que esteja, eu tenho de sentir que as pessoas estão a groovar também, que se estão a divertir, que abanam a cabeça. Eu não tenho problema nenhum em estar num auditório a tocar um tema que seja uma balada e que as pessoas se levantem a explodir de energia da forma que quiserem. Para mim, a música é assim. Eu costumo dizer que, quando estou a tocar bateria, se as pessoas não estão a abanar a cabeça, a bater o pé ou a serem estimuladas, há uma coisa qualquer que eu não estou a fazer. Acho impensável que a minha energia não esteja a passar para as pessoas e acho que o jazz português peca muito por existir um certo snobismo. Eu não lhe quero chamar altiva, mas é uma atitude muito intelectualóide com a qual não me identifico mesmo. Eu nunca quis fazer parte de nenhum tipo de lobby jazzístico nacional, sou um músico que toca tudo o que lhe apetecer. Tenho uma paixão visceral pelo jazz, mas não me identifico com esse tipo de jazz nem esse tipo de dogmas, com essa atitude mais arrogante.

Às vezes penso que o pior favor que fizeram ao jazz em Portugal — e em boa parte da Europa — foi decidir que tinha de ser tocado para gente sentada. Talvez isso não tenha sido uma ideia assim tão fixe quanto se pensaria.

Não entendo isso.



Tu já falaste aí numa série de termos, mas há um outro que eu acho que se associa muito a ti. E tu, ainda por cima, estiveste em Nova Iorque e conheces bem a realidade do jazz. Lembro-me de ler uma entrevista com o Lester Bowie, de Art Ensemble of Chicago, e lhe perguntarem qual é a característica que ele mais respeita num músico. Ele dizia: “A sua capacidade de meter a comida em cima da mesa. Toque o que tocar. Isso é o que eu mais respeito num músico.” Essa ideia do working musician é uma coisa que, uma vez mais, em Portugal, uma certa intelligentsia ou uma certa “polícia” do jazz condena muito, porque pensa-se que um músico de jazz sério não pode tocar com a Carolina Deslandes ou seja lá com quem for. E as coisas não são assim. E como diz o Lester Boiwe, um músico que se respeite a si próprio tem, antes de mais nada, de se providenciar para si e para a sua família, tem que ser um profissional. Alguma vez sentiste que foste alvo de algum tipo de estigma ou que foste, de algum modo, olhado de lado por parte dessa tal intelligentsia, exactamente por agarrares no tipo de gigs que muitos músicos não seriam capazes de agarrar?

Acho que sim, que é capaz de ter acontecido. Mas aqui entre nós, estou-me completamente a borrifar para esse tipo de questões. Sou um músico que, tal como o Lester Bowie, que eu adoro, tem princípios e valores  muito fortes. Eu não consigo criar se tiver problemas económicos nem consigo criar se estiver a lutar para sobreviver. Acho que uma das melhores expressões que conheço foi o saudoso Carlos Paredes que disse: “Eu não quero viver da música, quero viver para ela. Portanto vou continuar com o meu trabalho, vou continuar com as minhas funções profissionais, e quero continuar a subir ao palco com a leveza de espírito e com a paz que me permite fazer aquilo que eu faço.” É evidente que… Na altura em que eu venho dos Estados Unidos, as pessoas catalogaram-me como o “baterista da fusão e do jazz” se eu tocasse rock. Quando estava no jazz já diziam que eu era do rock. Então aceitei isso e foi dos melhores elogios que eu podia ter recebido. Eu não vou entrar em clube absolutamente nenhum. Tenho um prazer enorme em tocar com artistas como a Cuca Roseta, como a Mariza, como os GNR, como o Pedro Abrunhosa, como a Carolina Deslandes. Tal como também tenho muito prazer em fazer música improvisada, seja ela para ser ouvida por 5, por 1000 ou por ninguém.

O Groucho Marx também dizia que odiaria fazer parte de um clube que o aceitasse como membro [risos].

Zero. Eu respeito muito as pessoas que optam por estar num determinado segmento ou contexto musical. Tenho o maior respeito por essas pessoas. Não me queiram é fazer do mesmo partido, porque eu não vou compactuar com isso. Ou seja, quero ser um espírito livre. O disco que eu vou lançar agora, que está a ser misturado, é um disco de duetos. Apeteceu-me fazer um disco de duetos — em bateria e trompete, bateria e vibrafone, bateria e piano, bateria e acordeão, com o João Barradas ou o Eduardo Cardinho. Apeteceu-me fazer uma coisa dessas e não estou à espera que as pessoas aceitem esse disco nem que gostem e comprem muito. São pequenos capítulos que eu quero deixar cá. São coisas que fazem parte do meu crescimento e são coisas que eu acho que fazem parte daquilo que eu sinto. São coisas que eu acho válidas para mim enquanto músico que está a passar uma pequena jornada neste mundo e que um dia há-de ir para outro, então quero fazer o máximo de coisas possível. Agora os clubismos, os clubezinhos, as seitas… Não gosto disso.

Muito bem. Fala-me aí desses próximos projectos que tens alinhados. Esse disco de duetos já está em misturas, como tu dizias. Mencionaste aí o Cardinho e o Barradas. Acho que me tinhas mencionado também o Gileno Santana num almoço que tivemos.

É. O Gileno também está. Depois está o Sergio Carolino na tuba, o Azar Azar nos Moogs, electrónica e piano, e está o Francisco Sales na guitarra eléctrica.

Quem é que vai editar o disco?

Em princípio vai ser a Jazzego também. Mas estamos aqui em negociações para tentar perceber a melhor forma. Estas editoras pequenas têm este problema, que é o terem de gerir um bocadinho a questão do catálogo. Mas, muito honestamente, se a coisa não puder sair por uma editora, eu faço uma edição de autor, ponho o disco cá fora e ponto final. Vai ser por aí. Depois, o próximo disco já será um bocadinho mais ambicioso, do ponto-de-vista não apenas do número de pessoas, mas também das composições. São composições todas minhas, originais, e toco com um ensemble. Ou seja, vou ter cordas e… Mas sempre num formato jazzístico.

Como é que tu, enquanto baterista, compões? Escreves ao piano? De que forma é que os teus temas nascem?

Nascem muito daquilo que são alguns balanços e algumas frases. Por incrível que pareça, começam sempre com frases que são feitas mais ao baixo eléctrico ou de algumas linhas melódicas de piano. Eu não toco os outros instrumentos. Toco o suficiente para me poder orientar. Depois as coisas crescem daí. Acima de tudo… O Azar Azar disse uma coisa noutro dia: “Não há tema teu nenhum que não me dê logo vontade de dançar.” E eu acho que a premissa fundamental, mesmo nas baladas, são criadas com uma tendência muito forte da secção de rítmo, de algo que permite um certo balanço, que dá uma certa satisfação, não só para mim, mas também para quem ouve. Dá vontade de estravazar fisicamente. É basicamente nessa lógica.

Esse teu lado groovado, dançante, vem do período de Nova Iorque? Com quem é que andaste a tocar por lá? O que é que te puxou para essa linguagem?

Vem dessas referências, de discos que ou ouvia na minha juventude — Chick Corea, Bill Evans… Aprendi muito com o Buddy Rich. Sempre me apaixonou muito a forma como ele lidera uma big band, sempre muito forte ritmicamente, é uma coisa que parecia uma locomotiva. Quando estive em Nova Iorque, tive com imensos professores maravilhosos e alguns muito conhecidos. Eu não conheço nenhum músico americano que não tenha esta tendência, que não clique nesta tendência quendo está a tocar — seja na bateria, no baixo, no piano, nos instrumento de sopro… Existe sempre muita energia rítmica nestes músicos, e uma das coisas que eu mais aprendi é que não há nenhum músico que possa valera a pena se não tiver um nível de conhecimento rítmico muito alto, porque todos os instrumentos foram feitos para as pessoas poderem extravasar, dançar. E quando eu digo dançar, não é preciso estar mesmo a dançar — nós podemos estar até a dançar sentados. Mas esse lado vem muito da minha passagem por Nova Iorque e, claramente, que aquilo com o qual eu mais me identificava é este motor, esta energia rítmica que tinha de passar cá para fora.

Tu estás com que idade?

47 anos.

Eu pergunto porque ia dizer-te isto. Em muitos dos aspectos mais importantes, tu pareces, por um lado, o mais jovem dos músicos de jazz da tua geração, e o mais velho dos músicos de jazz da nova geração. Ou seja, tu consegues que esta nova geração personaficada no Azar Azar e toda a Jazzego te queira ter à sua beira, e ao mesmo tempo transportas todo esse saber que sabes da tua jornada. Como é que olhas para esta geração que parece, antes de mais nada, apostar muito em fugir aos tais dogmas sobre os quais começámos a falar?

Eu acho-os praticamente todos incríveis. Eles hoje têm aquilo que eu, para ter, tive de viajar bastante. Para ter a formação que tive, tive que viajar muito, gastar muito dinheiro e comprar muitas coisas. Eles hoje têm, realmente, toda uma panóplia de informação que está mesmo aí…

Podes dizer a palavra YouTube, na boa [risos].

Pronto. Há o YouTube e todas essas plataformas que lhes dão aquilo que eu para ter, na altura, tive de gastar muito dinheiro e fazer muitas viagens. Eles têm uma outra coisa muito boa, que é o estarem um bocadinho mais abertos àquilo que vai acontecendo em relação à minha geração. Eu lembro-me que nós éramos muito escolásticos, muito pragmáticos naquilo que é o academismo. Nós entrávamos numa sala de aula e o que sua excelência dissesse era lei. Estes novos músicos são um bocadinho mais revolucionários, tentam sempre fazer mais questões. Ao mesmo tempo, estão um bocado mais arrogantes, porque acham que já sabem tudo. Acho que seriam perfeitos se encontrássem ali um meio termo. Mas nós temos músicos inacreditáveis, incríveis, nesta nova geração a nível nacional. Há gente a fazer coisas maravilhosas e eu tenho uma necessidade muito grande de me aproximar deles e de perceber tudo o que eles estão a fazer. Só a título de exemplo, tens a cena da música electrónica, de que eu gosto imenso. Eu já fiz determinadas composições de música electrónica, mas eu preciso sempre de chamar estes miúdos para me colocarem os sons nos sítios certos, porque eles têm um entendimento das frequências actuais que eu não tenho. Eles têm uma capacidade e facilidade de mexer na tecnologia que eu também não tenho. Portanto, eu acho que tenho muito a aprender com esta geração e ainda bem. Dou graças a deus por não ter ficado velho, ao ponto de estar constantemente a tocar com estes miúdos e a aprender com eles sobre o que está neste momento a acontecer. Isso é muito bom. Daí que este disco da reedição que lançámos agora tem duas versões feitas por DJs e pelo Azar Azar. Ou seja, foi quase que uma imposição minha: “Tem de se fazer alguma coisa com isto! Arranjem miúdos, referências vossas, para mexerem nisto. Eu quero que este disco apareça, mas que se perceba que há espaço para tudo.” E eu adoro música electrónica. Acho que cada vez gosto mais. E era uma coisa de que eu não gostava há muitos anos atrás. Eu era um bocado, assim, conservador. Gostava era de coisas orgânicas. Agora não. Agora acho fundamental eu me permitir a viver cada vez mais dentro desta juventude criativa, porque só me faz bem.

Há bocado falava no YouTube por causa de uma dupla que tu provavelmente também conheces — DOMi & JD Beck. Eles apesar de terem estudado de forma muito séria na Berklee, dizem que aprenderam tanto na escola como a ver YouTube.

Completamente.

A análise aprofundada às coisas que eles descobriam através do YouTube também os transformou. Houve, aliás, um artigo muito bom sobre o disco deles que dizia que aquilo era jazz para a idade do YouTube, precisamente. E eu pergunto-te: o que é que tu tens escutado, tanto português como internacional, neste presente que te entusiasma e empolga para o teu próprio futuro?

A nível nacional, eu recebi há pouco tempo o disco do Eduardo Cardinho, que achei fabuloso. Acho que o disco dele merece ser reconhecido. Está super bem feito. E ele também está nesse disco dos duetos comigo. Também adoro o trabalho do Barradas. Às vezes passo horas a ouvir as coisas estranhíssimas que ele faz, que eu acho o máximo. Há um músico que eu adoro ouvir, que é o Avishai Cohen. Eu tenho uma relação muito forte com aquela sonoridade, não sei porquê, talvez por influência das minhas outras vidas. Aquela sonoridade árabe é algo que a mim me diz muito. Mas continuo a ouvir os clássicos, ouço muita música electrónica, muito rock. Noutro dia vinha no carro a ouvir um disco dos Sepultura. Eu gosto de ir a todo o lado e adorava que a minha passagem por este mundo pudesse deixar em registo um disco de cada contexto musical — seja no reggae, seja na música pop, seja o que for. Eu aprendo com tudo.

Para terminar: nos próximos tempos vamos poder ver-te em palco, sobreturo na condição de líder? Tens alguma coisa planeada?

Nós estamoa a tentar — e eu estou a fazer esforços — para podermos tocar pelo menos uma ou duas vezes com este disco. Gostava de juntar outra vez o Telmo Marques e o Togu [António Aguiar], vamos ver se isso é possível. Vou continuar a tocar com a Carolina Deslandes e com outros artistas, como o Tatanka, de quem sou baterista há muito tempo. Existe aí outro projecto, um trio que eu fiz com outros dois músicos excepcionáis — o Bubby Lewis, um baixista americano inacreditável, e o Eddie Brown. Estamos a tentar fazer uma tour na Europa, a começar em Portugal com dois ou três concertos, se conseguirmos. Depois vamos gravar um disco e, a partir daí, quase garantidamente que será um dos meus projectos em que eu mais irei investir. Há a possibilidade de conseguirmos tocar lá fora, no Japão, Europa e essas coisas todas. Vai ser mais ou menos por aí.


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